«Espelho meu, espelho meu…»
É pouco comum encontrar pessoas
preocupadas com a meditação: não está na moda (alguma vez esteve?). Na
melhor das hipóteses, as pessoas falam de sonhos, de projectos, de serem felizes.
E, no entanto, andem por onde andarem as suas preocupações pessoais, elas têm
sempre que ver com o sentido da existência, ou seja, com o sentido
que a(s) sua(s) vida(s) te(ê)m. É certo que, regra geral, as pessoas dizem que
o sentido da vida é a felicidade: isso não deixa de ser verdade. Porém, à
medida que a conversa progride começam as disjunções, ou seja, começam as
questões. Sempre que não desistimos, sempre que queremos especificar e perceber
melhor, então, aí começam as dificuldades: a felicidade será verdadeiramente
aquilo que define a nossa essência? Dito mais correctamente: a felicidade
constitui o fim último da nossa existência? Esta pergunta é, em si, um tanto
estúpida.
Vejamos. Quando se pergunta a alguém
para que é que vives, qual o sentido da tua vida, que gostarias de ser, que
andas aqui a fazer? julgamos que estamos a falar do sentido da existência,
do sentido da vida. Mas quem ouve a nossa pergunta pensa em moldes que têm mais
a ver com o objectivo da sua vida pessoal. É usual responder que gostaria
de ser feliz, gostaria de poder realizar certos sonhos (conhecer
outros povos, viajar, ser professora, ser cientista, realizar filmes, ser
cantor ou actor, ser médica, ser uma estrela de futebol, etc. etc. etc.). E,
sem dar conta, mistura várias realidades numa só resposta.
É muito frequente misturarmos
(confundirmos) duas realidades: a felicidade e o sentido da vida. (…)
[…]
Para Jesus, a felicidade é somente doação, sobretudo aos mais débeis e marginais[1]:
«tomai e comei todos, isto é o meu corpo» (Mt 26:26; Mc 14:
22-25; Lc 22:14-20; Jo 6:51-59;
1 Cor 11:23-27). Para Jesus é possível ser-se
feliz, realizar um grande sonho, passando pelos outros (Vergílio Ferreira),
pelos mais débeis, antes de chegar à casa de si, à casa do ego. A antropologia de Jesus caracteriza-se pelo
«excesso de dom»! Quando a nossa felicidade está centrada no mais
débil, ou seja, quando ela tem o seu centro no marginal (fora de mim e fora do
meu clã, e não em nós nem no nosso ego ou no ego do nosso clã)
é, então, que ela encontra o seu ponto de
equilíbrio estável final saudável[2].
A felicidade centrada no clã (“os da mesma raça que eu”, “os do meu clube”) é
uma felicidade onde a Tradição se encarrega de policiar os desvios à lei da
sobrevivência (à custa dos outros
clãs). Àquela outra felicidade pessoal ─ existência centrada no mais débil (alter-ego), e para lá do clã ─ denominamos espiritualidade
cristã. Nela, a sobrevivência é, antes de tudo, a sobrevivência do
Outro (não a sobrevivência duma Religião ou de Deus como ente abstracto):
trata-se duma “sobrevivência-boomerang”,
em que a minha sobrevivência, antes de chegar a mim, deve passar, em primeiro
lugar, pelo outro/débil (que funciona como instância de
validação). É esse o sentido último da nossa vida![3],
e não Deus, como explica Adolphe Gesché[4].
Às outras modalidades de felicidade
chamamos projectos de felicidade, hipóteses, sonhos. Nelas está já contida
─ como uma espécie de «sombra de um sonho» (Píndaro) ─ a espiritualidade cristã, a qual,
pelo contrário, não é uma sombra, mas um projecto bem palpável, visualizável. Um ser humano
débil é demasiado concreto e ostensivo; não pode ser substituível
por uma análise, um poema, um filme, um êxtase estético, uma contemplação, uma
mesa-redonda ou um suspiro caritativo acerca da pobreza: um pobre fragiliza totalmente a minha espiritualidade.[5]
Nas felicidades pessoais do ego também
está (enterrada) em potência a doação total, a qual aí geme, tal como
geme o tesouro (Mt 13:44), a pérola (Mt 13:45) e o grão de trigo (Jo 12:24),
que aí estiveram enterrados e gemeram ─ sabe-se
lá quanto tempo ─ até
serem encontrados, adquiridos, arrebatados e se tornarem num apelo à conversão
que só sabe multiplicar gratuitidade e dom[6].
No extremo mais extremo da
felicidade está a entrega total aos marginalizados, aos mais diferentes de
entre todos os outros diferentes; nesse extremo está um aflitivo pedido - «Tenho fome»
(Mt 25:35) (abertura ao mais alto inesperado, a um Deus revelado na
debilidade, à mais alta surpresa da alteridade).[7]
[…]
Jesus ainda pode ser uma proposta de
felicidade para nós, hoje, na medida em que percebermos que o seu sonho é
possível ser concretizado numa comunidade de pobres/iguais porque partilham
(débeis e esfomeados, que recusam disputar o maná; Ex 16:9; Act 5:1-11). Foi
essa proposta que Jesus fez quando, diante duma multidão de marginalizados,
proclamou as Bem-aventuranças, caminho que nos garante que podemos ser felizes, indo além do nosso ego, sempre mais
além (cf. a distribuição que multiplica e faz
igualdades várias: Jo 6; Mt 14:13; 15:32; Mc 6:34; 8:1; Lc 9:10).
Para lá do nosso ego
(felicidade pessoal consumista centrípeta), meditemos no sentido da nossa existência (felicidade
comunitária serviçal centrífuga). É certo que ela pode trazer consequências
muito sérias ao nosso ego. Algumas
consequências serão, garanto-vos, muito felizes (“partilhavam tudo; em todos,
uma só alma”; Act 2:46). De vez em quando, paremos um pouco para meditar
seriamente no sentido que estamos a dar à nossa vida: viemos para ser servidos
(por Deus, pela Natureza, pelos outros) ou para servir? Jesus veio para ser
Filho[8], Jesus veio para servir e fazer a vontade do Pai
(Mt 20:28; Mc 10:45; Lc 22:27b; Jo 13:11-17): construir uma humanidade fraterna.
Para grandes solidões, grandes espelhos: viremos isso do avesso e busquemos um
sentido para as nossas vidas que vá além da auto-estima do nosso ego.
A felicidade ao incorporar em si uma
ética de compaixão ultrapassa a Moral
e cria um dinamismo de Vida que,
pela sua potência, terá de se alimentar dum “Amor Maior”, do amor de Deus, que
é doação gratuita e fidelidade plena.
«Mal o sol nasce, Senhor,
exponho diante de ti o meu pedido
e fico à espera confiante.»
(Salmo
5:4)
[pb]
«O MAIS IMPORTANTE É QUE EU SEJA FELIZ?»
-
aquilo em que Hans Küng acredita
Ω
A comunidade
«Que
bom e agradável os irmãos viverem juntos e em harmonia» (Sl 133,1)
Contrariamente ao que poderia
parecer à primeira vista, não se deduz que o cristão tenha que viver necessariamente
entre os cristãos. O próprio Jesus Cristo viveu no meio de inimigos
e, por fim, foi abandonado por todos os seus discípulos. Na Cruz ficou completamente
sozinho, rodeado de malfeitores e blasfemos. Veio para trazer a paz aos
inimigos de Deus. É por isso que o lugar da vida do cristão não é a solidão dos claustros
dos conventos, mas o território onde o inimigo acampa. Aí a sua missão
e a sua tarefa.
«O reino de Jesus Cristo deve ser
edificado entre inimigos. Quem recusa isto renuncia a fazer parte deste reino e
prefere viver rodeado de amigos, entre rosas e lírios, longe dos malvados,
envolto de gente piedosa. Não estais vendo que, assim, blasfemais e traís
Cristo? Se Jesus se tivesse comportado como vocês, quem se teria salvo?»
(Lutero)
“Dispersá-los-ei entre os povos,
contudo, mesmo que bem longe, lembrar-se-ão de mim” (Zac 10:9) É da vontade de
Deus que a cristandade seja um povo disperso, lançado como a semente «entre
todos os reinos da terra» (Dt 4:27). Esta é a Sua promessa e a Sua
condenação. O povo de Deus deve viver longe, entre infiéis, mas será a semente
do reino espalhada pelo mundo inteiro.
“Reuni-los-ei porque os resgatei … e
eles regressarão” (Zac 10:8-9). Quando acontecerá isso? (…)
Seja como for, a presença sensível
dos irmãos é para o cristão fonte incomparável de alegria e consolo. Preso e já
perto do final dos seus dias de vida, o apóstolo Paulo apenas pode chamar Timóteo
«seu muito amado filho na fé» para que regresse a vê-lo e a tê-lo a seu lado. Não
esqueceu as lágrimas de Timóteo aquando da última despedida (2Tm 1:4). Outra
vez, pensando na Igreja de Tessalónica, Paulo ora a Deus «noite e dia com
grande ânsia para voltar a vê-los» (1Ts 3:10), e o apóstolo João, já velho,
sabe que o seu gozo não ficará completo até que esteja junto dos seus a fim de
falar-lhes de viva voz em vez de por escrito com papel e tinta (2Jo 12).
O crente não se envergonha nem se considera demasiado carnal por
desejar ver o rosto dos seus crentes.
O homem foi criado com corpo, num corpo surgiu a nós o Filho de Deus sobre a
terra, num corpo foi ressuscitado; no corpo o crente recebe Cristo no
sacramento e a ressurreição dos mortos dará lugar à plena comunidade dos filhos
de Deus, formado de corpo e espírito. (…)
A medida na qual Deus concede o dom
da comunhão, varia. Uma visita, uma oração, um gesto de bênção, uma simples
carta é suficiente para dar ao cristão isolado a certeza de que nunca está só.
(…)
Os cristãos de hoje descobrem,
novamente, que a vida comunitária é
verdadeiramente a graça que sempre foi, algo extraordinário, «o momento de descanso
entre os lírios e as rosas» a que se referia Lutero.
Dietrich Bonhoeffer
‘Vida en
comunidad’, Sígueme 2009 (excertos p. 9-13)
[1]
O Evangelho de Jesus é um apelo à Conversão, ele exige conversão, metanóia,
inversão, mudança de paradigma, “mudança de lugar social”, opção por uma outra
visão ou ponto de vista. Essa Metanóia implica “olhar com os óculos do pobre”.
É Jesus quem dá o exemplo e demonstra como isto se realiza: Ele próprio «pára o processo
social e muda de lugar social» (Lucas 18:39-40; Jo 9:41). Jesus
nunca fez uma pregação humanitária em abstracto, com base em “princípios
universais”. Jesus era um «ser social» consciente da realidade social concreta.
[2]
Jesus não é apenas um “gajo porreiro”, amigo do seu amigo, simpático, mas alguém com um
Projecto para a Vida. Jesus vive eticamente o projecto de Deus para
o seu Povo, e vivi-o de forma activa, criativa, dinâmica segundo uma «Ética
da Compaixão pelo Pobre». É a partir daí – de baixo – que Jesus começa a construir a sua
Casa. Jesus
fez uma «opção de vida»: superou a ’norma’, a ‘lei’, colocando a
Compaixão pelo espoliado no centro da sua vida de doação. Foi assim que ele
entendeu o Projecto de Deus para a Humanidade: a construção duma Humanidade Fraterna e
Serviçal! A vida de Jesus tinha um sentido e esse sentido, esse
«destino» descobriu-o ao responder às mil interrogações que o assaltavam em
jovem: «Por que caminhos da vida hei-de seguir?» [Heráclito, Fragmento 138]. Aos poucos foi ficando
claro, para Jesus, que esse caminho era o «Caminho das Bem-aventuranças» (Mt
5:1-12; Lc 6:20-23): viver com os olhos postos no povo que sofre e os ouvidos
na palavra do Pai (digamos: um caminho às avessas). Ir pelo mundo fazendo o
bem, libertando e dando graças (Act 10:38). É sobre essa «ética
desconcertante» de Jesus (JM Castillo), baseada na revelação dum «Deus que se funde
e se confunde com o humano débil», que Jesus ergue o seu projecto de
Vida: ser a presença do Deus da debilidade
entre os mais débeis. Em suma, não é possível encontrarmos a felicidade sem
antes construirmos um projecto para a vida com um sentido sério, em que a minha
sede de me dar de graça é a melhor garantia
de receber de graça (Mt 10:8b); melhor: de
receber mais do que aquilo que se dá… (Mt 25:19-21) Apesar de tudo, este insight de Jesus resultou: quando tudo
parecia uma leviandade adolescente e irresponsável, um verdadeiro fracasso
absoluto (Emaús; Lc 24:13), Deus ressuscitou-o! Dizendo: Estive sempre contigo, agora repousa
em Mim para sempre. (Jo 17:18-23)
[3]
Adolphe Gesché fala de «Deus entre parêntesis», Marcel Gauchet fala do
cristianismo como «a religião da saída da religião» e José Comblin diz: «Nas memórias dos
evangelhos, Deus permanece muito discreto; não ocupa quase nenhum lugar».
[4]
«A nossa intenção com este livro não é fazer de Deus o “funcionário do
sentido”, como se só Deus fosse a última e a única chave do sentido.» (…) «Deus
não é o sentido das coisas, como se tudo aquilo que pudéssemos dizer acerca do
sentido se encontrasse apenas em Deus. Mas o sentido, também não é Deus, como
se a procura do sentido equivalesse à procura de Deus. O sentido não substitui
Deus e Deus, muito menos, substitui o sentido. Tanto num caso como no outro,
prejudicar-se-ia o sentido e corria-se o risco de o alienarmos, e
prejudicar-se-ia Deus reduzindo-o a uma função. Ao mesmo tempo, e em
ambos os casos, ferir-se-ia o Homem.» [«El Sentido», Sígueme 2004, Introdución, p. 19]
[5] Sl 146 - «Não ponhais a vossa confiança nos poderosos, (...) Feliz de quem
tem por auxílio o Deus de Jacob, (…) Ele salva os oprimidos, dá pão aos que
têm fome (…) e ampara o órfão e a viúva [o pobre]».
Mc 12:33 - «e amar o
próximo como a si mesmo vale mais do que todos os holocaustos e
todos os sacrifícios». Mt 5:43 - «Amai os vossos inimigos e orai pelos que vos
perseguem. Fazendo
assim, tornar-vos-eis filhos do vosso Pai que está no Céu, pois Ele faz com que
o Sol se levante sobre os bons e os maus e faz cair a chuva sobre os justos e
os pecadores.» Três variantes do destino do nosso amor: o outro
(‘o próximo’, em abstracto), o outro-meu-inimigo
(o que me rejeita totalmente) e o pobre
(o que eu, sem querer, fabrico e rejeito). Perante todas as possíveis
hipóteses, Jesus pede que purifiquemos o nosso modo de amar. Que ele passe dum
amor narcisista desculpabilizado a um amor purificado, verdadeiro,
incondicional. De todas elas, a proposta de fazer do pobre o centro do amor
introduz e clarifica uma dimensão nova (social) que não estava claramente
contida nas outras. Isso constitui uma dupla purificação do amor.
[6] Ver Frère Éric: «Mais tout gémissement appelle, toute clameur
interpelle. Appelle une présence, interpelle pour une conversion.». Fonte : «A SALA DE CIMA», 14 de Agosto
2013 ; Cf. http://asaladecima.blogspot.pt/2013/08/leve-toi-et-marche-frere-eric.html
[7]
«Passar
do dever à necessidade», in A ÉTICA DE CRISTO, JM Castillo,
Edições Loyola, p.59. «O pensamento da Modernidade foi tomado de obsessão pelo
problema da “identidade”, que é o problema da auto-consciência, o problema do eu.
(…) Acontece, no entanto, que essa pergunta, por mais importante que seja,
termina por fechar
o sujeito em si mesmo, bloqueando-o na bolha
do próprio eu. Daí a necessidade de passar a outro delineamento: da pergunta
pela “identidade” à pergunta pela “diferença”. Daí que, em autores como Lévinas
e Derrida, a ideia da diferença é pensada começando pelo Outro e não por ele Mesmo, de
maneira que o Outro “é o novo centro de atenção na filosofia e na ética”
[Miroslac Milovic]. Produz-se, assim, a grande viragem de que necessitamos neste momento
para sair de nós próprios e dedicar a devida atenção aos mil problemas que
afectam o outro, os outros.» Podemos dizer que o que mais se assemelha ao ser
do homem é o desejo e não o dever. Então, há que descobrir a
proposta existencial que faça passar do dever ao desejo, à necessidade de desejar «metas excessivas e
totalmente distintas» (M. Horkheimer). «Kant estabeleceu-o de modo
luminoso. Se o homem que combate pela liberdade – diz ele – não crê que a
liberdade é possível, se nem sequer está convencido disso a partir de algo de
dentro de si próprio ainda que longínquo, se não está convencido de que a
liberdade existe, se nem tiver uma espécie de consciência de que existe um «reino
de Deus» (a expressão é de Kant),
onde a liberdade se desfralde em todo o seu esplendor, esse homem nunca
encontrará forças para travar os seus combates pela liberdade e não
encontrará o seu destino» (A.
Gesché, «El Sentido», Sígueme, 2004, 112). «Só as palavras excessivas [liturgia, onde a liberdade se
desfralda em todo o seu esplendor] serão capazes
de fazer de um homem um ser desejante (o que significa algo mais que um ser mobilizado,
confrontado com os seus deveres ou movido por um imperativo)» (ibidem, p. 111)
[8]
«Ser Filho
do Pai é receber
dele uma missão e conformar toda a vida a essa missão, colocar
todos os momentos da existência, as decisões, as opções sob a direcção das suas
palavras» (José Comblin, «JESÚS DE
NAZARET», Ed. Sal Terrae, Santander ‘El Pozo de Siquem’, 1977, p. 70-71).