teologia para leigos

17 de fevereiro de 2015

A 2ª VAGA DO NEOLIBERALISMO

«Pois, se há crise, ela é-nos apresentada como o resultado da desonestidade de alguns banqueiros e não dos mercados. Logo, a solução é refinanciar o sistema financeiro, com o sacrifício do défice orçamental e dos seus impostos. É ao Estado que se estende a mão.

«Uma peça desse plano é a teoria, a autoridade da ciência. É a teoria que garante que não existe cientificamente outra opção porque a boa doutrina económica, certificada pelas melhores escolas, indica o caminho do ajustamento pela redução do salário, e que por essa via se assegura a glória. Esta ciência certa estipula uma mecânica implacável que reivindica, se houvesse dúvida, a própria natureza humana, porque o capitalismo é o sucesso do egoísmo, e todos somos assim.

«É portanto de ideias e de ideologias – e não só de políticas – que temos que discutir ao avaliar esta alternativa. Porque a ciência que a apresenta é uma ideologia, e a sua proposta é uma economia cruel. (…)

«O facto é que esta teoria é uma impostura: nem a redução de salários permitiu até agora a recuperação depois de uma crise, nem a flexibilização do despedimento ou o corte do subsídio de desemprego tem permitido criar empregos. Apesar da evidência, este sucessivo fracasso da política de redução do salário, tal como a geração de ciclos violentos de recessões e depressões trágicas, nunca tem servido de contestação suficiente à teoria, pela simples razão de que esta ideologia não reconhece a refutação pelos factos – ela defende-se sempre com ficções. (…)

«É certo que esta teoria tem pergaminhos. O Prémio Nobel, a começar por aí, foi entregue nos finais de 2010 aos norte-americanos Peter Diamond, do MIT (Massachusetts Institute of Technology) e Dale Mortensen, da Northwestern University, e ainda ao cipriota Christopher Pissarides, da London School of Economics, pelos seus trabalhos sobre as dificuldades de equilíbrio dos mercados de trabalho. Estes laureados propuseram-se provar que é preciso reduzir o subsídio de desemprego para forçar os trabalhadores desocupados a aceitarem mais depressa um trabalho por um salário baixo. Robert Shimer, um apoiante destes investigadores, que é o editor de uma das revistas mais importantes na economia académica, o Journal of Political Economy, resumiu assim as conclusões premiadas: «A maior parte destes modelos sugere que, mesmo numa economia em depressão, os subsídios de desemprego mais generosos tendem a aumentar a taxa de desemprego.» Vice-versa, os subsídios mais curtos reduzem o desemprego.

«Na verdade, esta ficção é uma ideia antiga. Há já quase vinte anos – ou mais? – que se repete a mesma ladainha: «Os governos europeus não devem deixar que os receios pelas consequências da sua acção sobre a repartição dos rendimentos os impeça de se lançar com audácia numa reforma de fundo do mercado de trabalho. A sua flexibilização passa pela revisão do subsídio, do salário mínimo legal e de disposições que protejam o emprego», avisava solenemente o Boletim do FMI em 23 de Maio de 1994. Há mais de uma década que é proposto este programa de flexibilização do contrato de emprego e de redução do salário.

«O outro pilar deste plano é a submissão. Aceitar o que é irrazoável, destruir as políticas que têm criado caminhos novos, subverter o bom senso, isso é submissão. E é submissão que leva uma parte da sociedade a aceitar que o problema é o trabalho, que o trabalho é um risco.

«Um exemplo evidente foi citado por Viviane Forrester. Ela é uma crítica cultural do diário francês Le Monde, especializada em Virgínia Woolf e Vincent Van Gogh, mas um dia decidiu desviar-se da literatura e escrever um protesto contra o «horror económico», o capitalismo que despreza o trabalho. Forrester cita o próprio Le Monde do dia 12 de Março de 1996, quando este descrevia candidamente, numa notícia sobre a evolução das Bolsas, o efeito nefasto de uma má notícia - a subida do emprego nos Estados Unidos: «A sexta-feira 8 de Março deixará nos mercados financeiros o rasto de um dia negro. A publicação de números excelentes, mas inesperados, de emprego nos Estados Unidos foi recebida como um banho de água fria. Os mercados, que temem sobretudo o sobreaquecimento e a inflação, foram vítimas de um verdadeiro pânico. Em Wall Street, o índice Dow Jones, que na terça-feira anterior tinha batido um recorde, terminou com uma queda de mais de 3%; trata-se da mais forte baixa, em termos percentuais, desde 1991. As praças financeiras europeias também caíram muito. As praças financeiras parecem particularmente vulneráveis a qualquer má notícia.» (Viviane Forrester, «O horror económico», Lisboa, Terramar, 1997, p. 125)

«Não lemos isto tantas vezes, quase sem nos darmos conta? É a nossa história. Um exemplo recente é o valor das acções da PT, que subiu generosamente 13,7% no dia em que se anunciavam despedimentos numa empresa sua participada, a Páginas Amarelas. Duas semanas depois, no dia e que se faziam os pagamentos de dividendos extraordinários de centenas de milhões de euros, o entusiasmo não abundava tanto e a cotação da PT até desceu ligeiramente, 0,3%.

«A assimetria violenta entre o Capital e o Trabalho, que tem sido lentamente imposta como a evidência da modernidade, exprime-se nesta banalidade: o índice de saúde económica, que são as cotações nas Bolsas, é prejudicado pelo anúncio de um aumento do emprego. É uma má notícia, um dia funesto, um verdadeiro pânico.

«O trabalho é visto como um perigo para a economia e assusta os mercados financeiros. O trabalho deve, por isso, ser submisso, ordeiro, aceitar o seu preço como factor de produção, recusar o desincentivo preguiçoso que é acenado pelo subsídio de desemprego. Ora, se as praças financeiras são particularmente vulneráveis a qualquer má notícia, sabemos também que são particularmente atentas a qualquer boa notícia. Estão, por isso, à espera que se cumpra a recomendação do FMI, porque há dezenas de anos que o FMI apela aos governos para que não se deixem tolher pelo efeito da sua política nos rendimentos das populações. Submissão.

«A sociedade moderna está assim construída sobre esta desigualdade, a qual exige deferência, de tal modo que o fisco protege os rendimentos do Capital, os impostos regressivos são reforçados, a segurança social financia o lucro, as operações de Capital são isentas da obrigação de registo. Pior ainda, a solução que nos está a ser apresentada para a crise económica é: o Capital exige uma parte maior do salário directo (reduzindo o pagamento pelo trabalho/hora) e do salário indirecto (transferindo para o Privado o financiamento público da saúde ou da educação). A isto chama-se recuperação da competitividade, para evitar uma palavra vulnerável - a rentabilidade. É um plano de batalha para a ofensiva que prossegue pela nossa terra dentro.

«Estamos a assistir ao renascer da economia vudu, das fantasias delirantes que pretendem uma globalização destruidora, arrastando os salários e os direitos sociais para a desqualificação, destruindo países, condenando milhões de pessoas à desesperança. Depois de uma grave recessão provocada pela desregulação do sistema financeiro, vem agora o tempo da recuperação das ideias liberais e da desarticulação das regras sociais CONQUISTADAS por um século e meio de lutas democráticas. Quanto pior a devastação provocada por estas políticas liberais, mais agressivas voltam elas agora.» (Francisco Louçã, «Portugal agrilhoado – a economia cruel na era do FMI», Bertrand Editora, pp. 11-17; ISBN 978-972-25-2303-5 – OBRA DE LEITURA OBRIGATÓRIA)






A SEGUNDA VAGA DO NEOLIBERALISMO NOS ANOS 90:
- O «GLOBALISMO DE MERCADO» DE BILL CLINTON
E A «TERCEIRA VIA» DE TONY BLAIR


As posições ideológicas adotadas nos anos 90 pelo presidente Bill Clinton e pelo primeiro-ministro Tony Blair refletiam uma abordagem intermédia que abrangia grandes partes do neoliberalismo, procurando, ao mesmo tempo, incorporar partes de uma agenda social progressista tradicionalmente associada aos partidos políticos da esquerda democrática. Com o objetivo de alargar a atração do seu partido «reformado» a todas as classes sociais, Blair afirmava que o «Novo Partido Trabalhista» defendia o «progresso social através do sucesso individual». Este slogan pretendia significar que o crescimento económico liderado pelo setor privado podia ser articulado, com sucesso, com a responsabilidade do governo de prestar serviços sociais de boa qualidade a todos os seus cidadãos. Por exemplo, num seminário político em Washington, em 1998, o enérgico primeiro-ministro anunciou a intenção de criar uma rede global de partidos do «centro-esquerda», que desenvolveriam uma estrutura política comum capaz de responder aos desafios do mundo do pós-Guerra Fria. A chave para forjar esta «Terceira Via», que superaria as intenções obsoletas da antiga esquerda keynesiana e da nova direita thatcherista – insistiu Blair –, era um compromisso com o princípio do centro-esquerda de reforço da solidariedade social sem abandonar o ideal neoliberal do empreendedorismo orientado para o mercado.

Do mesmo modo, no seu discurso sobre o Estado da União de 1996, quando o presidente Clinton anunciou ao Congresso e ao povo americano que «a era do Estado pesado acabou», não queria dizer que na era global não haveria lugar para governos reduzidos e ativistas, que funcionavam de forma mais eficiente para adotarem um modo de governação neoliberal. Tal como o seu homólogo britânico, o presidente americano estava convicto de que aquilo a que alguns neoliberais entusiastas chamavam «supercapitalismo» ou «turbocapitalismo» podia ser combinado com provisões moderadas de assistência social e com uma maior responsabilidade empresarial. Além disso, os dois líderes concordavam na necessidade de eliminar os acréscimos neoconservadores da primeira vaga do neoliberalismo – o hiperpatriotismo e o militarismo, o apego aos «valores da família» antiquados, o desprezo pelo multiculturalismo e a negligência em relação às questões ecológicas. Esperavam que o seu produto «purificado» – um globalismo de mercado com consciência social – impulsionasse o mundo inteiro para uma nova era dourada de progresso tecnológico e prosperidade. Esta segunda vaga do neoliberalismo «modernizado» teve um impacto profundo na paisagem política dos anos 90 pós-comunistas, uma vez que representava um modelo apelativo para as forças políticas progressistas ansiosas por regressar ao poder, após mais uma década de reaganomia e de thatcherismo. Na viragem do século, os líderes dos tradicionais partidos sociais-democratas europeus – o primeiro-ministro holandês Wim Kok, os primeiros-ministros italianos Romano Prodi e Massimo D’Alema, os primeiros-ministros franceses Pierre Beregovoy e Lionel Jospin, e o chanceler alemão Gerhard Schröder – haviam adotado a nova agenda de centro-esquerda. Unidos no esforço de liberalizarem as relações comerciais e de integrarem as economias nacionais num mercado global único, Clinton e Blair acabariam por assumir a autoria dos «loucos anos 90» – uma década de explosão económica.


O globalismo de mercado de Bill Clinton

Desde o início da sua presidência que Bill Clinton estava convencido de que a economia americana estava indissociavelmente ligada a uma série de processos que tornavam o mundo um lugar muito mais interligado e interdependente. Uma «nova economia» de alcance global evoluía de forma rápida, aparentemente impulsionada pelas forças irresistíveis do mercado. Ao aparecer como a palavra da moda dos anos 90, a «globalização» foi usada para designar principalmente a extensão e intensificação das relações económicas em todo o planeta. De facto, a economia era uma parte importante da história da globalização, pois a gigantesca compressão do tempo e do espaço teria sido impossível sem a expansão mundial dos mercados, a ascensão das empresas multinacionais e a intensificação dos fluxos económicos em todo o globo. Além disso, estes desenvolvimentos económicos foram facilitados pela transformação rápida da tecnologia de informação, de comunicação e de transportes – uma «revolução digital» simbolizada pela proliferação dos computadores pessoais, da internet, da televisão por satélite, dos contentores estandardizados, dos cabos de fibra óptica, dos códigos de barras eletrónicas e das cadeias globais de abastecimento. No entanto, a globalização não se desenvolveu apenas no plano material do comércio e da tecnologia. Foi também uma consequência direta do domínio mundial da ideologia neoliberal após o desmoronamento do comunismo soviético em 1989-1991. A interpretação pública da globalização enquanto fenómeno essencialmente económico, impulsionado pela dinâmica irreversível do mercado livre e da tecnologia de ponta, foi encorajada por quadros de grandes empresas multinacionais, lobistas empresariais, jornalistas influentes e especialistas de relações públicas, elites culturais e celebridades do mundo do espetáculo – bem como por líderes políticos como Bill Clinton, que articulavam as suas agendas liberais com essa estrutura «globalista».

Como dissemos no capítulo 1, estas elites do poder global imbuíram a «globalização» de ideias e sentidos neoliberais, expandindo assim a sua influente narrativa ideológica do «globalismo de mercado» através das fronteiras nacionais e culturais. Por exemplo, uma dessas teses neoliberais apresenta a criação de mercados globalmente integrados como um processo racional que fomenta a liberdade individual e o progresso mundial. A ideia subjacente a isso é que os mercados e os princípios consumistas são universalmente aplicáveis porque são apelativos para todos os seres humanos (interessados), independentemente dos seus contextos sociais. Nem sequer as grandes diferenças culturais deviam ser vistas como obstáculos ao estabelecimento de um mercado livre global e único de bens, serviços e capitais. Uma tese neoliberal relacionada afirma que a liberalização do comércio e a integração global dos mercados acabará por beneficiar materialmente toda a gente. Esta tese serve para aumentar a atração global do neoliberalismo porque pretende garantir às pessoas que a criação de um mercado global único irá retirar todas as regiões da pobreza. De facto, algumas instituições internacionais, como o FMI e o Banco Mundial, justificaram a sua imposição de programas de ajustamento estrutural aos países menos desenvolvidos em termos de «alívio da pobreza».

Outra tese neoliberal apresenta a liberalização e a integração global dos mercados como inevitável e irreversível, quase como uma força natural, à semelhança das condições atmosféricas ou da força da gravidade. Esta ideia facilita o trabalho dos neoliberais para convencerem as pessoas de que se devem adaptar às regras intrínsecas do mercado livre caso queiram sobreviver e prosperar. Outra tese, ainda, associa a ideia dos mercados globalmente expansivos e autorreguladores ao conceito de democracia e de escolha individual, sugerindo que as formas económicas e políticas da liberdade estão indissociavelmente interligadas. Ao mesmo tempo, porém, os neoliberais insistem no primado dos mercados sobre a política, afirmando que o estabelecimento da democracia depende da economia do mercado livre e não o contrário.




As cinco teses do globalismo do mercado

Tese 1: A globalização tem a ver com a liberalização e a integração global dos mercados.

Tese 2: A globalização é inevitável e irresistível.

Tese 3: Ninguém manda na globalização.

Tese 4: A globalização beneficia toda a gente (a longo prazo…).

Tese 5: A globalização promove a difusão da democracia e da liberdade no mundo.



«Convicto Globalista do Mercado», o presidente Clinton acreditava que a expansão sustentada da economia americana dependia da vitalidade (…)



Manfred B. Steger & Ravi K. Roy
Professores do Royal Melbourne Institute of Technology; dedicam-se ao estudo da Globalização e da Política Económica.