Justificação
e justiça
A justificação pela fé tem sido objecto (já clássico) de
debates entre católicos e protestantes. Hoje, num esforço
ecuménico de âmbito institucional, continuam as discussões. O debate actual tem
inúmeros matizes: se são as obras que salvam ou a fé; se a iniciativa da
salvação vem apenas de Deus e não do ser humano; se Deus é que torna o ser
humano justo no Seu dom da justificação ou apenas o declara justo; se Deus
necessariamente declara justo o ser humano e depois este faz a justiça; ou se
ele é declarado justo porque faz a justiça.
Uma
discussão teológica deste nível é boa, mas tem pouca relevância, na medida em
que o que os cristãos devem saber é se a justificação tem algo a dizer a um
mundo onde grande parte da população está condenada a perecer gratuitamente na
miséria e na insignificância, precisamente por falta de méritos. Igualmente, importa perceber como é que a justificação
pode ser pertinente num mundo no qual se luta contra um mecanismo mortífero
legitimado por leis que levam à escravidão económica, social e cultural.
Para
responder a estas questões de hoje, vamos fazer uma releitura da justificação
pela fé, o que desenvolveremos em três passos. Para uma compreensão da
justificação desfasada da realidade, proporemos, em primeiro lugar, as
perguntas da história. Depois, iremos às fontes bíblicas ─ Carta de Paulo aos Romanos − em
busca de novos critérios para uma reconstrução da justificação em íntima
relação com a justiça. Finalmente, reflectiremos sobre a justificação na óptica
dos excluídos.
(…)
A confiança entre Deus e os seus filhos é mútua. Por um lado, Deus justificou pela fé, sem levar em conta os pecados,
porque tem confiança nas suas criaturas, sua própria criação. Por outro lado,
quem acolhe o dom da justificação recupera a confiança
em si mesmo como sujeito que cria história, porque Deus o libertou da
escravidão da lei, do pecado e da morte. Porém, a sua confiança em si mesmo é
sólida, porque confia que, em toda a sua actividade, é sustentado pelo Espírito
Santo. Deposita a sua confiança no Deus da vida, porque reconhece que o ser
humano é pecador, que tem em si capacidade para matar os outros, para destruir
o seu ambiente e se auto-aniquilar.
A solidariedade de Deus não se esgota na dor nem na amizade
fraterna. O
excluído crê também na solidariedade do Criador todo-poderoso, que vence a
morte e manifesta o seu senhorio diante dos ídolos que matam. No mundo cínico, onde a morte ataca à luz da legalidade, exige-se
uma fé que afirme não somente a presença solidária e escondida de Deus no
excluído, mas a convicção daquilo que vai além do poder dessa realidade de
anti-vida. A fé recorre à esperança do impossível, o
que, pelo facto de ser considerado impossível, não tem que ser considerado
falso. Em termos bíblicos, equivale a crer na
ressurreição dos mortos ou no Deus que ressuscita os mortos. No plano
do factível, equivale a ter a certeza escatológica de que o mundo da morte pode
ser transformado, pois na revelação da justiça de Deus ficou claro o direito de
todos a viverem dignamente como seres humanos, como sujeitos da sua história
nesta terra, apesar do poder das forças que tendem
a abandonar as maiorias à morte. No plano activo, equivaleria a
afirmar que temos fé em que a justiça é possível a fim de transformar este
mundo onde a morte predomina, apesar das leis, ou, inclusivamente,
transgredindo-as, porque Deus, em sua graça, justificou pela fé de Jesus Cristo
aqueles que têm capacidade de crer que, para Deus,
nada é impossível, pois ressuscitou Jesus como o primeiro
justificado de muitos, e que, portanto, vale a pena seguir a vida de fé que
Jesus levou. O seguimento da vida entregue de Jesus dá solidez à fé.
Os excluídos e aqueles
que praticam a exclusão tiveram e têm a oportunidade de ser justificados
por Deus para fecundar uma vida justa e digna, pois a «sentença» de Deus é contra toda a condenação, inclusivamente é contra o seu próprio juízo justo que é a morte para os
assassinos e a
justiça para os assassinados. Os pecados não são levados em conta,
porque o desejo primordial de Deus é forjar uma
humanidade nova ─ comunidade
sem pobres nem insignificantes. Todos, inclusivamente os Cains, neste novo éon
inaugurado por Jesus Cristo, são chamados à solidariedade enquanto irmãos e
irmãs, filhos e filhas do Deus de Jesus Cristo, o Primogénito.
Os filhos de Deus que vivem na nova
lógica do Espírito não esquecem o seu próprio passado de vítimas nem a
potencialidade que (…).
Elsa Tamez
Professora
de Sagrada Escritura na Universidade Bíblica Latino-americana e especialista em
teologia paulina.
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