JESUS ENCONTRA NA
BÍBLIA
A LUZ PARA A SUA
MISSÃO
São, sobretudo,
três os nomes
ou títulos com que Jesus mais se identificou e que ele mais usou
para expressar a sua missão: Filho do Homem, Servo
de Yahvé e Resgatador [go’el]. Os três vêm do Antigo
Testamento. Ele mesmo juntou os três numa única frase: O Filho do Homem não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua
vida em resgate por muitos (Mc 10:45). Os três são, por assim dizer, as
três fotografias mais antigas que os primeiros cristãos conservaram para nos
dizerem o que Jesus significava para eles e qual o caminho que ele abriu para
nós podermos chegar até Deus.
Eis o significado
de cada um destes três nomes ou títulos do Antigo Testamento. Eles ocupam o
centro de todo o processo de formação de Jesus.
Filho do Homem: ser humano, humanizar
Filho do Homem
é o nome ou título que Jesus usava constantemente
para si mesmo e que os outros nunca usaram para ele. Este título
aparece com grande frequência nos evangelhos: 30 vezes em Mateus; 28 vezes em
Lucas; 13 vezes em Marcos. No Evangelho de Marcos, Jesus usa este nome quase
sempre para falar da sua paixão, morte e ressurreição:
“O Filho do Homem vai ser entregue!”
(cf. Mc 8:31; 9:9.12.31; 10:33.45; 14:21.41). Usa-o três vezes para indicar a
‘glória’ que Ele vai ter como Messias junto de Deus: “Vocês vão ver o Filho do Homem vir sobre as nuvens” (Mc
14:62; cf. 8:31; 13:26); duas vezes para indicar o poder: “O Filho do Homem tem o poder de perdoar os
pecados” (Mc 2:12). “O Filho do Homem
é dono do sábado!” (Mc 2:28).
O título “Filho do
Homem” vem do Antigo Testamento. No livro de Ezequiel, ele aparece 93 vezes
para indicar a condição
muito humana do profeta e é traduzido por Criatura Humana na Bíblia
Pastoral (Ez 3:1.4.10.17; 4:1 etc.). No livro de Daniel, o mesmo título aparece
numa das visões apocalípticas, em que Daniel descreve os
impérios dos babilónios, dos medos, dos persas e dos gregos (Dn 7:1-28).
Na visão do profeta, esses quatro impérios têm
a aparência de “animais monstruosos”: leão com asas de águia, urso com três
costelas entre os dentes, leopardo com quatro cabeças e, ainda, uma fera
medonha e terrível (cf. Dn 7:3-8). Isso significa que se trata de impérios
animalescos, brutais, desumanos, que perseguem e matam (Dn 7:21.25). O mesmo é válido
para o actual império neoliberal que massifica e desumaniza tanta
gente. Depois destes reinos anti-humanos, surge o Reino de Deus que tem a
aparência, não de um animal, mas de um Filho do Homem, ou seja, é um reino com
aparência de gente, reino humano, que promove a vida. Humaniza. Eis o texto:
«Sob a forma de imagens nocturnas, vi
aproximar-se, sobre as nuvens do céu, um ser semelhante a um filho de homem.
Avançou até ao Ancião, diante do qual o conduziram. Foram-lhe
dadas as soberanias, a glória e a realeza. Todos os povos, todas as nações e as
gentes de todas as línguas o serviram. O seu império é um império eterno que nunca
lhe será tirado, e o seu reino jamais será destruído.» [Dn 7:13-14]
Na visão de Daniel, a figura do Filho do
Homem representa não um indivíduo mas o próprio Povo de Deus, como diz a explicação
do próprio Daniel: O reino, o império e a grandeza de todos os reinos que
existem debaixo do céu serão entregues ao Povo dos Santos do Altíssimo (Dn
7:27; cf. Dn 7:18). Na visão de Daniel, este Povo dos Santos do Altíssimo já se
encontra na Glória de Deus e recebe dele o poder. Mas antes de chegar à Glória o povo foi
colocado à prova e recebeu muitos insultos (cf. Dn 7:21-25).
Trata-se da perseguição na época dos Macabeus (166-164 a.C.). Temos aqui os
mesmos três elementos: sofrimento, glória
e poder. É o povo de Deus que, mesmo
perseguido, resiste e não se deixa
desumanizar nem enganar ou manipular pela ideologia dominante dos impérios
animalescos. A missão do Filho do Homem,
isto é, do povo de Deus, consiste em realizar o Reino de Deus como um reino humano.
Reino que não persegue a vida, mas a promove. Humaniza as pessoas. “Eu vim para
que todos tenham vida e a tenham em abundância” (Jo 10:10).
Apresentando-se aos
discípulos como Filho do Homem, Jesus
assume esta missão do Povo de Deus, dos “Santos do Altíssimo”. É como se
dissesse a eles e a todos nós:
“Venham comigo! Esta missão não é só
minha, mas é de todos nós. Vamos juntos realizar a missão que Deus nos entregou
e realizar o Reino humano que ele sonhou!”
Reino humano e
humanizador. E foi o que ele fez e viveu toda a sua vida, sobretudo nos últimos
três anos. “Jesus foi tão humano, mas tão humano como só Deus pode ser humano”.
Quanto mais humano, tanto mais divino. Quanto mais “filho do Homem” tanto mais
“filho de Deus”! Tudo o que desumaniza as pessoas afasta de Deus. Religião que
desumaniza não vem de Deus.
Na hora de ser
condenado pelo tribunal religioso do Sinédrio, Jesus assumiu este título.
Interrogado pelo Sumo-Sacerdote se ele era o “Messias, o filho de Deus Bendito”
(Mc 14:61), ele disse: “Eu sou. E vocês verão o Filho do Homem sentado à direita do Todo-Poderoso” (Mc 14:62). Por
causa desta afirmação Jesus foi declarado réu de morte pelas autoridades (Mc 14:61-64).
Ele mesmo sabia disso, pois tinha dito: O
Filho do Homem não veio para ser servido mas para servir e dar a sua vida em
resgate por muitos (Mc 10:45).
Servo de Deus: não dominar, mas servir.
Para Jesus, o Filho
do Homem é aquele que realiza a missão do Servo de Yahvé. Nas três vezes em que
ele prediz a sua paixão e morte, Jesus orienta-se pela profecia do Servo de
Deus, tal como está descrita nos cinco cânticos do Servo de Yahvé, no livro do
profeta Isaías (Is 42:1-9; 49:1-6; 50:4-9; 52:13-15.53:1-12; 61:1-3), e
aplica-a ao Filho do Homem: “O Filho do Homem vai ser entregue” (cf. Mc 8:31;
9:31; 10:33; cf. Is 50:4-9; 53:2-10).
Naquele tempo,
havia entre os judeus uma grande variedade de expectativas messiânicas. De
acordo com as diferentes interpretações das profecias, havia gente que esperava
um Messias Rei
(Mc 15:9.32). Outros esperavam um Messias Santo ou Sumo-Sacerdote (Mc 1:24). Outros
ainda, um Messias Guerrilheiro subversivo (Lc 23:5; Mc 15:6; 13:6-8); um
Messias Doutor[1]
(Jo 4:25; Mc 1:22.27); um Messias Juiz (Lc 3:5-9; Mc 1:8); um Messias Profeta
(Mc 6:4; 14:65). Conforme os seus interesses próprios ou de classe social, cada
um aguardava o Messias encaixando-o nos seus próprios desejos e expectativas.
Porém, apesar das diferenças, todos eles esperavam um messias glorioso[2]
e soberano. Ao que parece, ninguém (a não ser os anawim,
os pobres de Yahvé), esperava o Messias humilde e Servidor
anunciado pelo profeta Isaías. Somente os pobres (anawim) se lembravam de valorizar a esperança messiânica como um
serviço ecuménico do povo de Deus à humanidade. Maria, a pobre de Yahvé, disse
ao anjo: “Eis
aqui a
serva do Senhor!” Foi por ela que Jesus foi iniciado no caminho do serviço.
A origem dos cinco
Cânticos do Servo de Yahvé (Is 42:1-9; 49:1-6; 50:4-9; 52:13-15.53:1-12;
61:1-2) remonta a um grupo de discípulos e discípulas de Isaías que viviam no cativeiro da Babilónia
por volta do ano 550 a.C. Tal como o Filho do Homem,
também o Servo
de Yahvé era uma figura colectiva referida ao povo cativo
(cf. Is 41:8-9; 42:18-20; 43:10; 44:1-2; 44:21; 45:4; 48:20; 54.17) descrito
por Isaías como um “povo oprimido, sofredor, desfigurado, sem aparência de
gente e sem um mínimo de condição humana, povo explorado, maltratado e
silenciado, sem graça nem beleza, cheio de sofrimento, evitado pelos outros
como se fosse um leproso, condenado como um criminoso, sem julgamento nem
defesa” (cf. Is 53:2-8). Eis um retrato perfeito de uma terça parte da humanidade de
hoje!
Este povo-servo é
descrito como aquele que “não grita, nem levanta a voz, não solta berros pelas
ruas, nem quebra a planta ferida, nem apaga o pavio da vela que ainda fumega”
(Is 42:2). Ou seja, perseguido, não persegue; oprimido, não oprime; ferido, não
fere. Nele, o vírus da violência opressora do Império não
consegue penetrar, seja o vírus do império de Nabucodonosor, seja do império
neo-liberal. Esta atitude resistente do Servo de Yahvé é a raiz da
Justiça que Deus quer ver implantada no mundo todo. Por isso, ele chama este
povo para ser o seu Servo com a missão de irradiar a sua justiça pelo mundo
inteiro (Is 42:2.6; 49:6). Os cinco Cânticos do Servo são uma espécie de
cartilha para ajudar o povo oprimido, tanto de ontem, como de hoje, a descobrir
e a assumir a sua missão. [cf. Ulrich Berges, p.120; N. d. E]
Jesus conhecia
estes cânticos e orientava-se por eles. Na hora do baptismo
no rio Jordão, o Pai escolheu-lhe a missão de Servo (Mc 1:11). Na sinagoga de Nazaré, ao expor o seu
programa ao povo, Jesus assumiu esta missão publicamente, citando o 5º Cântico
do Servo (Lc 4:18-18 e Is 61:1-2). Depois da leitura ele disse: “Hoje
cumpriu-se esta passagem da Escritura que vocês acabaram de ouvir”. (Lc 4:21) A
partir daquele momento, Jesus percorreu a Galileia para ajudar o povo a descobrir e a assumir,
conjuntamente com ele, a missão de Servo de Deus (Mt 8:17). Foi esta
dimensão de serviço que mais marcou a formação que ele dava aos discípulos (Mc
10:42-43; 9:33-35).
Jesus foi o Servo
de Deus que percorreu o caminho dos Cânticos de Isaías até ao fim. A sua vida e
o seu testemunho são o melhor comentário destes Cânticos. É nesta sua atitude
de serviço que ele nos revela a face de Deus que nos atrai para si e nos indica
o caminho de regresso à Casa do Pai.
Parente próximo (go’el)[3],
irmão mais velho: resgatar e acolher os excluídos
Uma das expressões
mais antigas usadas pelos primeiros cristãos para exprimir o significado de
Jesus para as suas vidas é a do resgate
(go’el).
No Antigo Testamento, caso alguém, por motivo de pobreza ou de dívidas,
perdesse a sua terra ou fosse vendido como escravo, o irmão mais velho ou o
parente mais próximo devia entregar, do que tivesse de seu, o preciso para o resgatar e assim restaurar a convivência
fraterna no seio do clã ou da comunidade (Lv 25:23-55; Dt 15:7-11).
Para os primeiros
cristãos, Jesus
era o parente próximo (go’el), o irmão mais velho, que entregou tudo
de si, esvaziou-se a si mesmo para resgatar os seus irmãos e as suas irmãs,
vítimas da escravidão da Lei, do
racismo, da ideologia do império e da religião opressora, para que, novamente,
pudessem viver em fraternidade (cf. Gl 2:20; Fl 2:6-11).
No tempo de Jesus,
em nome da lei de Deus, muita gente era excluída e marginalizada. Jesus, a
partir da sua experiência de Deus como Pai, denunciou esta situação, a qual
escondia o rosto de Deus para os pequenos (Mt 23:13-36). Como parente próximo (go’el),
ele ofereceu um lugar aos que não tinham lugar na convivência humana. Acolheu
os que não eram acolhidos e recebeu como irmão e irmã os que a religião e o
governo desprezavam e excluíam (Mc 3:34). Resumindo o que já dissemos no
Capítulo 3 sobre a posição social da Comunidade Formadora, Jesus acolheu:
1. Os imorais:
prostitutas e pecadores (Mt 21:31-32; Mc 2:2-15; Lc 7:37-50; Jo 8:2-11);
2. Os hereges:
pagãos e samaritanos (Lc 7:2-10; 17:16; Mc 7:24-30; Jo 4:7-42);
3. Os impuros:
leprosos e possessos (Mt 8:2-4; Lc 11:14-22; 17:12-14; Mc 1:25-26);
4. Os marginalizados:
mulheres, crianças e doentes (Mc 1:32; Mt 8:17; 19:13-15; Lc 8:2ss);
5. Os colaboradores:
publicanos e soldados (Lc 18:9-14; 19:1-10);
6. Os pobres:
o povo da terra e os pobres sem poder (Mt 5:3; Lc 6:20-24; Mt 11:25-26);
Todas estas
pessoas, inclusivamente Paulo o perseguidor, fizeram a experiência de
terem sido resgatados para Deus por
Jesus, o irmão mais velho, o primogénito (Cl 1:15; Ap 1:5), que cumpriu para
com elas o seu dever de go’el. Jesus não tinha dinheiro, mas deu o que
tinha: entregou-se a si mesmo ‘Ele amou-me e
entregou-se por mim’, diz o apóstolo Paulo (Gal 2:20). Jesus
fez-se escravo, esvaziou-se a fim de nos enriquecer com a sua pobreza (2Cor
8:9) para que nós pudéssemos recuperar a liberdade e retomar a vida em
fraternidade.
O termo hebraico go’el
é tão rico que não tem tradução unívoca. No Novo Testamento, ocorrem os termos
libertador, redentor, salvador, consolador, advogado, paráclito, defensor,
parente próximo, irmão mais velho, primogénito. Todos esses termos, usados para
designar Jesus, referem-se, de uma ou de outra maneira, a este costume antigo
do go’el aplicado a Jesus, nosso
irmão mais velho. Apresentando-se como go’el,
redentor, dos irmãos e irmãs excluídas da convivência comunitária, Jesus revela
a face de Deus como Pai, como Mãe que acolhe a todos e vai atrás dos
abandonados. [Is 43:1-7; 66:19-24; N.E.]
Resumindo. Foi através
da janela destes três nomes Filho do Homem, Servo de
Deus e Redentor, todos os três tirados do Antigo
Testamento, que os primeiros cristãos olhavam para Jesus e transmitiam aos
outros o significado de Jesus para as suas vidas: o Filho do Homem caracteriza-se
pela humildade; o Servo de Deus, pelo serviço; o Redentor,
pelo acolhimento aos excluídos.
Humanizar, Servir, Acolher − os três traços
principais por onde Deus nos revela o seu rosto em Jesus e nos atrai para si.
Eles indicam o caminho mais antigo e mais tradicional para nós regressarmos à
nossa origem e para vivermos o essencial da boa-nova de Deus que Jesus nos
trouxe. Eles ajudam-nos a entender como Jesus é Filho de Deus e a perceber o
eixo central da formação que ele dava dos discípulos e discípulas.
Carlos Mesters, OCD
Jesus formando e formador
CEBI 2012, 73-80.
DOMINGO DE RAMOS
Glória ao FILHO por quem acedemos ao ESPÍRITO do PAI
«PASSO A OUVIR»:
JESUS, O EMPREGADO DE TODOS
JESUS MONTADO NUM ANIMAL DE CARGA
DESEJEI MUITO COMER ESTA PÁSCOA COM VOCÊS
JESUS, SERVO OBEDIENTE DE DEUS
[1] ‘Doutor’ no sentido de professor
universitário que tudo sabe. [Nota do Editor]
[2] A ‘Glória’, ou honra, pertence apenas a Deus e é sinónimo de Deus. A ‘Glória’ expressou-se na vitória sobre o
Faraó (cf. Ex 14:4.17) e, de modo particular, no monte Sinai (cf. Ex 33:18-22).
Igualmente, no Tabernáculo, o qual Deus cobre com a nuvem
(Ex 40:34-35; 1Rs 8:11). A ‘Glória’ é a «Vida de Deus em plenitude». A ‘Glória’
é o oposto a desonra, a humilhação, a vergonha, a abatimento, a ausência de esperança, a derrota. ‘Majestade’
ou ‘Glória’ podem ser sinónimos de Deus. A ‘Glória’ de Deus simboliza a Vitória igualizadora,
efectiva e definitiva. [Nota do Editor]
[3] R. de
Vaux, Les Institutions de l’Ancien Testament,
Vol. I, Cerf 19604, 40-41 [nesta obra, completar com a leitura do tópico
anterior, ‘Le type de la famille israélite’];
Gonzalo Flor Serrano (Luis Alonso Schökel - col.), Diccionario
de la Ciencia Bíblica, Verbo Divino 20052, 54; Xabier
Pikaza, Diccionario de la Biblia – Historia y
Palabra, Verbo Divino 20071, 410. [Nota do Editor]