teologia para leigos

14 de janeiro de 2025

O Ressuscitado é o "Crucificado"







O Ressuscitado é o Crucificado

Leitura da Ressurreição de Jesus a partir dos crucificados da Terra

Jon Sobrino sj



Esta edição monográfica é dedicada à ressurreição de Jesus enquanto acontecimento e verdade fundamental para a fé cristã. Neste breve artigo, queremos recordar outra verdade não menos fundamental para a fé: que o Ressuscitado não é outro senão Jesus de Nazaré assassinado (o crucificado). Não nos move nenhum "a priori" masoquista ‒ como se fosse reprovável sentir, na fé, algum momento de alegria e esperança ‒, nem nenhum ‘a priori’ dialético que conceptualmente fosse indispensável para a reflexão teológica. Pelo contrário, estamos movidos por uma dupla seriedade: seriedade para com as histórias do Novo Testamento por um lado, e, por outro, para com a realidade de milhões de homens e de mulheres.

Antes de mais, queremos dizer que é necessário lembrar que o Ressuscitado é o crucificado, pela simples razão de que isso é a mais lídima verdade e que é assim – e não de outra forma – que a ressurreição de Jesus é apresentada no Novo Testamento. Esta verdade («o ressuscitado é o crucificado») não é apenas uma verdade factual da qual deveríamos ser informados como sendo apenas mais um dado do mistério pascal, mas uma verdade fundamental, no sentido em que fundamenta a realidade da ressurreição e, portanto, fundamenta qualquer interpretação teológica da ressurreição.

Em segundo lugar, queremos dizer que na humanidade de hoje há muitos homens e mulheres, povos inteiros, que são crucificados. Esta situação maioritária da humanidade torna a memória do crucificado algo de ‘actualmente ainda vivo’ e exige esta recordação para que a ressurreição de Jesus seja uma boa nova cristã concreta, e não abstrata, idealista. Por outro lado, são estes homens crucificados da história que nos oferecem a perspectiva privilegiada para captar a ressurreição de Jesus de uma forma cristã e de, dela, fazer-se uma “apresentação cristã”. É isso que pretendemos fazer de seguida: concretizar cristãmente alguns aspetos da ressurreição de Jesus a partir da sua realidade crucificada, que, por sua vez, é melhor descoberta a partir dos crucificados da história.



1-O triunfo da justiça de Deus

Rapidamente, através de um processo de crença, o ocorrido na ressurreição de Jesus foi universalizado. A cruz e a ressurreição começaram a funcionar como símbolos universais: da morte enquanto destino de cada ser humano e, enquanto anseio de imortalidade, como esperança de cada ser humano. O poder ressuscitador de Deus foi apresentado como garantia dessa esperança para além e contra a morte.

Tudo isto está correto, mas convém que não nos precipitemos neste processo de universalização, mas antes mergulhemos na historicidade concreta do destino de Jesus.

Na primeira pregação cristã, embora de forma estereotipada, a ressurreição de Jesus foi apresentada da seguinte forma: «Jesus de Nazaré […] Vós o matastes, cravando-o na cruz pela mão de gente pagã. Mas Deus ressuscitou-o, libertando-o dos grilhões da morte» (Act 2, 22-24; cf. o mesmo esquema em Act 3, 13-15; 4, 10; 5, 30; 10, 39; 13, 28ss.). Neste anúncio, é dada uma importância fundamental ao facto de alguém ter ressuscitado alguém, mas não menos importância é dada à identificação de quem fora ressuscitado por Deus.

Este homem não é outro senão Jesus de Nazaré, o homem que, segundo os Evangelhos, pregou a vinda do Reino de Deus aos pobres, denunciou e desmascarou os poderosos, foi perseguido por eles, condenado à morte, executado e, mesmo assim, manteve em tudo isso uma fidelidade radical à vontade de Deus e uma confiança radical no Deus a quem obedeceu. Nos primeiros discursos, ele é identificado como «o santo», «o justo», «o autor da vida» («o Príncipe da Vida»: Act 3, 15ss). E muito em breve o seu destino de morte é também interpretado como ‘o destino dos profetas’ (1 Ts 2,15).

A importância dessa identificação não consiste, obviamente, apenas em dar a conhecer o nome específico daquele que foi objeto da ação de Deus, mas no facto de que, através dessa identificação, da narração e da interpretação da vida do crucificado, compreendamos o que está envolvido na ressurreição de Jesus. Quem viveu assim e por isso foi crucificado, Deus o ressuscitou. A ressurreição de Jesus não é, portanto, apenas um símbolo da omnipotência de Deus, como se Deus tivesse decidido, arbitrariamente e sem conexão com a vida e destino de Jesus, mostrar a sua omnipotência. A ressurreição de Jesus é, antes, apresentada como a “Resposta de Deus” à ação injusta e criminosa dos seres humanos. Portanto, por ser uma resposta, a ação de Deus é entendida como corroboração das acções de todos os seres humanos que originaram esse tipo de reacção cruel: o assassinato dos justos. Apresentada desta forma, a ressurreição de Jesus mostra que a justiça triunfa sobre a injustiça; não é simplesmente o triunfo da omnipotência de Deus, mas da Justiça de Deus, embora Deus se sirva de um acto de poder para mostrar essa Justiça. A ressurreição de Jesus torna-se assim uma Boa Notícia, cujo conteúdo central é que, uma vez e em plenitude, a Justiça triunfou sobre a injustiça, a vítima triunfou sobre o carrasco.



2-O escândalo da injustiça que mata

A acção vitoriosa de Deus, aquando da ressurreição de Jesus, não poderá nunca ofuscar ou secundarizar a inaceitável gravidade das acções dos carrascos que levaram à inevitabilidade, por parte de Deus, de ressuscitar Jesus. Os primeiros discursos repetem-no continuamente: "mataste-o". É verdade que há uma tendência para suavizar a responsabilidade pelo assassinato de Jesus: «Irmãos, sei que o fizestes por ignorância» (Act 3, 17). Mas esta frase consoladora e motivadora de conversão não reduz de forma alguma a extrema gravidade de assassinar os justos. Na ressurreição, surge exemplarmente a afirmação paulina de que onde abunda o pecado, a graça abunda ainda mais. Porém, esta superabundância de graça enfatiza ainda mais a gravidade do pecado de assassinar o justo.

Se levarmos a sério a dupla e antagónica apresentação da ação de Deus e dos seres humanos no destino de Jesus, podemos pelo menos reconsiderar em que consiste o escândalo primário da história e como devemos lidar com ele. Uma concentração unilateral na ação ressuscitadora de Deus pressupõe que este escândalo é, em última análise, a nossa morte pessoal futura. Assim, o que torna possível e reclama a ressurreição é a coragem da esperança na própria sobrevivência pessoal. Porém, se continuarmos a relembrar a afirmação «vós o mataste!», então o que se destaca em primeiro lugar como escandaloso não é simplesmente a morte final de cada um de nós, mas o assassinato dos justos e a possibilidade humana, mil vezes concretizada, de matar os justos. A questão que a ressurreição coloca é se também participamos no escândalo da morte dos justos, se estamos do lado daqueles que os assassinam ou do lado do Deus que lhes dá a vida.

A ressurreição de Jesus não só coloca o problema de “como podemos lidar com a nossa própria morte futura”, mas também nos lembra que temos de lidar com a morte e a vida dos outros; que a tragédia do ser humano e o escândalo da história não consistem apenas no facto de o ser humano num certo momento da sua vida ter de morrer, mas na possibilidade de matar o outro. Estas reflexões não pretendem minimizar o problema universal da morte pessoal ou ofuscar a indubitável mensagem de esperança que aparece na ressurreição de Jesus. Pretendem apenas sublinhar que já existe o imenso escândalo da injustiça que mata no coração da vida (no coração da história), e que a forma de lidar com esse escândalo é a forma cristã de enfrentar também o escândalo da própria morte pessoal. Por outras palavras, a coragem cristã na ressurreição de cada um de nós vive da coragem de superar o escândalo histórico da injustiça; a esperança necessária, como condição da possibilidade de crer na ressurreição de Jesus como futuro abençoado da própria pessoa, passa pela prática do amor histórico de dar vida àqueles que morrem na história.

Também para a esperança na própria ressurreição é válida a fórmula evangélica universal do “esquecimento de si mesmo” para se recuperar como cristão. Aquele para quem a sua própria morte é o escândalo fundamental e a esperança de sobrevivência o seu maior problema, não terá uma esperança cristã nascida da ressurreição de Jesus; ele terá uma esperança centrada em si mesmo e para si mesmo, o que é compreensível, mas não necessariamente uma “esperança cristã. “Aquilo que descentra a nossa própria esperança” e faz dela esperança verdadeiramente cristã é tomar como absolutamente escandalosa a morte real do crucificado, com a qual não se pode concordar, nem sobre a qual algo deve, em última análise, ser feito em segundo plano em relação à própria pessoa, em virtude da esperança da própria ressurreição. Esse escândalo histórico é a mediação cristã para o escândalo da própria morte. E a luta resoluta, perseverante, verdadeiramente «contra toda a esperança» pela vida dos seres humanos é a mediação cristã para que a esperança se mantenha na própria ressurreição.



3-Esperança para os crucificados

A teologia actual da ressurreição superou, felizmente, a conceção “dolorista” (masoquista) do cristianismo. Foi capaz de enfatizar, por dissemelhança e às vezes em oposição a outros símbolos de esperança – como, p. ex., os símbolos provenientes da filosofia grega ‒ que o "seu" símbolo de esperança é mais credível do que os outros, na medida em que abrange os aspetos corpóreos, sociais e até cósmicos da ressurreição. Ao fazê-lo, recuperou aspetos fundamentais do NT e tentou colocar-se em sintonia com as exigências das antropologias actuais. Procurou, com razão, tornar credível o símbolo cristão da ressurreição. Mas, a nosso ver, foi precipitada essa universalização, bem como os seus destinatários preferenciais e o lugar hermenêutico do seu entendimento. Perante essa universalização apressada queremos, aqui, fazer uma correção.

Se levarmos a sério o que foi dito até agora, verificamos que estamos, não diante de uma leitura fundamentalista dos textos, mas de uma profunda seriedade para com esses mesmos textos: a ressurreição de Jesus é, em primeiro lugar, esperança para os crucificados. Deus ressuscitou um homem crucificado e, desde então, há esperança para os crucificados da história. Eles poderão, realmente, ver no Jesus ressuscitado o primogénito dos mortos, porque na verdade e não apenas intencionalmente eles O reconhecem como o irmão mais velho. Por isso, os crucificados da história poderão alimentar a coragem de esperar pela sua ressurreição, e mais: que essa coragem nasce já dentro da história, o que é um “milagre” análogo ao que aconteceu na ressurreição de Jesus.

A correlação entre a ressurreição e o crucificado, análoga à correlação entre o Reino de Deus e os pobres que Jesus pregou, não significa des-universalizar a esperança de todos os seres humanos, mas encontrar o lugar certo para a sua universalização. Esse lugar ‒ o mundo dos crucificados ‒, não é um lugar excecional ou esotérico. Não devemos esquecer que a cruz de Jesus, antes de ser ‘A Cruz’ ‒ expressão a que nos habituámos e que vulgarizamos ‒ é uma cruz entre muitas outras antes e depois de Jesus. Não se pode ignorar que, no mundo de hoje, há milhões de seres humanos que não ‘morrem simplesmente’, mas que (simplesmente e de várias maneiras) morrem como Jesus morreu «às mãos dos pagãos», às mãos dos idólatras modernos da Segurança Nacional ou da absolutização da riqueza. Muitos seres humanos morrem realmente crucificados, assassinados, torturados, desaparecidos, injustiçados. Muitos milhões mais morrem na lenta crucificação causada pela injustiça estrutural. Hoje em dia há povos inteiros transformados em farrapos e dejetos humanos vítimas dos prazeres de outros povos, povos sem rosto nem figura, povos como os crucificados [pelo Império Romano]. Infelizmente, isto não é uma pura metáfora, mas uma realidade quotidiana. Do ponto de vista quantitativo, o que a ressurreição de Jesus realmente prova hoje é que ela pode dar esperança à grande maioria da humanidade.

Do ponto de vista qualitativo, a ressurreição de Jesus torna-se um símbolo universal de esperança, na medida em que todos os homens e mulheres participam de algum modo na crucificação; por outras palavras, na medida em que a morte de cada homem tem a qualidade de crucificação. Esta é a morte cristã por excelência e desse tipo de morte pode-se ter a esperança cristã da ressurreição. É necessário, portanto, participar da crucificação, mesmo que analogicamente, para que haja uma esperança cristã.

Este não é o momento de analisar sistemática ou fenomenologicamente a analogia da crucificação. Digamos apenas que, quando a própria morte não é apenas o produto de limitações biológicas ou do desgaste produzido pela manutenção da própria vida, mas quando ela é o produto de se doar por amor aos outros e ao que é indefeso, pobre, produto da injustiça, então há uma analogia entre essa vida e a morte de Jesus. Depois, e só depois, do ponto de vista cristão, também se participa na esperança da ressurreição. É a comunhão com a vida e com o destino de Jesus que dá esperança de que, o que foi realizado em Jesus, se realizará também em nós.

Fora dessa “Comunidade com o Crucificado”, ainda que seja analogicamente e segundo formas as mais diversas, a ressurreição apenas aponta para a possibilidade da “sobrevivência”. Mas essa mesma sobrevivência – como afirma a mais clássica doutrina da Igreja – é ambígua: ela tanto pode ser salvação como condenação. Para que haja esperança na própria sobrevivência e para que essa sobrevivência seja salvífica, é preciso participar da crucificação. A partir daí podemos universalizar a esperança da ressurreição e torná-la numa boa notícia para todos. Mas, para que esta universalização seja cristã, é preciso partir, como tantas vezes deve ser, do escandaloso paradoxo cristão: a boa nova é para os pobres, a ressurreição é para os crucificados.



4-A credibilidade do poder de Deus através da cruz

Os crucificados da história esperam a salvação. Para isso, sabem que o Poder é imprescindível. No entanto, desconfiam do que é “puro poder”, pois isso lhes é sempre desfavorável na história. O que eles querem é um poder que seja verdadeiramente credível. Promessas simples não desencadeiam necessariamente, por mais maravilhosas que sejam, a esperança; isso só é conseguido por aqueles que falam com credibilidade. Por isso, é tão importante confessar a omnipotência de Deus, que é capaz de «dar vida aos mortos e chamar à existência o que não existe» (Rm 4, 17), bem como fazer com que o amor de Deus seja credível, isto é, que este poder seja credível. Para isso, devemos voltar novamente ao crucificado e reconhecer nele a presença de Deus, como diz Paulo, e também a expressão do amor de Deus que Ele dá ao seu Filho por amor. Sem estas considerações, por mais ameaçadas que estejam pelo antropomorfismo ou por mais insondável que seja o mistério que elas expressam, o poder de Deus na ressurreição não é simplesmente uma boa notícia.

Na cruz de “Jesus já crucificado” revela-se, antes de mais nada, a impotência de Deus. Esse desamparo, por si só, não produz esperança, mas torna credível o poder de Deus que será revelado na ressurreição. A razão é que a impotência de Deus é expressão da Sua absoluta proximidade aos pobres e sinal de que Ele partilha o destino dos pobres até ao fim. Se Deus esteve na cruz de Jesus, se partilhou assim os horrores da história, então a sua ação na ressurreição é credível, pelo menos para os crucificados. O silêncio de Deus na cruz, que causa tanto escândalo à razão natural e à razão moderna, não o é assim para os crucificados, pois aquilo que eles estão realmente interessados em saber é se Deus também estava na cruz de Jesus. Se assim é, consuma-se a proximidade de Deus aos homens, iniciada na Encarnação, anunciada e presentificada por Jesus durante a sua vida terrena. O que a cruz diz, em linguagem humana, é que nada na história é capaz de colocar limites à proximidade de Deus para com os homens. Sem esta proximidade, o poder de Deus na ressurreição permaneceria como pura alteridade e, portanto, ambígua e historicamente ameaçadora para o crucificado. Mas com essa proximidade eles podem realmente acreditar que o poder de Deus é uma boa notícia, porque é amor. A Cruz de Jesus continua a ser, em linguagem humana, a expressão mais completa do imenso amor de Deus pelos crucificados. A Cruz de Jesus diz credivelmente que Deus ama os homens, que Deus pronuncia uma palavra de amor e salvação e que Ele diz e se entrega enquanto amor e salvação: a Cruz diz – permitam-nos a expressão – que ‘Deus passou na prova do amor’, para que possamos então também nós crer no seu poder.

Quando nos damos conta da surpreendente, inovadora, ímpar e extraordinária presença amorosa de Deus na Cruz de Jesus, então a Sua presença na ressurreição deixa de ser apenas poder (sem amor), alteridade (sem proximidade) ou «deus ex machina» (deus a-histórico); consequentemente, a ação ressuscitadora de Deus e a Esperança na ressurreição mantêm-se, naturalmente, como objetos de fé e de esperança. A presença de Deus no crucificado não torna estas realidades mais evidentes ou mais demonstráveis. Os crucificados são os que devem ter mais dificuldade nessa fé e nessa esperança. Porém, quando ouvem dizer que Deus estava na Cruz de Jesus, dão-se conta de algo extremamente importante: que o poder de Deus não é opressor, mas salvador; que não é pura alteridade em relação a eles, mas proximidade amorosa. Deste modo, a ressurreição de Jesus pode tornar-se o «seu» símbolo de esperança (Marcos 15,39 - «O centurião que estava em frente dele, ao vê-lo expirar daquela maneira, disse: «Verdadeiramente este homem era Filho de Deus!»).

Uma ressurreição tornada credível através da proximidade de Deus na Cruz também confirma, para os crucificados, a sua intuição mais profunda no presente, ainda que esta intuição esteja sempre ameaçada pela resignação, pelo cepticismo ou pelo cinismo. Uma ressurreição tornada credível através da proximidade de Deus na Cruz também confirma que o Bem é mais real do que o mal, mesmo que este nos inunde por toda a parte; a Graça é mais real do que o pecado, mesmo que o pecado continue a dar a morte, e que há mais Verdade na teimosia da Esperança, há mais Verdade em tentar sempre o novo, em procurar sempre as libertações históricas, em não fazer um pacto com a natureza limitada e pecaminosa da história ‒ ainda que ambas estejam omnipresentes ‒ do que na falsa sabedoria da resignação.

Em última análise, a teimosia da esperança é aquilo a ressurreição transmite ao crucificado; e fá-lo não porque é uma manifestação de poder, mas porque é uma manifestação do amor de Deus. O poder puro e duro não gera necessariamente esperança, mas um otimismo calculado. O amor, porém, transforma as expectativas em esperança. O “Deus crucificado” é o que faz com que seja credível o «Deus que dá vida aos mortos», porque se revela como um Deus de amor e, por conseguinte, como esperança para o crucificado.



5-A autoridade senhorial de Jesus no presente: o ‘homem novo’ e a ‘terra nova’

A ressurreição de Jesus aponta para o futuro absoluto, mas também aponta para o presente histórico. Jesus é agora Senhor e os crentes são agora os homens novos e as mulheres novas. A ressurreição de Jesus não os separa da História, mas introdu-los nela de um modo novo, na medida em que os crentes no Ressuscitado já vivem como “ressuscitados dentro das condições da História”. Além disso, há uma correlação entre as duas novidades: o atual senhorio de Jesus revela-se na existência de homens novos. São eles que transformam em realidade "in actu" o facto de Jesus “ser desde já” o Senhor da História.

Contudo e novamente, esta grande e consoladora verdade está referida ao crucificado. Sem a memória activa e eficaz do crucificado, o ideal da “pessoa nova” toma um rumo perigoso e anticristão, reivindicando uma “identificação directa” com o Ressuscitado. Daqui podemos deduzir dois tipos de consequências desastrosas. Ou a “pessoa nova” é equiparada à pessoa que salta fora da história mundana e fica entregue à sua sorte, ao seu devaneio individual ‒ quaisquer que sejam as suas intenções, ‘vidé’ todos os tipos de movimentos entusiastas, pentecostais, etc., ‒ ou, o que é pior, a “pessoa nova” é equiparada a um ser humano que olha a história de cima para baixo e de fora para dentro, tentando assim assenhorear-se do gesto do Ressuscitado, procurando dominar a realidade mundana em nome do poder do Ressuscitado, tal como o demonstram muitas atitudes autoritárias e dogmáticas da Igreja em relação aos homens e às mulheres (vidé: Conferência Episcopal Italiana e ordenação de sacerdotes gays).

Esta perversão na compreensão e prática da “pessoa nova” tem a sua origem naquilo a que podemos chamar a compreensão “docetista” da ressurreição de Jesus. Esta compreensão não nega a carne de Jesus, como fazia o docetismo clássico, mas torna a vida e, sobretudo, a cruz de Jesus algo provisório, que efectivamente desaparece quando ocorre a ressurreição. Deste modo, um ressuscitado é apresentado sem cruz, um fim sem provação, uma transcendência sem história, um senhorio sem serviço.

Não iremos agora entrar em detalhes concretos quanto às consequências históricas perniciosas do perigo que aqui formulamos abstractamente. Queremos apenas recordar o crucificado a fim de evitar o perigo de qualquer tipo de identificação directa com o crucificado e contribuir positivamente para mostrar como os seres humanos novos podem desde já viver como ressuscitados no interior da história.

O caminho para o homem e a mulher novos não é outro senão o caminho de Jesus para a sua ressurreição. Dele se diz que foi feito Senhor pelo seu rebaixamento (Filipenses 2,1-18), no qual duas coisas são realçadas. A primeira é que Jesus passou por um processo de se tornar Senhor; e a segunda é que esse processo foi um processo de fidelidade àquela história concreta que produziu esse aviltamento. Também não há outro caminho para a “pessoa nova”. Seria um grave erro pensar que a encarnação e a fidelidade à história eram necessárias apenas para Jesus, como se pudéssemos ser poupados àquilo que Ele não foi poupado. Em termos gráficos, seria um erro grave pretender apontar para a ressurreição de Jesus na sua última fase, sem passar pelas mesmas etapas históricas pelas quais Jesus passou e que o levaram à sua última fase. A vida da “pessoa nova” é essencialmente um processo.

O conteúdo deste processo, que é descrito como um processo de humilhação, é bem conhecido. Trata-se da encarnação no mundo dos pobres (Leonardo Boff, «El Precio de la liberdad»; entrevistado por J. M. Castillo e J. A. Estrada. Col. “El intelectual y su memoria”, Editorial Universidad de Granada, ISBN 9788433838483), de lhes anunciar a boa nova, de sair em sua defesa, de denunciar e desmascarar os poderosos, de assumir o destino dos pobres e assumir a consequência última dessa solidariedade, a Cruz. É isto que é viver como se estivéssemos ressuscitados.

Em palavras de Paulo, consiste em «tornar-se filhos no Filho», e, numa frase mais histórica, consiste no Seguimento de Jesus. Viver como homens e mulheres ressuscitados é percorrer o caminho de Jesus e não se identificar directamente com o ressuscitado. É percorrer, fiéis à História, o caminho que conduz à cruz.

O actual senhorio dos crentes não é outra coisa senão o serviço à história, na qual devem encarnar-se, demonstrando assim que Cristo já é o Senhor da História. Este senhorio não é exercido simplesmente porque os crentes O reconhecem como Senhor, mas porque eles são servos «in actu». Ao falarmos do Reino de Cristo hoje estaríamos bem longe da verdade se com isso quiséssemos dizer que Cristo passou a ser servido pelo mundo, passou a ter o mundo inteiro como seu vassalo. A verdade é bem diferente. O reino de Cristo torna-se real na medida em que há servos como Ele foi.

Sem dúvida, este é o grande paradoxo cristão, abundantemente repetido, mas difícil de assimilar: ser senhor é servir. A ressurreição de Jesus não eliminou este paradoxo, mas sancionou-o definitivamente. Assim, o senhorio de Cristo manifesta-se no carácter servil da vida dos crentes e na eficácia deste serviço ao mundo.

A primeira significa que o novo ser humano não é outro senão o servo humano, aquele que verdadeiramente crê que aquele que dá é mais feliz do que aquele que recebe, que aquele que mais se rebaixa para servir é maior. O segundo significa que este serviço é para a salvação do mundo.

No NT afirma-se que Jesus já exerce um senhorio «cósmico». Esta linguagem é vertiginosa, mas pode ser facilmente compreendida se for historicizada a partir de outro tipo de linguagem do Novo Testamento, como a da «nova terra e novo céu», ou, sobretudo, da linguagem do próprio Jesus: «o Reino de Deus». O crente é o senhor da história aquando da tarefa do estabelecimento daquele reino aquando da luta pela justiça e na libertação integral, na transformação de estruturas injustas em estruturas mais humanas. Usando a linguagem da ressurreição, poderíamos dizer que o senhorio se exerce repetindo na história o gesto de Deus que ressuscita Jesus dos mortos: dar vida aos crucificados da história; dar vida àqueles que estão ameaçados nas suas vidas. Esta transformação do mundo e da história segundo a vontade de Deus é a forma assumida pelo senhorio de Jesus, que assim se torna verificável! Aqueles que a ela se dedicam vivem como que “ressuscitados na história”.

“Seguir Jesus”, “servir", “trabalhar pelo reino”, são realidades exigidas pelo Jesus histórico. Alguém pode perguntar porque é que lhes chamam «modos de vida como estando já ressuscitados» ou o que é que a ressurreição de Jesus acrescenta a essas exigências.

Quanto ao conteúdo, não acrescentam nada de novo. «Como viver na história?», sabemo-lo a partir do jeito do Jesus histórico. O que a ressurreição diz é que esta vida é a vida verdadeira, e que é a vida «nova», não porque vence a história, mas porque vence o pecado da história. No entanto, a ressurreição de Jesus acrescenta a presença permanente de Jesus entre nós, tornando assim possíveis duas modalidades ‒ e não dois novos conteúdos ‒ de viver historicamente o seu seguimento.

O NT sublinha que o novo ser humano é um ‘ser humano’ livre, e isso é justificado a partir da ressurreição, pois «o Senhor é o Espírito e onde está o Espírito do Senhor, aí está a liberdade» (2 Cor 3, 17). Essa liberdade, obviamente, não tem nada a ver com libertinagem, nem com saltar fora da história. Também não cremos que esta liberdade deva ser invocada em primeiro lugar para benefício próprio dentro da Igreja, como acontece em certas teologias de natureza liberal e esclarecida, embora isso seja legítimo em outros capítulos. Mas a liberdade fundamental que a presença do Ressuscitado produz não existe. Isto consiste antes em não ser escravo da história, do medo; em não ficar paralisado pelos riscos e pela prudência mundana. Positivamente, consiste na máxima liberdade do amor para servir, sem que nada coloque limites ao serviço. Consiste na atitude do próprio Jesus que dá a sua vida livremente, sem que ninguém a tire d'Ele.

Uma vida radicalmente livre para servir traz consigo a sua própria alegria, mesmo no meio dos horrores da história. Nessa alegria sente-se a presença do Ressuscitado. No meio da história ouvimos as suas palavras: “não tenhas medo”, “estarei sempre contigo”. Paulo repete exultantemente que “nada nos separará do amor de Cristo”. Apesar de tudo e contra tudo, o seguimento do crucificado produz a sua própria alegria.

Essa liberdade e alegria são a expressão de que já estamos vivendo como novos seres humanos, ressuscitados na história. Isso é a expressão histórica (entre nós) do triunfo da ressurreição de Jesus. Fazem com que o seguimento de Jesus não seja o cumprimento de uma exigência ética pura que se mantém, mas que este seguimento traga em si a marca da verdade e do sentido. Mas, lembremo-nos mais uma vez: nem a liberdade, nem a alegria, nem qualquer outra expressão que se refira à ressurreição de Jesus, são cristãmente possíveis fora ou contra o seguimento de Jesus crucificado. Não há outro caminho para o novo ser humano, para a pessoa que quer participar do senhorio de Jesus; mas, nesse caminho, vive-se verdadeiramente como ressuscitado e como Senhor da história.



6-Uma palavra final para a Igreja

Muitas vezes é difícil, para a Igreja, anunciar a ressurreição de Jesus. Acreditamos que a raiz da dificuldade está em querer anunciá-la ao vivo, esquecendo o crucificado. Quando isso acontece, o anúncio da ressurreição torna-se rotineiro ou símbolo de esperança universal, o que pode desencadear emoções na celebração litúrgica, mas pouca eficácia para a vida histórica. Pode acontecer também que a Igreja ouça dos seus ouvintes o que os atenienses disseram a Paulo: «Não estamos interessados. Falamos mais tarde…» (Actos 17,16-34). E, no fundo, não deve haver razão para nos surpreendermos. O anúncio da ressurreição de Jesus é a revelação de Deus que constitui o cume de toda uma longa História de Revelação. Quem quiser ficar-se apenas pelo final dessa história não vai entender esse final.

Mas aqueles que percorreram este caminho desde o princípio, que fizeram como seu o Caminho de Jesus, a loucura de Jesus e o escândalo da Cruz, podem ouvir a partir de fora – quando a ressurreição de Jesus lhes é anunciada – a palavra que carregam dentro: que a vida de Jesus foi a verdadeira vida e, portanto, Jesus permanece para sempre; que a vida é mais forte do que a morte; que a justiça é mais forte do que a injustiça. Essa esperança é mais real do que a resignação. A fidelidade à história seguindo Jesus fá-lo-á esperar um fim abençoado para si mesmo e para os outros, sem, contudo, saber exactamente como nem quando, mas com a convicção crescente e inabalável de que esta história de horrores acabou por lhe vir parar ao colo “via Deus” (…que é apenas Amor).

Por isso, cremos que a primeira pergunta que se dirige à Igreja, precisamente quando quer anunciar a ressurreição de Jesus, é se ela está verdadeiramente ao lado da Cruz de Jesus e das inúmeras cruzes da história de hoje. Não há outro lugar para falar cristãmente sobre a ressurreição de Jesus. Quando isso não acontece, há um sentimento de impotência para falar da ressurreição, sente-se um impasse teórico e prático para dizer aos homens de hoje algo tão simples como, por exemplo, que eles já podem viver como ressuscitados e como o poderão fazer. Atrapalhados, lançamos precipitadamente mão de expressões da linguagem tais como "mistério" e "fé". E digo precipitadamente, não porque a ressurreição não tenha de ser expressa dessa maneira, mas porque simplesmente não há história suficiente para dar lucidez a essa linguagem.

No entanto, quando a Igreja está próxima do crucificado e dos crucificados, sabe falar do Ressuscitado, suscitar a esperança e fazer viver os cristãos como ressuscitados na história. Talvez as palavras usadas sejam as mesmas que as usadas em outros lugares, contudo passam a ter um significado diferente: os cristãos compreendem-nas e essas palavras desencadeiam ‘vida humana cristã’. Basta citar, como exemplo, a pregação de Dom Romero sobre Jesus ressuscitado.

A razão para isso não é outra senão o facto de Jesus estar hoje presente nos crucificados da história, tal como nos recorda Mt 25,1-31. Neles Jesus apareceu novamente, exibindo certamente mais as suas feridas do que a sua glória, mas estando realmente neles.

Tudo o que foi dito pode parecer loucura ou o resumo de uma dialética refinada. O autor também está ciente de que a situação em El Salvador e na América Central reproduz muito mais a Sexta-Feira Santa do que o Domingo de Páscoa e, portanto, tende a fazer da “necessidade” dessa Sexta-Feira Santa a “virtude” do Domingo de Páscoa. No entanto, no meio de tudo isto, acabamos como começámos. A ressurreição do crucificado é verdadeira. Vai continuar a ser uma loucura, como foi para os Coríntios. Porém, fora dessa loucura, porque é verdade, ou fora dessa verdade, mesmo que seja loucura, a ressurreição de Jesus não passaria de mais um símbolo entre numerosos símbolos de “esperança na sobrevivência” que ao longo dos milénios os homens conceberam (nas suas religiões e nas suas filosofias) e adoraram. Seja como for, “fora dessa loucura e dessa verdade” ele nunca seria o símbolo cristão da esperança.

Essa verdade continua a repetir-se historicamente. A ênfase no crucificado não está ao serviço de uma construção dialética conceptual, mas vem da confirmação da realidade histórica do crucificado. Quando um agente pastoral de uma comunidade de base em El Salvador, que foi duramente atingida pela repressão, foi questionado sobre o que eles estavam a fazer enquanto igreja, ele respondeu simplesmente: «manter a esperança daqueles que sofrem». «E para isso» ‒ acrescentou ‒ «lemos os profetas e a paixão de Jesus. Assim, aguardamos a ressurreição.»

Ninguém espera mais pela ressurreição do que os crucificados. Porém, mantêm essa esperança recordando a vida e a morte de Jesus, tentando reproduzi-las activamente ou sofrendo passivamente um destino que se assemelha ao destino de Jesus enquanto servo desfigurado de Javé (2º Isaías 52,13). Paradoxalmente, isto gera esperança.

É a partir dos crucificados da história, sem pactuar com as suas cruzes, que deve ser proclamada a ressurreição de Jesus. Jesus está presente neles, hoje; ao serviço deles, o senhorio de Jesus torna-se hoje também presente. Na teimosia em não estabelecer um pacto com as suas cruzes e em procurar sempre a libertação dessas cruzes, a esperança inabalável estará para sempre presente «in actu» e no Caminho Histórico. A partir daí é possível compreender um pouco mais o que queremos dizer quando falamos da ressurreição de Jesus. Mais: a partir daí podemos construir a ponte entre a nossa história e a realidade do Ressuscitado.



"Sal Terrae", marzo 1982



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HANS KUNG n’A Sala de Cima (30/10/2018), a propósito da «Eutanásia» e a Vida Eterna…

https://asaladecima.blogspot.com/2018/10/eutanasia-4.html