A relação de Jesus com os pobres
e com os desprezados
«Procurai
primeiro o Reino de Deus e a sua justiça,
e tudo o mais vos será dado por acréscimo»
(Mt
6:33; Lc 12:31)
Os «milagres», em Jesus, são «opção de classe»... e anúncio do Reino! |
«(…) Jesus anuncia o reino como boa
notícia para os pobres (Lc 4:18; cf. Lc 7:22; Mt 11:5) e declara que o reino é
dos pobres (Lc 6:20; cf. Mt 5:3). Assim, se
estabelece uma fundamental co-relação entre a boa notícia e os seus
destinatários privilegiados (privilegiados ou únicos[1]),
facto que indirectamente permite compreender de que trata a boa notícia.
Se esse reino é para os pobres; se a
salvação vem não para os justos, mas para os pecadores; se os publicanos e as
prostitutas chegam ao reino antes dos piedosos, então, é na situação concreta
que esses destinatários estão a viver que teremos que encontrar ─ ainda que, num primeiro momento, sub
specie contrarii ─
aquilo que é o nuclear dessa boa notícia.
Sendo assim, o reino de Deus não poderá ser um símbolo universal de
esperança utópica, intermutável com outra utopia qualquer, mas terá
que ser, muito em concreto, a esperança dos colectivos humanos que estejam a
viver em sofrimento debaixo da opressão material e social.[2]
A boa notícia será, em primeiro lugar e em directo, aquilo que hoje se denomina
libertação, e que encontra o seu
paralelismo bíblico mais na linha profética do que na concepção apocalíptica da
história universal.
E, antes de espiritualizar
precipitadamente os pobres e extrapolar universalmente a noção do reino, convém
lembrar que os destinatários do reino são aqueles que mais privados estão de
vida, e privados daquilo que é mais básico. Naquela passagem em que Jesus responde aos
enviados de João Baptista, nela os pobres são equiparados aos cegos, aos coxos,
aos surdos, etc. Segundo J. Jeremias, esta
passagem não deve ser interpretada espiritualmente, porque «à situação de tais
pessoas, e segundo o pensamento da época, já não se lhe pode mais chamar vida».[3]
A boa notícia consiste, então, em trazer para a vida aqueles que viram
secularmente ameaçada e negada a vida.
O reino de Deus, precisamente aquilo que importa
erguer, está, portanto, em estreita relação com
aqueles que mais privados estão de vida. Por isso, para conseguir
uma noção operativa do conteúdo do Reino de Deus, haverá que adoptar a óptica[4]
dos sem vida, dos sem poder, dos sem dignidade e não pretender que fora dessa
óptica seja possível saber-se, mais e melhor, o que é o reino de Deus. Assim, a
noção de reino de Deus não ficará paralisada pelo universalismo abstracto do
seu conteúdo ou pela imposição precipitada da reserva escatológica sobre ele.[5]
Os pobres, os pecadores, os desprezados representam o lugar necessário, ainda
que sob muitos aspectos não suficiente[6],
para saber do que trata a boa notícia do reino. Acresce uma última razão de
natureza teológica: Deus chama-os, Deus defende-os e Deus
quer que tenham vida.[7]
Para
além desta primeira correlação entre reino de Deus e pobres, consegue-se (…)».
Jon Sobrino, sj
[pp. 10]
[1] Cf.
J. Jeremias, Teologia del Nuevo Testamento
I, Sígueme, Salamanca 1974, p. 142.
[2]
Acerca desta dualidade do significado de pobre, cf. J. Jeremias, ibid.,
pp. 134-138.
[3] Ibid., p.128.
[4]
«Dentro da óptica» implica mudança de campo social, vizinhança, partilha/ajuda,
intimidade comensal, gestualidade e
proximidade corporal, compreensão analítica dos
“códigos sociais” específicos. [Nota do Editor]
[5] Isto
não significa reduzir o reino de Deus aos níveis
primários da vida, mas tê-los presentes para que, quando se fale, de
acordo com o Evangelho, de vida plena e de plenitude
escatológica não se esqueça o seu
pressuposto fundamental.
[6] O
simples facto da pobreza é importante para a determinação daquilo que é o reino
de Deus, mas a pobreza em si não possui eficácia automática com vistas à
salvação histórica; cf. I. Ellacuría, «Las
bienaventuranzas como Carta Fundacional de la Iglesia de los pobres»,
VV.AA., Iglesia de los pobres y organizaciones populares. S. Salvador
1979, p. 118.
[7] Foi
assim que o Documento de Puebla, no nº 1142, o reconheceu: «Por apenas
essa razão, os pobres merecem uma atenção preferencial, seja lá qual for a situação moral ou pessoal em que eles se
encontrem… Deus toma a sua defesa e ama-os». Cf. G. Gutiérrez,
«Pobres y liberación en Puebla», Páginas, Abril 1979, pp. 11ss.