Inconsequências
das Encíclicas Sociais
«A falácia básica da Doutrina
Social Católica do Patriarcado Ocidental em geral (não exclusivamente dos
Papas, mas também de outros teóricos, como Moltmann, Maritain, Vlastos, etc.) é
o non sequitur, o qual vicia os três
silogismos capitais de toda essa doutrina, três silogismos que me proponho
formular da seguinte maneira:
1.
Imagem
de Deus, logo dignidade humana.
2. Dignidade humana, logo direitos humanos.
3.
Direitos,
logo deveres.
Para "demonstrar" o primeiro silogismo recorre-se às
Escrituras, segundo a maneira tradicional dos escolásticos. O texto básico que
se cita é Gn 1,26-31, que, apesar de tudo não corrobora o primeiro silogismo.
(…) O que o texto revela não é o silogismo «Imago
Dei = dignidade humana» como pretende
a teoria dos direitos humanos, mas a equação «Imago Dei = nossa responsabilidade colectiva - partilhada com Deus - face à
totalidade da Criação».
«É este modelo de co-responsabilidade (ou seja, a ideia de Aliança)
aquele que deve impregnar toda a Doutrina
Social Católica, pois ele é o único que é capaz de constituir a base de
qualquer discurso sobre direitos, e
não o contrário. O Génesis não descreve em termos de «direitos» a primeira
violação da justiça inter-humana, mas como desprezo pela obrigação de comportar-se
como «guardião do irmão [ou da irmã]» , Gn 4,9. Mais a mais, se os direitos derivam da
dignidade humana, como atribuir direitos às criaturas infra-humanas?
(…)
«Há que vigiar cuidadosamente a linguagem acerca das obrigações e dos
deveres, já que tudo isso pode muito facilmente ser manipulado pelos poderosos
em proveito próprio. Podemos dar muitos exemplos deste tipo de manipulação: o
modo como, nos Códigos, os deveres inerentes às castas foram formulados pelos
brahmans, ou o modo como os varões codificaram, na sociedade patriarcal, as
responsabilidades das mulheres, ou os lugares que foram reservados aos leigos,
na Igreja. Isto obriga-nos a esclarecer dois aspectos.
1.
Primeiro,
em toda a autêntica Doutrina Social
Católica, o acordo acerca dos direitos das Nações Unidas tem que estar
condicionado pelas obrigações da Aliança Bíblica
(Aliança, na qual são co-partícipes Yahvé e os débeis) – no âmbito desta Aliança, as
obrigações dos fortes para com os débeis erigem-se como a própria ordem divina
[Paul Sieghart, «Christianity and Human Rights», The Month (Feb 1989) 48).
Esta é, sem dúvida, uma reorientação paradigmática da maneira de pensar
do Ocidente. Hollenbach ["Claims",
204] parece reclamar a mesma reorientação paradigmática, quando propõe a incorporação
dos «três
princípios morais estratégicos» no discurso sobre os direitos: a prioridade das necessidades dos pobres prévia à exigência
dos ricos, a libertação dos dominados
prévia à liberdade dos poderosos e a
participação dos grupos marginalizados prévia à preservação da ordem
que os exclui.
2.
Em
segundo lugar, uma Doutrina Social
Católica autêntica deve desenvolver a linguagem das obrigações dentro dum
quadro socialista no qual opere uma certa forma de democracia participativa
(mais do que apenas representativa ou liberal). A linguagem das obrigações
favorece a exigência de inculcar positivamente uma espiritualidade socialista
através de uma educação adequada, por oposição à fórmula dos direitos que fomenta
a exigência negativa de colocar limites/barreiras, numa sociedade constituída
por frágeis seres humanos.
«É lamentável que estas duas funções se tenham mesclado na actual
teologia da justiça social, na qual a linguagem dos direitos se converteu num
meio para promover uma «educação para a justiça», ao passo que as obrigações
inerentes aos direitos sejam tratadas como limitações legais que deverão recair
apenas sobre o Estado. Há que inverter este estado de coisas.» (…)
«Se o Patriarcado Ocidental se sente perturbado diante deste tipo de
discurso bíblico dum Deus que se subleva ao lado das vítimas de Mammón, ou
seja, se sente perturbado pela linguagem da libertação que o Deus do Terceiro
Mundo fala, isso significa que esse Patriarcado fracassou na sua missão de
proclamar algo que possui um valor único na revelação cristã-bíblica: JESUS como
IRREVOCÁVEL DEFENSOR, ENTRE DEUS E OS POBRES.
«A linguagem da Aliança Bíblica que [esta nova linguagem] usa, faz sentido no âmbito das culturas Orientais
(inclusivamente nas não teístas) em virtude da sua visão cósmica do mundo, ou seja, da
sua visão sacral e ecológica (por oposição a secular, ou seja, à racionalista e profana), e pelo facto de esta
visão do mundo apontar para uma espécie de "socialismo religioso" que se
reflecte na tendência
dos asiáticos em fazer derivar a nossa dignidade humana das nossas obrigações
como homens face ao cosmos e face a todos os seres. Este deveria ser o
paradigma da Doutrina Social Católica,
a qual praticamente já é praticada em algumas comunidades humanistas na Ásia.» [Aloysius
Pieris, «Liberación, Inculturación,
Diálogo Religioso – un nuevo paradigma desde Asia», Verbo Divino]
Cf. também – Frei Bento Domingues, op – «Religião
e Economia»
TEOLOGIA, UTOPIA E A IDOLATRIA
1.
Utopia moderna ou a
«boa-nova» burguesa e a teologia
A
passagem da sociedade tradicional para a moderna significou, como vimos a
transformação radical de conceitos, tais como, tempo, espaço e utopia. A
modernização e a "secularização" não significaram abandonar os sonhos
e desejos alimentados pelos anúncios religiosos, mas sim uma transformação
radical na concepção da realização desses desejos. Significaram o surgimento de
uma nova «Boa-Nova» em concorrência com o anúncio das religiões tradicionais.
Como diz José
Comblin, «a modernidade anuncia um evangelho, porque anuncia um mundo novo que será a salvação da
humanidade. A salvação que a igreja não pôde realizar, a modernidade promete
levá-la a cabo. Sem essa promessa não haveria propriamente modernidade».[1]
Acontece
que existe uma diferença fundamental entre este anúncio da boa-nova e o anúncio
feito pela cristandade tradicional. A mensagem da cristandade referia-se a um
mundo transcendente, escondido, invisível na sua parte mais importante. Para
fundamentar-se referia-se à autoridade de Deus e apelava para sinais afastados
da experiência directa: os milagres e as profecias acontecidos na história de
Israel, e de Jesus há 2000 anos. O objecto da promessa era a vida futura
invisível, ganha à custa da renúncia da vida presente, tudo baseado na pura
palavra de uma pessoa invisível.
A
boa-nova moderna, a utopia burguesa, não somente anuncia o futuro «de um mundo
renovado pela produção material, um mundo de abundância em que todas as
necessidades seriam satisfeitas, mais ainda, todos os desejos»[2],
mas mostra, no presente, os sinais desse futuro glorioso. Além disso, o
discurso moderno apela para a razão de cada um, para a experiência imediata.
Cada um pode experimentar por si mesmo os fundamentos da mensagem, apreciar
pessoalmente o seu valor, sem depender de uma autoridade ou da palavra de uma
pessoa invisível. Digamos, ao invés de pedir uma renúncia à vida presente, a boa-nova
moderna desvia a atenção da vida futura para dirigi-la para a vida presente.
Em
síntese, «o discurso moderno é um chamamento, um apelo: apela a uma conversão,
uma mudança radical de vida».[3]
Este aspecto do evangelho ocupa quantitativamente um lugar limitado na
literatura moderna, mas nunca deixa de estar presente. É como um pano de fundo
onde as coisas adquirem sentido. E, segundo Comblin, «sem ele a história
moderna teria sido diferente: não teria existido e a cristandade não teria
desaparecido».[4]
De
uma certa forma é isso que J. K. Galbraith está retratando quando diz:
"Esses homens da tecnoestrutura
[das transnacionais] são o novo
clero universal. Sua religião
é o sucesso comercial; sua prova de
verdade é a expansão e o lucro da empresa. Sua Bíblia é o relatório computorizado; seu confessionário é a sala das reuniões. A equipe de vendas leva a sua
imagem ao mundo, e a sua argumentação é geralmente denominada mensagem. (…) Os jesuítas dessa fé
austera são os diplomados da Escola da Administração de Harvard.»[5]
Quando
estamos dizendo que a modernidade prega uma boa-nova não estamos falando
somente num sentido figurado. É uma boa-nova tanto no sentido material, do
conteúdo, quanto no sentido formal de ser uma proposta universal e
universalizante. A modernidade não é uma simples alternativa frente a outras,
pois isso implicaria uma convivência com outras culturas particulares
divergentes, mas sim uma forma de organização social que necessita de se impor
mundialmente. O capitalismo – a versão da modernidade que nos interessa – não
pode conviver com formas de organização social que coloquem certos valores
acima da lógica do mercado e do critério da eficiência técnica. A defesa dos
valores humanos, dos valores éticos «objectivos», no campo económico, é considerado
como pré-moderno, como um obstáculo à modernização. É a famosa separação da
ética face à economia ou à ciência em geral. Como diz Roberto Campos, a
economia «pertence ao reino da produtividade e da eficiência, categorias
diferentes daquelas do reino da ética e da justiça. Os medievos falavam de justum praetium, segundo a ordem
natural; os hodiernos, falam apenas do "preço do equilíbrio" no
mercado.[6]
São dois reinos que não se interpenetram, que não se relacionam. Houve uma
negação radical dos valores humanos que transcendem as leis do mercado e a
assunção das leis do mercado como novos valores éticos. Só que, como vimos
anteriormente, isto não é assumido explicitamente porque esta assunção foi
feita em nome da nova racionalidade e da neutralidade ética das ciências. Sendo
assim, alguém só pode ser moderno na medida em que se transforma em defensor e
propagador da modernização onde quer que ainda subsistam vestígios de tradição
pré-moderna e dos valores que entram em conflito com o mercado.
1.1 «Religião
económica» burguesa
Esta
«boa-nova» da economia moderna burguesa pressupõe a ausência de limite para a
factibilidade da realização dos desejos humanos. Esta é a característica
marcante da modernidade. Esta ideia vulgarizou-se na expressão «querer é poder».
O sistema de mercado apresenta-se como a instituição que nos conduzirá à
realização de todos os nossos desejos. Com isso, o mistério do desejo, ou seja,
o mistério da religião revela-se como o sistema de mercado e o capitalismo
transforma-se num «religião económica». Ora, uma religião económica
que não admite transcendência – nem dos valores e nem dos desejos que
transcendem o mercado – pode continuar a ser chamada simplesmente
"economia". Assim, tem a vantagem de possuir uma «essência» religiosa
que gera relações devocionais com as pessoas e, ao mesmo tempo, a vantagem de
não sofrer a crítica de ser a herdeira de uma religião pré-moderna.
A
partir do pressuposto de que se pode realizar a utopia − os sonhos humanos − a
sociedade moderna apresentou o progresso técnico como o caminho para esta
realização. Como o avanço da técnica é tanto maior quanto for o grau de
concorrência, o sistema de mercado foi assumido como a única instituição capaz
de proporcionar a óptima alocação dos recursos e, por conseguinte, como o único
caminho para a realização da utopia. O critério último passou a ser, então, o
da busca da maximização do lucro que propicia a maximização da eficiência. Para
tanto, estabeleceu a defesa do interesse próprio como o «espírito» que deve
nortear todas as relações sociais e interpessoais.
A concorrência
como a relação básica e a defesa do interesse próprio como o valor
fundamental nas relações económicas e sociais geram necessariamente o
sacrifício dos mais fracos. Mas, como as causas deste sacrifício são
necessárias para o progresso, estes sacrifícios são percebidos como
«sacrifícios necessários» para o progresso que nos levará à utopia, ao Paraíso
Terrestre. Os sacrifícios humanos foram secularizados: deixaram de estar
fundamentados em princípios religiosos, mas apenas na ciência moderna.
Para
que a defesa do interesse próprio (egoísmo) possa gerar o bem-comum (o amor ao
próximo), ou para que haja uma identificação do interesse particular
da burguesia que busca a maximização do lucro com o interesse geral da
sociedade, é necessário um ente supra-humano capaz desta transformação ou, como
dizem os economistas neoliberais, capaz deste "milagre"[7].
O mercado foi apresentado, pela tradição económica burguesa, como a «mão
invisível» capaz desta proeza. Uma proeza digna de um Deus. Michael Novak,
confirmando isso, diz:
"A imagem de Deus subjacente no
livre mercado e no sistema trinitário do capitalismo democrático é Phronimos, a previdente inteligência
prática incorporada em agentes singulares de situações concretas
singulares."[8]
O
egoísmo, a defesa do interesse próprio no mercado, é apresentado assim como a
melhor forma de se atingir o bem-estar da colectividade, ou, por outras
palavras, de amar o próximo. Assim, os
sacrifícios humanos necessários para o progresso são feitos em nome do amor ao
próximo. No paradigma económico do sistema de mercado sucedeu, como diz Assmann,
«uma coisa tremendamente séria: o sequestro e a adulteração daquilo que há de
mais essencial no cristianismo, a concepção cristã do amor ao próximo e,
consequentemente, do amor a Deus. Aí está, também, a raiz teológica mais
profunda do sacrificialismo inerente a esse paradigma».[9]
Houve uma cabal redefinição do preceito cristão do amor ao próximo, efectuada
pelo novo e «efectivo magistério teológico» (sem que levasse esse nome, é
claro) da parte do pensamento económico»:[10]
(...)
Jung Mo Sung, teólogo cristão, filósofo (Brasil)
[47 pp.]
[1]
José Comblin, «A força da Palavra»,
Petrópolis, Vozes, 1986, p. 224.
[2] Idem, p.
215.
[3] Idem, p.
224.
[4] Idem, p.
225.
[5] John K.
Galbraith, «A era da incerteza», 6ª
edç., ver., São Paulo, Pioneira, 1984, p. 274.
[6] Roberto
Campos, «Além do cotidiano», Rio de
Janeiro, Record, 2ª edç., 1985, p. 65.
[7]
Milton & Rose Friedmann, «Liberdade para
escolher: o novo liberalismo económico», 2ª edç., S. Paulo,
Record, s/d,, p.15 (há edição de Portugal). Paul A. Samuelson, «Introdução à análise económica», vol. 1,
9ª edç., S. Paulo, Agir, p. 46.
[8]
Michael Novak, «O espírito do capitalismo democrático»,
Rio de Janeiro, Nórdica, s/d, (original de 1982), p. 131.
[9]
Hugo Assmann & Franz Hinkelammert, «A idolatria do mercado»,
Petrópolis, Vozes, (Col. Teologia e Libertação), 1989, p. 351.
[10] Idem,
p. 144.