O DEUS FALSIFICADO
Thomas Ruster
«A presença de pessoas
de outras religiões no espaço ocidental
anteriormente
monopolizado pelo cristianismo ao nível
do religioso, mas
sobretudo o surgimento consolidado a partir dos anos 80
de “Novas Religiões” ou
de uma nova religiosidade,
exigem mais do que
nunca uma comparação entre as religiões.»
Thomas Ruster
(traduzi
apenas as últimas palavras com que o autor encerra o seu muito estimulante
livro de 254 páginas…)
RESULTADOS DESTA INVESTIGAÇÃO e PRIMEIRAS CONSEQUÊNCIAS
1. A contingência de poder ser e não ser religião acompanha a
tradição bíblico-judaico-cristã desde o início. Trata-se de saber se o que
existe ‒ a realidade socialmente configurada ‒ corresponde ou não à vontade de Deus.
2. Esta questão é esclarecida a nível teológico, em cada
época, pelo modo como Deus é concebido em relação aos poderes reais. Se
colocarmos Deus numa relação positiva com esses poderes ‒ geralmente na forma de superação e de absolutização
‒ a religião emerge. Se não o fizerem, o que aparece é uma ‘marginalidade’
que actualiza a crítica bíblica da religião e vê o mundo imerso no erro e na
loucura. A diferença na concepção de Deus decide, portanto, se o cristianismo é
ou não é uma religião.
3. Surge hoje em dia uma situação nova: o cristianismo já não
tem condições para querer ser uma religião. Com o capitalismo, a experiência de
uma realidade que tudo determina ‒ e que está essencialmente
relacionada com o dinheiro ‒ já não pode ser reconciliada com o
Deus da fé cristã... a não ser à custa de se ter de reescrever toda uma nova
Bíblia. Schmitt viu isso correctamente. A actual perda de relevância do
cristianismo, entendido como uma religião, confirma à sua maneira que a era da
religião cristã já passou (o que poderá atingir o seu cume dentro de cem ou mil
anos, não sabemos…); e esta perda de relevância explica-se pelo desaparecimento
do cristianismo como religião.
4. Depois de séculos de interdependência entre o cristianismo
e a religião ‒ para o bem e para o mal ‒ estamos hoje, na teologia,
confrontados com a tarefa de os delimitar aos dois. Uma teologia que não faça
essa delimitação está orientada para algo que já não existe (o ‘cristianismo
como religião’) e, portanto, será vazia de conteúdo. Delimitar o cristianismo e
a religião é uma tarefa que deve ser recuperada teologicamente, tanto mais que
isso já aconteceu há muito tempo.[1]
5. A base e o critério objetivo da delimitação do
cristianismo e da religião é a controvérsia entre o culto divino e o culto
idólatra.
6. A teologia da distinção entre cristianismo e religião deve
revelar “o sentido anti-idolátrico da fé em Cristo”. Deve mostrar que, para os
cristãos, a fé na divindade de Jesus evita confundir Deus com ídolos, tal como o
fez a Torá para os judeus.[2]
7. Crítica da idolatria significa “crítica da religião”:
primeiro, da religião que o próprio cristianismo foi e muitas vezes quer
continuar a ser; depois, crítica das chamadas religiões; por fim, crítica à
religião do capitalismo, uma religião até agora sem nome. ‘Crítica’ significa diferenciação,
não mera rejeição ou condenação; os teólogos cristãos conseguem saber, por
experiência própria e através da Bíblia, até onde vai o Mandamento e onde
começam as fronteiras da Religião.
8. A delimitação do cristianismo e da religião coloca a
teologia católica numa nova relação com ‘a experiência’. Uma vez que a
experiência por natureza tende para a religião, ela não pode ser o ponto de
partida do conhecimento cristão de Deus sem que com isso crie problemas.
Reabre-se, assim, o debate sobre a Natureza e a Graça.
9. Face à religião do capitalismo, urge repensar em que consiste
a Redenção. A delimitação do cristianismo e da religião, assumida
teologicamente, é o pressuposto para esse repensar.
Vou aprofundar um pouco mais os pontos 7, 8 e 9 antecedentes.
É necessário referir pelo menos as primeiras consequências derivadas da
diferença quanto à noção de Deus: questões derivadas da relação do cristianismo
com outras religiões; a questão da relevância das experiências religiosas e a
questão da redenção, questões que desempenham hoje em dia um grande papel no
ensino religioso e, portanto, na pedagogia religiosa. Por conseguinte,
adaptá-los-ei aos problemas que eles apresentam na minha área profissional (a
formação de professores de religião). Vou dar apenas algumas indicações muito breves.
a. Não transformar Deus num ser indistinto: no encontro com
as religiões, refinar o sentido da idolatria
Entre os estudantes de teologia é quase unânime que todas as
religiões adoram o mesmo Deus. Esta forma de pensar não costuma ser corrigida
pelos seus professores; até os livros para o ensino da religião a transmitem.[3]
As religiões (diferente em Raimon Panikkar) são concebidas como caminhos diferentes que levam ao mesmo
cume. E como ninguém ainda o alcançou, ninguém pode saber, em princípio, como e
o que é Deus. É por isso que também não é correto julgar as imagens de Deus
propostas por outros povos e religiões. Subjacente a esta concepção está um
grande respeito pela relação com Deus que as outras pessoas mantêm e,
eventualmente, um interesse em conhecer outras religiões. Por outro lado, essas
pessoas são antecipadamente consideradas culpadas de conivência. É sobejamente
conhecido onde a intolerância religiosa, o exclusivismo e o fanatismo nos conduzem!
Todos sabemos como é difícil abordar o tema da “missão” no cristianismo
primitivo dentro das aulas de religião. Mas o certo é que é costume manifestar
compreensão para com os primeiros cristãos quando, enquanto crentes
recém-convertidos entusiasmados, falam da sua fé a outros e, por vezes,
criticam o carácter primitivo das antigas religiões pagãs. Mas é frequente afirmar
que hoje evoluímos para uma mentalidade tolerante, pelo menos em relação às
religiões vivas. É comum que os estudantes de teologia peçam aos seus
professores que, para além de explicar o cristianismo, levem em conta outras
religiões. Muitos nem sequer entendem por que é que o cristianismo ocupa um
lugar tão importante no estudo da teologia. Será missão do ensino religioso iniciar
os alunos no mundo das religiões ou da experiência religiosa em geral … tanto
mais quando esses alunos já não possuem qualquer marca cristã?
Esta concepção tem sido sistematicamente expressa na chamada
"teologia pluralista das religiões", que goza de grande popularidade.
As suas ideias básicas podem resumir-se rapidamente: face ao “exclusivismo”
(apenas uma religião é verdadeira) e ao “inclusivismo” (na minha religião estão
contidos os elementos de verdade de todas as outras religiões), aspiramos a um pluralismo
religioso atualizado.[4]
Segundo esta concepção, por trás de todas as religiões está a experiência de
uma realidade infinitamente maior e superior que nos ultrapassa. Tal realidade
pode ser designada pelos mais diversos nomes (Kick propõe «o Transcendente, a
Realidade Fundamental, o Princípio Supremo, o Divino, o Único, o Éter, o Real»[5]).
Todas as religiões sabem que a «realidade fundamental» é incompreensível e
misteriosa. De facto, é-lhe intrínseco que ela não possa ser plenamente
compreendida em nenhuma religião. As diferentes concepções da realidade suprema
(pessoa/não-pessoa, plenitude/vazio, etc.) não são contraditórias, mas nascem
das diferentes situações em que se realiza a experiência de Deus. Todas as
religiões propõem, em princípio, a mesma ética: passar da auto-centralidade à
centralidade na realidade. A única experiência
da realidade suprema só pode ser vivida na pluriformidade dos seres humanos e
das culturas. “É verdade que todos os seres humanos são referidos à
mesma realidade transcendente, mas também é verdade que são extremamente
diversos”.[6]
É por isso que nenhuma religião pode aspirar a
ser absoluta. As religiões nada mais são do que formas relativas e
diversas de criptografar as experiências do inominável. Conteúdos da fé, como a
corporificação e a filiação divina de Jesus, a Trindade, etc., devem ser
incluídos no relato da legítima pluriformidade das religiões; não podem ser
elevados ao status de condições para a salvação. Pelo contrário, deve
haver uma nobre competição entre as religiões quanto à que oferece o melhor e
mais fácil caminho de salvação. Este seria, então, o objeto do diálogo
inter-religioso, diálogo no qual, na opinião de D. Tracy, só podem participar
os representantes que estejam dispostos a “combater o obscurantismo, o
pensamento de casta ou de classe e o fanatismo moral dentro das suas próprias
tradições religiosas”.[7]
É bem conhecido nos círculos desta teologia da religião aquilo de que uma
religião aceitável precisa. Também sobre a realidade indecifrável do ser
supremo há informação suficiente para poder excluir pelo menos falsas imagens
de Deus. O conhecimento de Deus é adquirido empiricamente a partir do menor
denominador comum de todas as religiões. Se
(quase) todas as religiões dizem que o ser supremo só quer o bem para nós,
então ele não pode também querer o mal. Com este argumento, Hick contestou, por
exemplo, a doutrina de Agostinho e da Reforma sobre a Dupla Predestinação.[8]
O valor pragmático da chamada teologia pluralista da religião
é indiscutível. Pode permitir que as pessoas pratiquem pacificamente várias
religiões. Mas não devemos esquecer as notáveis deficiências desta teologia,
deficiências que, no final, nos levam a perguntar qual é a qualidade da paz
religiosa que se pretende alcançar. A crítica pode ser resumida da seguinte
forma: (1) primeiro, esta doutrina não é pluralista, pois pluralismo significa «a
adoção de vários princípios díspares e autónomos que não são deriváveis uns dos
outros ou de um único princípio» (enciclopédia Brockhaus); na realidade, a
teologia pluralista da religião não passa de um inclusivismo
universalizado; (2) em segundo lugar, não se trata de uma doutrina
sobre religiões, uma vez que não está de todo interessada na vida real das
religiões no que diz respeito à sua singularidade histórica e cultural, mas,
antes, as toma com base numa ideia preconcebida; é fácil reconhecê-la como uma
segunda versão da metafísica cristã outrora abandonada; (3) por fim, ela
não é teologia, pelo menos teologia cristã, cujo fundamento é a revelação de
Deus na Escritura, dum Deus que quer ser diferenciado dos ídolos.[9]
A chamada Teologia Pluralista da Religião [TPR], como exemplo mais actual de um discurso indiferenciado sobre
Deus, leva à indistinção de Deus. Digo isto a partir das
experiências com aqueles que defendem que em todas as religiões se adora o
mesmo Deus; mas também decorre da simples observação de que, se todos os deuses
são igualmente válidos, eles também se revelam indistintos. O impulso ético que
brota desta corrente é fraco, incapaz de fazer uma crítica às religiões, mas
sobretudo incapaz de confrontar a religião que hoje organiza «a Realidade
Fundamental»: o capitalismo. Não é surpreendente que o diálogo religioso seja
considerado um tanto mercantilista: vários “vendedores da mesma mercadoria” estão
frente a frente, mas com embalagens diferentes no colo. Na chamada «teologia
pluralista da religião», as religiões devem ser apresentadas de tal forma que
possam ser toleradas dentro dos limites do sistema económico: deverão ser guias
de mercado para um produto impalpável e difuso, que, no entanto, ainda encontra
clientes. Entretanto, «a religião dominante» [o capitalismo] pode continuar a
agir sem ser perturbada.
Sendo
assim, será que teremos
de regressar ao exclusivismo cristão, à difamação e às guerras religiosas?
Antes de chegarmos aí, devemos banir, no plano teológico, a ideia de que o
diálogo das religiões consiste em procurar o equilíbrio entre todas as
diferentes reivindicações relacionadas com a posse da verdade, isto de acordo
com o modelo da concorrência mercantil. À luz da Bíblia, os cristãos foram
encarregados de algo bem diferente: primeiro identificar
a idolatria dentro de casa, nas suas próprias fileiras. Portanto, encontrar-se
com pessoas de outras religiões exige saber que a idolatria é a tentação e a
realidade mais natural da própria religião. A idolatria é um reconhecimento da «realidade
fundamental» e, enquanto outras religiões possam transmitir algo dessa
realidade idolátrica, o encontro inter-religioso pressupõe a prévia autocrítica
cristã urgente. Portanto, os cristãos deverão procurar nesses encontros
inter-religiosos a radioscopia crítica da sua própria religião de modo a poderem
cumprir melhor o Primeiro Mandamento. Talvez outras religiões tenham profecias-surpresa
para os cristãos, do mesmo modo como aconteceu às religiões de outros povos
quando enfrentaram os profetas bíblicos, e assim, através deles, conseguiram
uma análise mais fina da idolatria de Israel. Portanto, do ponto de vista
bíblico-cristão, não se trata de impor a minha verdade aos outros, mas de me
deixar levar por eles a um aprofundamento da minha própria verdade, isto é, do
conhecimento de Deus, que só se realiza em referência aos seus opostos. As
religiões, especialmente a própria, oferecem a melhor perspectiva para o oposto
de Deus. Isto é verdade para a “ala cristã” nos diálogos inter-religiosos; o
resultado de um debate realizado dentro deste espírito para a “outra ala” é, se
favorável, o testemunho a favor de uma religião que pode renunciar ao espírito
de contradição e de imposição em detrimento dos outros. Os cristãos da Primeira Carta de Pedro suplicaram, neste sentido, pela sua
própria causa entre os pagãos. Em todo o caso, qualquer encontro de pessoas
biblicamente letradas com pessoas de outras religiões está sujeito, como não
poderia deixar de ser, aos ditames do Primeiro Mandamento. O mandamento deve
ser observado mesmo contra os deuses da própria religião. Se neste processo de
autopurificação os deuses de outras religiões são descobertos como ídolos, eles
ficam sujeitos ao mesmo ditame do primeiro mandamento. Os cristãos podem
envolver pessoas de outras religiões na força esclarecedora da distinção entre
Deus e os ídolos. Na observância do Primeiro Mandamento, não devem deixar-se
conquistar por ninguém. Assim, o conhecimento de Deus pode ser difundido de
acordo com o preceito de Deus [Primeiro Mandamento] e com a busca da justiça de
Deus. O diálogo inter-religioso pode contribuir para desvelar o sentido do “culto
idolátrico” dos seus participantes e, assim, reforçar o combate a esse culto. Chegados
aí, será então possível vermos pessoas de diferentes religiões a agir juntas
contra a idolatria da “realidade fundamental” [o Capitalismo Financeirizado e
Globalizado], a
realidade que hoje tudo determina e que, como todos os ídolos, ameaça a
justiça.
b) Não se fie nas suas
próprias experiências, participe das experiências de outras pessoas,
experiências bíblicas
A pedagogia religiosa, tão rica em perspectivas e sempre
aberta a novas ideias, tem, no entanto, um dogma que, de facto, incorre numa
contradição: no ensino da religião é necessário partir da experiência dos
alunos. Este princípio parece indemonstrável, tanto pedagogicamente como
dialeticamente; mas também pode ser fundamentado teologicamente referindo-se ao
“existencial sobrenatural” (K. Rahner) ou ao “a priori da relação de cada
pessoa com Deus”.[10]
De facto, através da teologia de Karl Rahner, que chega mesmo a falar de
«cristão anónimo»[11],
a categoria da experiência foi grandemente revalorizada na teologia católica.
Com ela foi possível afirmar que é possível demonstrar, através da experiência,
a orientação de cada pessoa para o mistério de Deus como fundamento e meta da
sua existência. Deste modo, a pedagogia religiosa mostrou o caminho para sair
da estreiteza de uma transmissão eclesial-querigmática da fé e abriu-lhe o
vasto campo da experiência religiosa, que também poderia ser trabalhada com uma
boa consciência teológica nos tempos pós-cristãos. A recente pedagogia
religiosa católica, que encontrou um notável defensor em H. Halbfas, é
basicamente inspirada em Rahner.[12]
Entretanto, que dizer da experiência religiosa na era do «capitalismo
como religião»? Sem querer subestimar o seu impressionante trabalho teológico, K.
Rahner não soube enfrentar esta questão. Mas a resposta a esta pergunta é dada
tendo em conta os alunos que hoje recebem instrução religiosa. Eles são fiéis
seguidores da religião capitalista, que também permeia todas as suas
experiências, o seu ambiente, os objetivos de vida que estabelecem para si
mesmos.[13]
A sua prática religiosa, que indubitavelmente herdaram dos pais, marcados pelo
milagre económico, é invulgar. O facto de a teologia católica falar apenas da
experiência num sentido geral e não específico terá consequências. A
experiência, de facto, muda de acordo com as circunstâncias. A sua estrutura
formal é indubitavelmente idêntica: a experiência do real é determinada pelo
que determina a realidade. A experiência, na medida em que se orienta para
a realidade que tudo determina, é sempre religiosa. Contudo, hoje em dia, já
não se refere ao Deus da fé cristã, caso estejamos de acordo que Deus e “a
realidade que tudo determina” aparecem hoje definitivamente divididos. Assim, a
abordagem de Rahner, embora formalmente correcta, não favorece a fé cristã.
É necessário, portanto, rever o dogma denominado ”A Experiência
na Pedagogia Religiosa”. As experiências dos alunos já não devem ser invocadas
numa pedagogia da religião cristã. Além disso, a experiência religiosa de todos
nós já não é digna de confiança, porque nos remete para uma falsa religião. Ou,
caso ainda haja cristãos, essa experiência impede a correta distinção entre
Deus e os deuses. A experiência feita com o verdadeiro Deus não é nossa. É uma
experiência estranha para nós hoje, e como o princípio de que ‘a fé precisa de
experiência’ ainda é válido, para isso o importante é saber se ela pode
participar de uma experiência estranha. A
estranha experiência com o verdadeiro Deus é certamente encontrada na Bíblia.
É por isso que eu considero a principal tarefa do ensino actual da religião
induzir as crianças em idade escolar a participar da experiência acumulada na
Bíblia. Isso significa introduzir a Bíblia, imergir por todos os meios
possíveis no mundo da Bíblia, narrar, narrar, narrar, mas não como se costuma
fazer hoje, conectando-se com as experiências das crianças em idade escolar.
Devemos abandonar o princípio da “didática bíblica correlata” que domina o
campo da pedagogia religiosa, segundo o qual os textos bíblicos podem ser
transmitidos desde que ajustados às experiências dos alunos. Há que reforçar a natureza estranha, inderivável,
insuspeita das experiências bíblicas e, na minha opinião, sem qualquer medo de
que os alunos não as compreendam. Hoje em dia, todos os tipos de meios de
comunicação social introduzem as crianças, em idade escolar, em experiências de
mundos estranhos, em mundos primitivos, míticos ou de ficção científica, e elas
entram alegremente neles. Por que não fazer o mesmo no mundo da
Bíblia? Uma vez lá, podem comparar as experiências dos outros com as suas. O
resultado desta comparação deve permanecer em aberto. Em qualquer caso, terão
feito uma experiência a partir da a sua própria experiência.
Para esclarecer isso, tomemos como exemplo um tema central da
catequese e do ensino religioso: os sacramentos, que também podem ser
compreendidos e ensinados enquanto forma de participação numa experiência
estranha. Sim, os cristãos não foram libertados da escravidão do Egipto pela
água, mas através do batismo eles podem participar dessa experiência dos
começos de Israel. No sacramento da Penitência, os cristãos podem partilhar a
experiência de Israel de que a culpa e a desobediência não os separam de Deus e
que a realidade da Aliança permanece intacta. Na Eucaristia, participam na
experiência de um Deus que, mesmo sob o domínio da morte, permanece fiel ao seu
desejo de comunhão; etc. Os sacramentos são o caminho adequado a cristãos-pagãos,
que não tiveram tais experiências, de modo também eles poderem partilhar a
experiência de Israel. Os sacramentos vêm substituir a função que a Memória da
sua história desempenhou em Israel. Em Cristo é-nos oferecida esta
participação, Ele é o sacramento de Israel entre as nações. Talvez seja
possível compreender, neste sentido, o que disse Tomás de Aquino sobre a tripla
temporalidade dos sinais sacramentais: evocam o acontecimento soteriológico passado
(“signum rememorativum”), significam a salvação presente (“signum
demonstrativum”) e preparam a plenitude futura (“signum prognosticum”).[14]
Considero este um dos pensamentos mais profundos e fecundos da antiga teologia
dos sacramentos. Importa olhar para a relação dos cristãos com Israel como
sendo participação numa experiência alheia. Ela é muito mais do
que o habitual acesso simbólico-teológico aos sacramentos aquando da catequese
e durante a instrução religiosa: é acesso que, no entanto, deve permanecer no
plano do conteúdo simbólico dos sinais sacramentais.
c. Pensar a redenção à luz da economia da salvação: salvação
mediante a fé no único Deus de todos os humanos
A mensagem cristã sobre a Redenção não vive o seu melhor
momento. De facto, converteu-se numa «oferta gratuita não veementemente
desejada».[15] Acreditar
que ‘Deus salva hoje’ não parece viável e quase não se verbaliza. «As
fórmulas teo-esotéricas estabelecidas sofrem uma perda progressiva de
realidade... na soteriologia estamos enterrados nos rudimentos do entendimento.»[16]
É óbvio que isso corrói seriamente a relevância do cristianismo. Qual poderá ser o contributo da fé se ela não souber transmitir
confiança na libertação do mal?
Importa referir muitos factores intra-teológicos a fim de
explicar esta situação. De entre eles o
mais importante é sem dúvida a decadência da escatologia cristã, sobre a qual
Friedrich Beisser disse, com razão: «De todos os artigos da fé cristã, aquele
que parece estar hoje em dia no estado mais ruinoso é, quiçá, a doutrina acerca
do final dos tempos, a Escatologia».[17]
Os temas do ensino tradicional sobre o totalmente novo ‒ céu, inferno, purgatório, etc. ‒ estão hoje sob grave suspeita de ‘mitologia’ e de ‘projeção’;
e, para além disso, um ensinamento sobre coisas do além está fora do âmbito da
ciência. Os ensaios teológicos no campo da escatologia há muito que oscilam
entre, por um lado, uma existencialização morna dos conteúdos tradicionais e,
por outro, uma tentativa de consolar-se com formas de esperança intramundana,
especialmente o “princípio da esperança” de Ernst Bloch. Nenhuma das atitudes pode levar a
um resultado satisfatório, e os testemunhos cristãos sobre promessas futuras
também não se saem bem. Então, como falar de Bem-Aventurança e de Salvação num
mundo infeliz?
A meu ver, a crise da Soteriologia provém fundamentalmente do
estatuto do ‘cristianismo como religião’. Em primeiro lugar, pelo papel que é atribuído
à religião numa sociedade moderna, tão diferenciada e segmentada. Os vários
sistemas parciais da sociedade funcionam de acordo com as suas próprias leis e
é muito difícil, para eles, influenciarem-se uns aos outros; isto é referido sempre
que se fala da “ingovernabilidade” das sociedades modernas. Ninguém espera do
sistema “religioso” que ele transvase para outras esferas. Espera-se do sistema
religioso que reduza a complexidade, controle a contingência, etc., mas que, de
forma alguma, modifique os processos económicos ou políticos. O cristianismo
tem funcionado muito bem no domínio que lhe foi atribuído. Mas não tem suficiente
credibilidade para proclamar a redenção do mal que é produzido nos outros âmbitos
estranhos ao seu âmbito. «Salvar-se através das relações»[18]
- eis o que se lê na mais recente obra dedicada à soteriologia católica. O seu
título indica em que área o cristianismo ainda pode falar de Redenção (e aqui
ele encontra-se em competição desconfortável com outros conselheiros e redentores
relacionais). Os começos da soteriologia cristã pertencem ao tempo em que a
influência da Igreja e da fé se estendia a toda a vida pública e privada. Foi
então possível desenvolver as fórmulas a que já me referi brevemente a
propósito de Walter Benjamin.[19]
Caracterizavam-se por atacar dialeticamente a estrutura económica dominante. As
fórmulas reflectiam a necessidade de libertação da estrutura económica
dominante na sociedade (escravatura: resgate; sistema feudal e associativo:
reparação; economia monetária: méritos de Cristo).[20]
O conceito de economia da salvação pode agora ser acompanhado por um novo e
diferente significado: a salvação só deve ser concebida em relação à economia,
nela tem o seu objecto, neste objecto concretiza-se apresentando-se como seu
adversário. Mas tal economia de salvação é proibida ao cristianismo de hoje, na
medida em que se apresenta e é percebida como uma religião. A delimitação do
cristianismo e da religião é, portanto, obrigatória também no aspecto
soteriológico. Assim, também é possível redescobrir o significado escatológico
concreto dos preceitos da Torá, como Marquardt fez de forma exemplar (também)
para a esfera económica: a boa acção decide sobre as possibilidades do futuro e
as possibilidades de participação no mundo vindouro.[21]
Há mais um aspecto em que a mensagem cristã da salvação
coincide com a delimitação do cristianismo e da religião. É essencial que a
religião represente o «supremo», o mais poderoso, o ‘determinante último’; ela nunca
o faz sem referência aos personagens superiores, poderosos e determinantes de
uma sociedade. Do conceito de «supremo», que existe numa religião, surge sempre
uma certa forma de ordem e de hierarquia, à qual os detentores do poder se
agarram tanto quanto possível. O supremo também cria a sua própria imagem. A
ordem estabelecida pela religião determina, então, a distribuição do poder e da
influência. Desta forma, a religião tem relevância para a distribuição de bens:
ela é essencialmente responsável por uma distribuição desigual – e geralmente injusta – dos bens. Os “deuses das religiões”,
que são necessariamente muitos, participam da disputa pelos bens, que são
sempre escassos; esses bens são utilizados por aqueles que lhes estão mais
próximos. O mesmo acontece com a “religião do capitalismo”: quem tem muito
dinheiro goza de privilégios excessivos. O poder que podem exercer (através de
prémios de liquidez abusivos, como Keynes viu) não é razoavelmente proporcional
à cobertura das necessidades, que é o ‘serviço’ que o dinheiro deveria prestar.
A rainha Jezabel (1 Reis 16,29-33), que defende a sua religião, ‘partilha
toalha e mesa’ com os profetas de Baal… Acontece que Yahvé é um Deus que se
compadece da miséria do seu povo. Yahvé quebra a ordem religiosa e a
distribuição do poder, para dar a cada um o seu direito e as suas oportunidades
de vida. É por isso que Elias se opôs à expropriação da vinha de Naboth, levada
a cabo com violência pelo establishment político-religioso (1 Reis 21). As disposições da Torá garantem a
distribuição justa das oportunidades de vida para todos, impondo que, em caso
de emergência, os ricos renunciem aos seus direitos em favor dos necessitados.
A justiça compassiva da Torá cria uma comunidade na qual todos têm os seus
direitos respeitados ao mesmo tempo que a formação de elites religiosas é
impedida.[22] Também
e antes de tudo, neste sentido o Deus da Bíblia é o Deus de todos os seres
humanos, porque ama a justiça. É por isso que Ele quer ser adorado como o único
Deus de todos, para lhes proporcionar a felicidade ‒ felicidade que nasce da
justa distribuição dos bens ‒ a qual deve ser sempre reconquistada e defendida, face às
pretensões da religião.
TEOLOGÍA TRAS LA DELIMITACIÓN DE
CRISTIANISMO Y RELIGIÓN, in Thomas Ruster, “El Dios Falsificado – una nueva
teologia desde la ruptura entre cristianismo y religión”, Sígueme, Salamanca 2011, 215-232.
ISBN 978-84-301-1758-1.
©
[1] Por esta razão, o programa teológico
pendente pode ser chamado de "teologia da delimitação mútua
do cristianismo e da religião".
[2]
«A teologia liberal apresentou o nascimento da Igreja (sobretudo nos Actos dos
Apóstolos) como uma necessidade de suprir a não realização da Segunda Vinda de
Jesus, a qual era concebida como um acontecimento iminente. Para responder à
frustração da não-chegada de Cristo, a ‘segunda geração cristã’ (e com ela,
sobretudo Lucas) teve necessidade de criar uma Igreja para esse intervalo de
tempo: o tempo que decorrerá entre a ressurreição de Jesus e a sua vinda no
final dos tempos. Esta visão, para mim, é falsa, pois des-Historifica a
ressurreição de Jesus e des-Escatologiza a Igreja. A
Igreja não nasce de uma Parusia frustrada, mas da Presença Gozosa de
Jesus vivida dentro da História. A presença de Jesus é histórica, não enquanto
“presença visível” e empírica, mas como “presença transcendente” vivida dentro
da História concreta.» (Pablo Richard, «El movimiento de Jesús antes de la
Iglesia», Sal Teræ, 2000, p.30-31. ISBN 978-84-293-1360-5)
[4]
Para além das obras já citadas de Hick, Knitter e Tracy, confira, em jeito de
visão de conjunto, R. Bernhard, «Der Absolutheitsanschpruch des Christentums.
Von der Aufklärung bis zur Pluralistischen Religionstheologie",
199-225; P: Schmidt-Leukel, «Skisse einer Theologie der Religionen».
Sobre o debate, cf. R. Bernhardt (ed.), «Horizontüberschreitung. Die
Pluralistische Theologie der Religionen».
[5]
Cf. Bernhard, «Absolutheitsanschpruch», 220.
[6]
Schmidt-Leukel, «Skizze einer Theologie», 455. Na minha opinião, é o
contrário: todos os seres humanos são igualmente religiosos, mas os deuses são
extremamente diversos.
[7]
Tracy, «Theologie im Gespräch», 126.
[8]
Cf. Bernhardt, «Absolutheitsanspruch», 221s.
[9]
Cf. K. Wenzel, «Pluralität und Anerkennung».
[10]
Como assinala B. Stubenrauch, «Dialogische Dogma. Der christliche Aufrag zur
interreligiösen Begegnung», 229, in "Aufnahme des Rahnerschen
Theologoumenons". Este trabalho demonstra com particular clareza o caminho
da teologia de Rahner para uma afirmação do pluralismo religioso a partir de
uma perspectiva cristã. Quando, como faz Stubenrauch, se tenta basear a
Revelação na experiência religiosa, de repente nos deparamos com a “natureza
comum” de todas as religiões ou percebemos que “cada religião, de uma forma ou
de outra, ‘refere-se’ à mesma coisa” (ibid., 242ss.). As noções de «experiência teológica» e de «experiência
religiosa» estão sempre interligadas.
[11]
K. Rahner, «Los cristianos anónimos», in Escritos de Teología VI,
Ediciones Cristiandad Tomo VI, Madrid 2007, pp. 485-493, ISBN 978-84-7057-495-5
(Tomo VI). Obra completa: ISBN 978-84-7057-433-7. Rudolf von Sinner, «Diálogo
Inter-religioso: Dos “cristãos anónimos” às teologias das religiões»,
UNISINOS, São Leopoldo RS, 26 de Maio 2004, Celebrando a memória do centenário
de nascimento de Karl Rahner. Cf. tb.: Geraldo Luiz Borges Hackmann, Ezequiel
Dal Pozzo, «Investigando
o conceito de “Cristianismo anônimo” em K. Ranner», Teocomunicação, Porto
Alegre 2007 [a partir da biblioteca particular de Paulo Bateira]
[12]Cf.
D. Berger, «Natur und Gnade. In systematischer Theologie und
Religionspädagogik von der Mitte des 19. Jahrhunderts bis zur Gegenwart»,
253-344; 364-423. O trabalho de Berger conseguiu demonstrar que, na pedagogia
religiosa mais recente, a teologia natural do "monismo" finalmente
saiu vitoriosa sobre a teologia sobrenatural do "tomismo". A
refundação pendente da pedagogia da religião dificilmente pode ignorar as
reflexões de Berger (veja também: 'Cuestiones
sobre la Fe', Herder).
[13]
Cf. I. Waldherr, «Jugend und Geld». Qualquer pessoa facilmente se
aperceberá da influência determinante que o dinheiro exerce sobre o mundo
juvenil.
[14]
Tomás de Aquino, «Summa theologiae» 3 q 60 a 3.
[15]
Th. Pröpper, «Erlösunsglaube und Freiheitsgeschichte», 19.
[16]
H. Kessler, art. «Erlösung/Soteriologie», 367 e 368.
[17]
F. Beisser, «Eschatologie in der Dogmatik der Gegenwart», 49.
[18]
D. Sattler, «Beziehungsdenken in der Erlösungslehre», 1997. O trabalho
que foi apresentado com o título «Salvar-se através das relações» ocorreu no
âmbito de um concurso para uma cátedra universitária. Cito apenas o seu título;
não me é permitido qualquer comentário sobre o seu conteúdo.
[19]
Cf. supra, p. 146. Deste mesmo livro, cf.
Capítulo «IV - O dinheiro como “God-Term”»; cf. as referências a Walter
Benjamin («Kapitalismus als Religion»), ao autor John Maynard Keynes e a
Martinho Lutero.
[20]
É significativo que o Concílio de Trento tenha oferecido uma definição
explícita de mérito (DH 1529; 1530) e se tenha referido apenas
incidentalmente ao resgate e à satisfação. A relação com o
capitalismo primitivo era por demais evidente.
[21]
Cf. Friedrich W. Marquardt, «Was dürfen wir hoffen», I, 321-335 (basicamente
aqui resumido nestas 14 páginas deste teólogo evangélico…).
[22]
Cf. M. Welker, «Gottes Geist. Theologie des Heiligen Geistes», 108-173. (tradução
do título: «O Espírito de Deus. Teologia do Espírito Santo»)