«Os deuses (e os demónios), como é sabido, têm – pelo menos
na imaginação dos homens – o peculiar hábito da sorrateirice e da imprevisão:
aparecem onde menos se espera. Os homens atribuem-lhes estranhos poderes de
intervenção, para o bem e para o mal, na solução dos problemas humanos. A nossa
tese é a seguinte: nas teorias económicas e nos processos económicos
verifica-se uma estranha metamorfose dos deuses e uma aguerrida luta entre os
deuses. Esta suspeita, por tudo o que implica, deveria mexer com
os brios científicos de qualquer economista.
«Ídolos são deuses da
opressão. Biblicamente, o conceito
de ídolo e idolatria está directamente vinculado à manipulação de símbolos
religiosos para criar sujeições, legitimar opressões e apoiar poderes
dominadores na organização do convívio humano. No interior dos processos de intercâmbio
valorativo entre os homens, a troca simbólica de objectos e representações de
cunho sagrado costuma preservar uma determinada "utilidade", isto é,
um aspecto útil ou valor de uso. Fascinados por essa "serventia" dos
seus deuses, os seres humanos entregam-se prazerosamente a eles. Consumindo-os
(já que os mitos são bons para serem comidos), os homens, em geral, perdem a
consciência de que existem deuses devoradores da vida
humana. Os ídolos são implacáveis quanto às suas exigências de
sacrifícios. (…)
«Se falamos em idolatria e em "teologias perversas"
presentes na economia é porque nos preocupa o
sacrifício de vidas humanas legitimado por concepções idolátricas dos processos
económicos.» (Hugo Assmann e
Franz J. Hinkelammert, «A Idolatria do Mercado», VOZES, São
Paulo, 1989, pp. 11-12)
Até
o presidente americano Richard Nixon, um republicano conservador, proclamou,
em finais dos anos 70, que «agora somos todos keynesianos». Foi a defesa
keynesiana do Estado intervencionista
e dos mercados regulados que
conferiu ao «liberalismo» o seu sentido económico moderno: uma doutrina que
favorece um governo grande e activo, a regulação da indústria, impostos
elevados para os ricos e programas extensos de assistência social para todos os
cidadãos.
Nas
três décadas que se seguiram à Segunda Guerra Mundial, o liberalismo
igualitário moderno conduziu a taxas espetaculares de crescimento económico, salários
elevados, inflação baixa e níveis sem precedentes de bem-estar
material e de segurança social. No entanto, esta era dourada
do capitalismo controlado teve um ponto final com as
graves crises económicas dos anos 70. Em resposta a
calamidades nunca antes vistas, como os «choques petrolíferos», que da noite
para o dia quadruplicaram o preço do petróleo, a ocorrência simultânea de uma
inflação desgovernada, o aumento do desemprego («estagflação») e a queda dos lucros das empresas, uma estirpe totalmente nova de liberais
procurou uma saída através da reanimação da velha
doutrina do liberalismo clássico no novo contexto da globalização.
Estes
«neoliberais» subscreveram um conjunto comum de princípios ideológicos e
políticos consagrados à difusão mundial de um modelo
económico que enfatizava os mercados
livres e o comércio livre.
No entanto, destacavam partes diferentes da sua teoria em conformidade com os
contextos sociais específicos. Venerados pelos seus seguidores e detestados
pelos keynesianos, os neoliberais
acabaram por determinar – em inícios dos anos 80 – a agenda económica e
política para os 25 anos seguintes. Como veremos nos capítulos 2 e 3, os
neoliberais afirmavam que a regulação estatal paralisante, a despesa pública
exorbitante e as barreiras das taxas aduaneiras ao comércio internacional
haviam sido responsáveis pela criação das condições que levaram à inflação alta
e ao fraco crescimento económico nos países industrializados nos anos 70. Uma
vez aceite esta premissa, o próximo passo lógico era afirmar que estes fatores
continuavam a ser o principal obstáculo ao desenvolvimento económico no
hemisfério Sul. Foi assim que nasceu uma agenda de desenvolvimento global e
neoliberal essencialmente baseada nos chamados «programas de ajustamento
estrutural» e nos acordos internacionais de comércio livre. Como veremos também
nos capítulos 4 e 5, algumas instituições económicas poderosas – como o Fundo
Monetário Internacional e o Banco Mundial – impuseram a sua agenda neoliberal
aos países em desenvolvimento e extremamente endividados em troca de
empréstimos de que estavam muito necessitados. O colapso da União Soviética, em
1991, e a aceleração das reformas orientadas para o Mercado na China comunista
conduziram a um domínio sem precedentes do modelo neoliberal nos anos 90.
No
entanto, durante a última década, o neoliberalismo foi alvo de uma série de
críticas. A
crise económica global de 2008-2009 é apenas o último de uma série de desafios ao paradigma do mercado livre
ainda dominante. Mas, antes de apreciarmos toda a magnitude da ameaça
enfrentada pelo neoliberalismo, temos de nos familiarizar com as suas várias
dimensões, variedades e aplicações práticas. Comecemos, então, a nossa viagem
com uma descrição breve das suas principais ideias e princípios.
As três
dimensões do neoliberalismo
«Neoliberalismo»
é um conceito bastante lato e geral que se refere a um modelo ou «paradigma»
económico que se tornou preponderante nos anos 80. Concebido com base no ideal liberal clássico do mercado que se autorregula,
o neoliberalismo apresenta-se em várias modalidades. A melhor forma de
conceptualizar o neoliberalismo é, talvez, vê-lo como três manifestações
inter-ligadas: (1) uma ideologia; (2) um modo de
governação; (3) um conjunto de políticas. Vejamos agora
em mais pormenor estas dimensões fundamentais. (…)
Manfred B. Steger &
Ravi K. Roy
Professores do Instituto de Tecnologia de Melbourne; dedicam-se
ao estudo da Globalização e da Política Económica.
«Introdução ao Neoliberalismo», Conjuntura Actual Editora (www.actualeditora.pt), t.: 239851904; 213190240;
ISBN 978-989-694-041-6.
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