teologia para leigos

24 de maio de 2013

FÉ OU OBRAS? [ELSA TAMEZ]

Justificação e justiça



A justificação pela fé tem sido objecto (já clássico) de debates  entre católicos e protestantes. Hoje, num esforço ecuménico de âmbito institucional, continuam as discussões. O debate actual tem inúmeros matizes: se são as obras que salvam ou a fé; se a iniciativa da salvação vem apenas de Deus e não do ser humano; se Deus é que torna o ser humano justo no Seu dom da justificação ou apenas o declara justo; se Deus necessariamente declara justo o ser humano e depois este faz a justiça; ou se ele é declarado justo porque faz a justiça.

Uma discussão teológica deste nível é boa, mas tem pouca relevância, na medida em que o que os cristãos devem saber é se a justificação tem algo a dizer a um mundo onde grande parte da população está condenada a perecer gratuitamente na miséria e na insignificância, precisamente por falta de méritos. Igualmente, importa perceber como é que a justificação pode ser pertinente num mundo no qual se luta contra um mecanismo mortífero legitimado por leis que levam à escravidão económica, social e cultural.

Para responder a estas questões de hoje, vamos fazer uma releitura da justificação pela fé, o que desenvolveremos em três passos. Para uma compreensão da justificação desfasada da realidade, proporemos, em primeiro lugar, as perguntas da história. Depois, iremos às fontes bíblicas Carta de Paulo aos Romanos − em busca de novos critérios para uma reconstrução da justificação em íntima relação com a justiça. Finalmente, reflectiremos sobre a justificação na óptica dos excluídos.

(…)

A confiança entre Deus e os seus filhos é mútua. Por um lado, Deus justificou pela fé, sem levar em conta os pecados, porque tem confiança nas suas criaturas, sua própria criação. Por outro lado, quem acolhe o dom da justificação recupera a confiança em si mesmo como sujeito que cria história, porque Deus o libertou da escravidão da lei, do pecado e da morte. Porém, a sua confiança em si mesmo é sólida, porque confia que, em toda a sua actividade, é sustentado pelo Espírito Santo. Deposita a sua confiança no Deus da vida, porque reconhece que o ser humano é pecador, que tem em si capacidade para matar os outros, para destruir o seu ambiente e se auto-aniquilar.

A solidariedade de Deus não se esgota na dor nem na amizade fraterna. O excluído crê também na solidariedade do Criador todo-poderoso, que vence a morte e manifesta o seu senhorio diante dos ídolos que matam. No mundo cínico, onde a morte ataca à luz da legalidade, exige-se uma fé que afirme não somente a presença solidária e escondida de Deus no excluído, mas a convicção daquilo que vai além do poder dessa realidade de anti-vida. A fé recorre à esperança do impossível, o que, pelo facto de ser considerado impossível, não tem que ser considerado falso. Em termos bíblicos, equivale a crer na ressurreição dos mortos ou no Deus que ressuscita os mortos. No plano do factível, equivale a ter a certeza escatológica de que o mundo da morte pode ser transformado, pois na revelação da justiça de Deus ficou claro o direito de todos a viverem dignamente como seres humanos, como sujeitos da sua história nesta terra, apesar do poder das forças que tendem a abandonar as maiorias à morte. No plano activo, equivaleria a afirmar que temos fé em que a justiça é possível a fim de transformar este mundo onde a morte predomina, apesar das leis, ou, inclusivamente, transgredindo-as, porque Deus, em sua graça, justificou pela fé de Jesus Cristo aqueles que têm capacidade de crer que, para Deus, nada é impossível, pois ressuscitou Jesus como o primeiro justificado de muitos, e que, portanto, vale a pena seguir a vida de fé que Jesus levou. O seguimento da vida entregue de Jesus dá solidez à fé.

Os excluídos e aqueles que praticam a exclusão tiveram e têm a oportunidade de ser justificados por Deus para fecundar uma vida justa e digna, pois a «sentença» de Deus é contra toda a condenação, inclusivamente é contra o seu próprio juízo justo que é a morte para os assassinos e a justiça para os assassinados. Os pecados não são levados em conta, porque o desejo primordial de Deus é forjar uma humanidade nova comunidade sem pobres nem insignificantes. Todos, inclusivamente os Cains, neste novo éon inaugurado por Jesus Cristo, são chamados à solidariedade enquanto irmãos e irmãs, filhos e filhas do Deus de Jesus Cristo, o Primogénito.

Os filhos de Deus que vivem na nova lógica do Espírito não esquecem o seu próprio passado de vítimas nem a potencialidade que (…).

Elsa Tamez
Professora de Sagrada Escritura na Universidade Bíblica Latino-americana e especialista em teologia paulina.

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