teologia para leigos

1 de abril de 2013

OUTRA TEOLOGIA [J.M. CASTILLO]

“Teologia Popular”
outra forma de fazer teologia

«Há que ser muito cuidadoso quando nos referimos às “noções que Jesus tinha de Deus”, pois Jesus não tem noções de Deus formuláveis e ensináveis. Bem pelo contrário, actua de tal maneira que as decisões concretas e práticas que assume são distintas do seu meio envolvente. Fala deste seu modo de actuar através de uma parábola ou de uma imagem, de maneira que podemos intuir [a sua noção de Deus] a partir do seu modo de agir juntamente com a sua proclamação que narra um acontecimento a partir desta mútua interacção.Deus… assim e assim…”, melhor: “Deus comporta-se assim e assim…”» [H. Kessler, Erlosüng als Befreiung, Dusseldorf 1972, pp.77s]

 




Introdução

Há duas formas de fazer teologia: a teologia “especulativa” e a teologia “narrativa”. Estas duas formas de fazer teologia já estão presentes no Novo Testamento. Um exemplo claro de teologia marcadamente especulativa é a teologia de S. Paulo. Como exemplo mais evidente de teologia narrativa temos os evangelhos. Estas duas formas de fazer teologia não se excluem entre si.

A diferença mais evidente entre esses dois tipos de fazer teologia está no facto de a teologia especulativa ser feita à base de ideias, de doutrinas, de verdades, de dogmas, etc. A teologia narrativa consiste em relatos que apresentam factos, presumivelmente históricos ainda que necessitem da respectiva hermenêutica conforme o “género literário” em que foram redigidos. Não se pode ler a narrativa dum milagre como se lê a duma parábola.

Entre a teologia especulativa e a teologia narrativa existem diferenças ainda mais fundas. Antes de mais, a teologia narrativa, pelo facto de ser constituída por uma série de relatos, obviamente possui uma “estrutura histórica”, ao passo que a teologia especulativa, pelo facto de ser elaborada com base em ensinamentos, doutrinas e especulações, tem uma “estrutura filosófica”. Como muito acertadamente chamou a atenção Bernahrd Welte, no caso da teologia narrativa (histórica), a pergunta que fazemos é “o que é que está a acontecer” (ou o que é que aconteceu) (was geschah), ao passo que, no caso da teologia especulativa (filosófica), focalizamo-nos em “o que é” (was ist). Os verbos “ser” e “suceder” (acontecer) determinam e configuram ambas as teologias. As pessoas perguntam: Jesus é Deus? (teologia especulativa) Também há aqueles (menos) que fazem a outra pergunta: o que acontece quando Deus se torna presente? (teologia narrativa). Assim se vê como a teologia especulativa presta atenção ao “ser” e a teologia narrativa se interessa, sobretudo, pelo “acontecer”. À teologia especulativa interessa-lhe, antes de mais nada, o “dogma”. À teologia narrativa interessa-lhe sobretudo a “ética” (o comportamento, a moral, o modo de vida).

Chegamos, assim, à questão de fundo. A teologia narrativa (a dos evangelhos), pelo facto de estar situada no âmbito da história, não tem outro remédio senão começar pelo “humano”, por aquilo que acontece na história, no espaço e no tempo. É, portanto, uma teologia que se faz “a partir de baixo”. Pelo contrário, a teologia especulativa (a de Paulo), pelo facto de começar por se situar fora da história, toma, como ponto de partida, “o divino”, aquilo que não conseguimos pensar a não ser como “o transcendente”, o que está para lá do espaço e do tempo, “a partir de cima”. Foi precisamente isso que Paulo fez. Na medida em que ele não conheceu o Jesus terreno, iniciou o seu percurso crente e o seu apostolado a partir do Ressuscitado, o Senhor da Glória (Rm 1:4). É por isso que Paulo explica os acontecimentos históricos mais violentos (como por exemplo, a morte de Jesus) não a partir do que aconteceu na Galileia ou em Jerusalém, mas a partir do aterrador decreto divino segundo o qual Deus fez o seu filho tornar-se «pecado» (2Cor 5:21) e «maldição» (Gl 3:13) por causa dos nossos pecados e para nossa salvação. E tudo isto porque tal como se diz na Carta aos Hebreus “sem derramamento de sangue não pode haver perdão” (Hb 9:22).

A grande questão é que, logo à entrada da teologia especulativa, tropeçamos imediatamente com um conjunto de realidades que nos transcendem, e com um conjunto de realidades, de ideias, de problemas e de hipotéticas soluções que não só não entendemos como para as quais não seremos capazes de encontrar explicações. E, tudo isto apenas e tão só, porque nos transcendem. Assim se explica que a teologia, a religião e a catequese constituam um conjunto de saberes que, para a grande maioria das pessoas, não lhes diz nada, não lhes interessa, nem sequer lhes resolve os seus verdadeiros problemas; sobretudo, não desperta interesse nos jovens. Não é de estranhar que muito boa gente ouça falar de Deus, da Religião e da Igreja como “elementos estranhos à vida”, que uns quantos (ou alguém) pretendem introduzir nas suas vidas, apenas acrescentando mais complicações (e menos soluções) a uma vida já de si bastante complicada.







A “Teologia Popular”

A proposta que a “Teologia Popular” faz não se limita a uma tentativa desesperada de explicar a eterna teologia, a teologia dominante da Igreja tal como ela ficou estabelecida e estruturada a partir dos séculos XI e XII. Não pretende apenas tornar essa teologia simples e acessível, numa linguagem popular e ao alcance de toda a gente, essa teologia que já tem cerca de 800 anos. Claro que tudo o que se faça com essa intenção é de louvar. Porém, se a Teologia Popular se limitar a simplificar a linguagem mantendo basicamente a mesma estrutura e os mesmos conteúdos, não só nunca iremos a lado nenhum, como nunca resolveremos a grande maioria dos problemas que as pessoas têm em matéria de Religião ou de Teologia. Que fazer, então?

A proposta da Teologia Popular consiste em optar decididamente pela “teologia narrativa”. O Evangelho de João diz: “A Deus jamais alguém o viu. O Filho Unigénito, que é Deus e está no seio do Pai, foi Ele quem o deu a conhecer” (Jo 1:18). Isto quer dizer que o Deus transcendente, que jamais o vimos nem poderemos vir a ver, que não conhecemos nem iremos nunca conhecer, manifestou-se em Jesus, manifestou-se no homem Jesus, que é Deus “feito carne” (Jo 1:14), ou seja, Deus feito humanidade e, por conseguinte, ao alcance da nossa limitada condição humana. Por isso, Jesus pode dizer ao apóstolo Filipe: “quem me vê a mim, vê o Pai” (Jo 14:9). Ou seja, Deus vemo-lo, ouvimo-lo, palpamo-lo em Jesus, no modo de vida de Jesus, nos seus hábitos, naquilo que lhe interessava ou agradava, bem como naquilo que ele detestava ou lhe desagradava. Em resumo, é através do grande relato dos evangelhos que conhecemos Deus, apercebemo-nos do que Deus nos diz e daquilo que Deus quer de nós.

Porém, convém fazer algumas clarificações. Antes de mais, convém dizer que a Teologia Popular não pretende apenas (ou não deve limitar-se a) explicar cada texto, cada relato, tal como sempre se fez nas aulas de exegese bíblica. É claro que é importante conhecer a fundo o que dizem (e não dizem) os textos dos evangelhos, mas isso não é tudo. O importante é captar como Deus se “apresenta” nas narrativas que nos relatam o modo como Jesus viveu e o modo como Jesus quis que nós vivamos. O que se aplica a Deus aplica-se igualmente à fé, à salvação, à esperança, etc., que, em Jesus, Deus nos quis dizer ou nele descobrimos.

Posto isto, eis a questão central da Teologia Popular: aquilo que a teologia narrativa nos apresenta e que encontramos nos evangelhos é o grande relato dum conflito: o conflito de Jesus com a religião estabelecida do seu tempo e com a cultura do seu povo. Jesus enfrentou-se com os Sumos-sacerdotes, os Doutores da Lei, os Senadores do povo, o Templo, as normas e as tradições, etc. Jesus foi um homem profundamente religioso, tal como comprova a sua frequente e intensa relação com o Pai do Céu, a sua original intimidade com o Pai (Mt 11:27; Lc 10:22). Mas sabemos, através dos relatos evangélicos, que a intensa religiosidade de Jesus foi uma “religiosidade alternativa”, ou seja, o decisivo da religiosidade de Jesus não foi a fiel observância dos ritos. Para Jesus, mais importante que a submissão aos ritos era a felicidade, a bondade e a sua proximidade face a todos os que se sentiam maltratados pela vida e pela sociedade.

É muito importante perceber a distância que Jesus manteve face à observância rigorosa dos ritos religiosos. Nunca esqueçamos que “os ritos condensam em si todo o sistema de signos de uma religião” (G. Theissen). Donde, há que questionar o problema do comportamento das pessoas religiosas. Que problema é esse?

O universo do comportamento do “homo religiosus” é o “rito”, não é o “ethos”. Ou seja, as pessoas muito religiosas costumam fazer incidir a sua atenção e interesse mais sobre a exacta observância dos ritos do que sobre as exigências que derivam do Evangelho, as quais se traduzem por bondade, respeito, tolerância e ternura para com todos.





Poquê esta prioridade do rito sobre o ethos, no homo religiosus?

Porque os ritos são acções que, por causa do rigor da observância das normas, constituem um fim em si (G. Theissen). A partir daqui, o interesse do sujeito centra-se na observância, nas normas básicas que a todos vincula e que constituem como que o kosmos, a “ordem” que oferece segurança e liberta do medo do kaos, da “desordem”, os quais são violência. Esta é a razão pelo qual a Religião é “ordem”, ao passo que o Evangelho é “desordem”. Jesus, de facto, foi condenado e executado como um subversivo e um agitador (Jo 18:30; 19:12; Lc 23:2.5). Eis o motivo pelo qual a pessoa muito religiosa   e não só os “profissionais” da Religião produz e reproduz normas de conduta de uma violência reprimida, inimaginável; uma violência da qual quase nunca nos damos conta. Contudo, uma violência que transportamos dentro de nós, do modo menos consciente e mais insuspeito. O Evangelho é uma boa chave de leitura para este fenómeno tão singular quanto desconcertante.


A Teologia Popular em tempos de um papado para o povo

A eleição do ex-jesuíta argentino Jorge Bergoglio (o Papa Francisco) para sucessor de Bento XVI no papado foi uma notícia inesperada, que está a dar muito que falar e pensar[1]. Aquilo que mais chama a atenção é o novo Papa, a sua desconcertante simplicidade, a sua bondade, a sua proximidade para com todos e, sobretudo, a sua insistente e declarada preocupação em recuperar uma Igreja pobre, uma Igreja ao serviço do povo, especialmente dos povos mais necessitados da terra.

Ora, em tempos de um papado para o povo, o mais lógico é que tenhamos uma Igreja para o povo. A ser certo isto, é razoável pensar que a teologia que melhor poderá justificar e sustentar uma Igreja assim será a Teologia Popular, a teologia que nos faça lembrar constantemente Jesus. Uma lembrança que nos empurre para o kaos do Evangelho, força profética que nos liberte do kosmos da violência, o qual é, de facto, uma incessante e criminosa agressão contra os mais débeis deste mundo.

É claro e muito verdadeiro que, ao colocarmos assim a questão da teologia e a sua razão de ser, somos invadidos pelo receio de nos desviarmos da (ou nos perdermos da) “ortodoxia dogmática”. Por isso, importa terminar esta apresentação da Teologia Popular lembrando um texto de J. B. Metz:

“A fé dogmática ou a fé confessional é o compromisso com determinadas doutrinas que podem e devem entender-se como fórmulas re-memorativas de uma reprimida, endemoninhada, subversiva e perigosa memória da humanidade. O critério do seu genuíno carácter cristão é a perigosa e libertadora crítica, perigosa e libertadora mas ao mesmo tempo redentora, com que a mensagem recordada é actualizada, em que “os homens se assustam mas, no entanto, saem avassalados pela sua força” (D. Bonhoeffer).

“As profissões de fé e os dogmas são fórmulas “mortas”, “vazias”, isto é, inadequadas para a tarefa de salvar a identidade e a tradição cristãs como memória colectiva, quando os conteúdos, que essa memória traz, não manifestam a sua perigosidade para a sociedade e para a Igreja!

“As profissões de fé e os dogmas são fórmulas “mortas”, “vazias”, quando essa perigosidade se esfuma sob o mecanismo da mediação institucional e quando, como consequência disso, as fórmulas apenas servem para a auto-reprodução da religião que as transmite e para a auto-regulação de uma instituição eclesial autoritária que, como transmissora pública da memória cristã, deixou de encarar a perigosa exigência da dita memória”.

Em tempos de um papado em que o Papa dá sinais evidentes de estar disposto a enfrentar essa “perigosa exigência”, a Teologia Popular produz a reconfortante impressão de recuperar a sua actualidade.

José M. Castillo
27:III:2013
Teologia Popular (1) La buena notícia de Jesus.
Edit. Desclée de Brouwer, 2012, 113 pgs.


«A RENOVAÇÃO NA IGREJA : TAREFA DE TODOS»