Mercadodiceia,
ética e utopia
Primeiro, foi a Providência
divina. Deus, na sua omnipotência e infinita bondade, acompanha a humanidade no
combate contra o mal - Deus é o anti-Mal -, de tal modo que tem
fundamento a esperança do triunfo final do bem.
Depois, pela
secularização da Providência, a própria história aparece como justificando-se a
si própria, no quadro de uma historiodiceia: "A história do mundo é o
julgamento do mundo."
Finalmente, os mercados são a
nova presença do divino, de tal modo que através do seu jogo, mediante uma
"mão invisível", tudo se conjuga para que, embora cada um lute pelos
seus próprios interesses, dessa luta resulta o maior bem para todos.
Sequência: teodiceia (justificação de Deus frente ao mal),
historiodiceia (justificação da história), mercadodiceia (justificação dos
mercados) - Adriano Moreira utiliza a expressão: "Teologia do Mercado".
No quadro do neoliberalismo, o economista Riccardo
Petrella resumiu as novas Tábuas
da Lei (sigo a síntese do teólogo Juan J. Tamayo): não podes
resistir à globalização dos mercados e das finanças - deves adaptar-te a isso.
.Deverás liberalizar completamente os
mercados, renunciando à protecção das economias nacionais. Todo o poder
pertence aos mercados: as autoridades políticas transformar-se-ão em meras
executoras das suas ordens.
.Tenderás a eliminar qualquer forma de
propriedade pública, ficando o governo da sociedade nas mãos de empresas
privadas.
.Tens de ser o mais forte, se quiseres
sobreviver no meio da competitividade actual.
.Renunciarás à defesa da justiça social,
superstição estéril, e à prática do altruísmo, igualmente estéril.
.Defenderás a liberdade individual como
valor absoluto, sem qualquer referência ou dimensão social.
.Defenderás o primado da economia e da finança
sobre a ética e a política.
.Praticarás a religião do mercado com todos
os seus rituais, sacramentos, pessoas, livros e tempos sagrados.
.Não terás em conta as necessidades dos
pobres e excluídos, gente a mais, pois não gera riqueza.
.Porás a Terra ao serviço do capital, que é
quem maior rendimento pode tirar dela, sem atender a considerações ecológicas,
que só atrasam o progresso.
Perante esta situação que leva à
catástrofe, impõe-se uma alternativa, que Tamayo sintetiza nalguns
mandamentos, "orientados para a construção da utopia de uma sociedade
alternativa".
.Ética da libertação, com o imperativo
moral: "Liberta o pobre, o oprimido."
.Ética da justiça: "Age com
justiça nas relações com os teus semelhantes e trabalha na construção de uma
ordem internacional justa."
.Num mundo onde impera o cálculo, o
interesse próprio, ética da gratuitidade:
"Sê generoso. Tudo o que tens recebeste-o de graça. Não faças negócio com
o gratuito."
.Ética da compaixão: "Sê
compassivo. Colabora no alívio do sofrimento."
.Ética da alteridade e
da hospitalidade:
"Reconhece, respeita e acolhe o outro como outro, como diferente. A
diferença enriquece-te."
.Ética da
solidariedade:
"Sê cidadão do mundo. Trabalha por um mundo onde caibam todos." Num
mundo patriarcal, de discriminação de género, ética comunitária
fraterno-sororal: "Colabora na construção de uma comunidade de homens e mulheres
iguais, não clónicos."
.Ética da paz, inseparável da
justiça: "Se queres a paz, trabalha pela paz e pela justiça através da
não-violência activa."
.Ética da vida: "Defende a
vida de todos os viventes. Vive e ajuda a viver."
.Ética da incompatibilidade
entre Deus e o dinheiro, adorado como ídolo: "Partilha os bens. A tua
acumulação desregrada gera o empobrecimento dos que vivem à tua volta."
.Num mundo onde impera a lei do mais forte,
ética da debilidade: "Trabalha pela
integração dos excluídos, são teus irmãos."
.Ética do cuidado da
natureza:
"A natureza é o teu lar, não a maltrates, não a destruas, trata-a com
respeito."
Utopia?
Não é a função da utopia criticar o
presente e transformá-lo? Para evitar a tragédia daquela estória: "Era uma
vez duas serpentes que não gostavam uma da outra. Um dia encontraram-se num
caminho muito estreito e como não gostavam uma da outra devoraram-se
mutuamente. Quando cada uma devorou a outra não ficou nada." (Ana
Hatherly)
Anselmo Borges
DN, 27 Abril 2013