POLIVALÊNCIA DA SEXUALIDADE
O conteúdo do número 100 desta revista Concilium
[Dez. 1974], apresenta o tema da sexualidade sob um ponto de vista crítico, e,
por isso, opõe-se à monovalência da sexualidade ensinada pela doutrina oficial
da Igreja católica, que se baseia na equação «sexualidade=procriação» (dentro do
quadro do matrimónio). Não incluo, nessa doutrina oficial, os textos
conciliares que se exprimem de modo bem distinto. Aquela equação [«sexualidade=procriação»] não resiste a uma análise crítica por parte do
método indutivo das ciências naturais e das ciências do Homem, na medida em que
os dados que estas disciplinas abarcam excedem, em muito, a equação sexualidade=procriação.
Mesmo assim, este nosso texto não tem como finalidade indicar o caminho para a
verdade, baseado nos contributos orientadores dessas ciências. Cingir-nos-emos,
estritamente, ao tema proposto e situá-lo-emos, fenomenologicamente, como uma descrição
sistemática daquelas dimensões semióticas da sexualidade, que se
podem descobrir na experiência humana e no conhecimento científico da mesma.
[…]
II – Estudo estratigráfico da sexualidade
A partir destes princípios que acabamos de enunciar
devem deduzir-se diferentes dimensões semióticas da sexualidade, sem que nos
detenhamos a valorizá-las.
1. A partir da conduta e da experiência pessoal é
possível descrever, a sexualidade, segundo três direcções:
a)
Como uma vivência
interior possuidora dum conteúdo bem definido. É o que acontece
com os desejos, fantasias, sonhos, sensações e excitações sexuais, bem como o
prazer, o medo, a alegria ou a repugnância sexuais. Neste sentido, o processo
sexual ou é voluntário ou é provocado por pessoas ou objectos (reais ou
imaginários). Aquilo que cada coisa representa para cada indivíduo depende de
muitas razões: da sua história pessoal, do momento e da situação presente, de
condições internas e externas.
b) Como um comportamento do indivíduo para consigo próprio,
com conteúdo bem concreto (aceitação ou rejeição da sua corporeidade e
sexualidade) com que se autoexcita mediante estímulos imaginários ou manuais
(auto sexualidade sem parelha real), etc.
c)
Como um comportamento
do indivíduo, de conteúdo bem definido, com pessoas e / ou objectos.
Mesmo uma pessoa sob continência sexual tem
vivências e comportamentos deste tipo, pois só seria assexual o homem não
sexuado, e isso não existe.
2. Através dessas dimensões, podemos traçar um outro
corte segundo as funções da sexualidade, nas quais, pelo menos parcialmente se
actualizam as três dimensões atrás resumidas, com o seu valor específico.
Enumeremos as mais importantes:
a)
O prazer,
graças ao contacto, a estímulos ópticos ou acústicos, graças a jogos amorosos,
o orgasmo, etc.
b) O relaxamento, na medida em que deixa o
indivíduo satisfeito durante experiências prazenteiras genitais ou
extra-genitais.
c)
A relação,
no sentido geral e até certo ponto não especificado, que vai desde a atracção
ao amor e até à agressividade. Esta função «social» da sexualidade apresenta
muitíssimas variantes e múltiplos níveis de intensidade (desde a união extática
até à radical separação entre sexualidade e amor), de acordo com todos as
formas de entendimento ou oposição e desavença entre os seres humanos (aversão
aos homens e às mulheres, discriminações de minorias sexuais, etc.).
d) A reprodução: quer nos atenhamos à biografia
geral de cada indivíduo quer ao período de «capacidade reprodutiva» da pessoa,
esta função é temporalmente limitada, ao passo qua as mencionadas anteriormente
persistem durante toda a vida. Por conseguinte, durante a fase procriativa, a
sexualidade significa algo mais que apenas reprodução: a reprodução não é uma
forma mais de experiência sexual, mas, somente, uma consequência possível da
sexualidade, caso aconteçam determinadas condições biológicas. Não tem nada a
ver com a qualidade da relação inter-humana nem com a forma como o indivíduo
vive a experiência sexual. De facto, nem todas
as crianças são «fruto» do amor. Além disso, até pode dar-se o caso
que se deseje ter um filho, mas não é a intenção em si que faz com que a
reprodução aconteça. Em resumo, o plano a que ela pertence é diferente das
outras funções da sexualidade anteriormente mencionadas.
Esta enunciação não pretende, de modo algum, hierarquizar,
ainda que, num simples relance, ela denuncie uma certa ordenação enraizada na
tradição católica (mas não apenas nela). O prazer, regra geral, ou nunca
aparece ou é citado como função última, no fim, coisa que se compreende, e até
é lógica, caso se persista e insista no primado da função reprodutiva, se
tivermos em conta a insignificância do orgasmo da mulher para efeitos da
procriação. Para tal finalidade, o orgasmo do homem é obrigatório, ao passo que
o da mulher é supérfluo. Isto define uma concepção discriminatória da mulher,
que fica condenada a uma sexualidade passiva. Do ponto de vista etnológico,
isto significa uma humilhação, por exemplo, do inimigo (cf. as cenas…).
[…]
VII – Polivalência e cristianismo
Caso nos decidamos a volver o
olhar para as fontes genuínas do cristianismo, não encontraremos nelas nenhum
argumento sólido para uma concepção monovalente da sexualidade. Na verdade,
deveríamos dizer que aquelas fontes não nos proporcionam nenhuma concepção
particular da sexualidade, mas, sim, uma visão global do homem todo.
O Homem é concebido como uma
realidade criada, no que está incluída a sua sexualidade, uma obra em cujo
conjunto se pode contemplar uma dupla dimensão: a
a)
Horizontal – como pessoa em relação com os outros homens, e a
b) Vertical – como
pessoa diante de Deus.
É
a partir deste conceito central que devemos entender as valências da
sexualidade humana. Dito por outras palavras: é da pessoa humana que a sexualidade recebe o
seu significado e o seu sentido. O Homem, ao enfrentar-se com a sua
sexualidade, sente-se responsável não por algo que seja pré-pessoal ou
sub-pessoal, mas perante uma realidade que ficou para sempre radicalmente
integrada na sua categoria como pessoa.
A
norma da sexualidade é o Homem criado na sua dupla dimensão: enquanto aquele
que vive
diante de Deus e, ao mesmo tempo, se relaciona com todos os demais.
Josef Duss-von Werdt
Revista Internacional de
Teología, Concilium,
nº 100, Madrid Dez. 1974, pp. 488-496.