teologia para leigos

5 de janeiro de 2025

Jesus é substantivo, Deus é adjectivo



A CRISTOLOGIA DE JON SOBRINO

Julio Lois Fernández



I-Introdução

Vou limitar-me a apresentar algumas das chaves de reflexão cristológica de J. Sobrino que me parecem ser as mais significativas, fazendo especial referência – ainda que não exclusivamente – às questões que são objecto expresso da consideração por parte da «Notificação da Congregação para a Doutrina da Fé», de 26 de Novembro de 2006.

A cristologia é, sem dúvida, uma parte fundamental da reflexão teológica de J. Sobrino. Basta lembrar que quatro das suas obras mais importantes[1], e também numerosos artigos seus, versam sobre questões de cristologia.

II-A cristologia de J. Sobrino postula a recuperação da humanidade real de Jesus de Nazaré, um homem galileu do séc. I

Ao defender tal recuperação, J. Sobrino junta-se a boa parte da reflexão cristológica das últimas décadas, a qual chega ao ponto de a considerar uma verdadeira «necessidade epocal».[2]

Com a recuperação da humanidade real de Jesus o galileu, J. Sobrino pretende evitar que se caia em novas formas de docetismo ou gnosticismo, as quais poderiam conduzir-nos – como ele próprio diz – a que «Cristo se torne independente daquilo que Jesus foi», ou seja, a confessar «um Cristo que não se parece com Jesus, inclusivamente que seja o oposto dele» e que, assim, «por mais paradoxal que pareça, a mais alta afirmação cristológica sobre Cristo se possa converter subtilmente num alibi para que se não reconheça – e se siga – Jesus».[3]

Esta possibilidade paradoxal, com as consequências políticas que daí advêm —Jesus o incendiário, Cristo o bombeiro — foi muito bem sintetizada por outro teólogo da cristologia actual: «Enquanto Jesus foi um homem conflituoso para com as autoridades religiosas … "Cristo, Filho de Deus" converteu-se na desculpa com que as autoridades religiosas pretendem domesticar ou desautorizar todo o tipo de conflitualidade que lhes surja por diante. Assim, temos que, enquanto Jesus foi um homem descaradamente parcial a favor dos pobres, "Cristo, Filho de Deus" é uma desculpa para que os cristãos não optem pelos pobres em nome da universalidade do divino, o que não passa de uma forma de desviar as atenções diante da tremenda opressão e das tremendas desigualdades que erguemos entre nós.»[4] «Foi assim que se conseguiu que a divindade de Jesus se convertesse numa escapatória que desvia o foco para o abstracto e para a falsa espiritualidade, o que, ao mesmo tempo que tranquiliza as consciências, actua como poderoso freio conservador e manutenção do status quo do Ocidente».[5]

Em resumo, com a recuperação da real humanidade de Jesus, J. Sobrino procura, sobretudo, evitar que se neutralize ou se domestique a força crítica que a sua vida e a sua mensagem, a sua memória subversiva e libertadora tiveram. Usando as suas próprias palavras: «A partir da América Latina … a maior urgência para a fé não é a desmitificação de Cristo, como acontece com as teologias progressistas, mas a des-pacificação de Cristo: que não nos deixe em paz diante da miséria real e, assim, aconteça a sua des-ideologização: que em seu nome seja impossível oprimir-se a realidade».[6]

III-A recuperação da humanidade real de Jesus aconselha, melhor, urge uma cristologia metodologicamente elaborada «a partir de baixo»

Enquanto as Cristologias informadas por uma metodologia «a partir de cima» têm como ponto de partida a afirmação da fé na divindade de Jesus como algo já previamente adquirido e admitido, uma Cristologia «a partir de baixo», do ponto de vista metodológico, parte da humanidade de Jesus e, a partir daí, eleva-se ao reconhecimento crente da sua condição divina.

Na actual situação, que se caracteriza por uma extensa descrença, é pouco recomendável, do ponto de vista metodológico, que a reflexão cristológica parta da divindade de Jesus, como algo pacificamente adquirido. Como muito bem diz W. Pannenberg, «em vez de pressupor desde já a sua divindade, há que colocar em primeiro lugar o problema de como é que o acontecimento histórico de Jesus levou ao reconhecimento da sua divindade.» Acontece que — acrescenta Pannenberg — «uma Cristologia que parte da divindade do Logos e começa a discorrer unicamente a partir da união do homem com Deus em Jesus dificilmente chegará a conhecer o significado decisivo que determina a particularidade específica do autêntico e histórico homem de nome Jesus de Nazaré».[7]

Com efeito, poderá dizer-se que pensar Jesus a partir da afirmação da sua divindade torna muito difícil recuperar a sua real e completa humanidade. Ou seja, com uma metodologia «a partir de cima» corre-se o risco de elevar tão alto Jesus, que o seu seguimento se converterá em missão muito difícil de realizar e, consequentemente, se desnaturalizará a vivência da fé cristã.[8]

A Cristologia de J. Sobrino opta de forma decidida por uma metodologia «a partir de baixo». Para o nosso teólogo, «a dimensão da realidade total e totalizante de Cristo» que melhor permite o acesso ao Cristo total é a imagem histórica de Jesus de Nazaré, a qual deverá ser erigida como «o ponto de partida objectivo» de toda a reflexão cristológica: «Como princípio, digamos que, para nós, o ponto de partida (da cristologia) é o Jesus histórico, ou seja, a pessoa, a doutrina, os factos e as atitudes de Jesus de Nazaré na medida em que, tanto quanto possível e de maneira geral, sejam acessíveis à investigação histórica e exegética».[9]

J. Sobrino exprime com clareza as razões que o levaram a essa opção metodológica. Ele afirma que «para evitar que a "hybris" e a pecaminosidade cheguem a ser reais na fé e na cristologia, o proceder metodológico mais operativo é ver, num primeiro momento, Cristo a partir de Jesus e não o inverso». Mais. Sobrino pensa que esta metodologia «a partir de baixo» permite que se consiga que «Jesus seja como que a salvaguarda de Cristo». E passa a explicá-lo: «"Cristo" é um adjectivo — o "ungido" — com o qual se exprime a relevância da pessoa ungida, enquanto Jesus é um substantivo que designa a irrepetibilidade concreta de uma pessoa. Ora, acontece que os seres humanos, os crentes também, podem introduzir no adjectivo aquilo que não está no substantivo e, pior ainda, podemos inclusivamente introduzir no adjectivo algo contrário ao substantivo. Por palavras simples: podemos confessar Cristo que não se parece com Jesus, inclusivamente, que é o contrário de Jesus… Não só podemos manipular Jesus em nome de Cristo como o fazemos mesmo». Na verdade, e «ainda que possa parecer um jogo de palavras, tudo se decide quanto à prioridade metodológica a dar a uma de duas posturas: «-Jesus é o Cristo!» ou «-Quem é para ti Cristo? -É Jesus!». Cremos que o Novo Testamento afirma claramente o segundo modo, e nisso está a novidade da nova fé. E o NT disse-o … precisamente para salvaguardar aquilo que verdadeiramente lhe interessava: a verdadeira fé em Cristo.»[10]

IV-Insistindo no conteúdo das duas chaves anteriores: a fim de levar a sério a recuperação da humanidade real de Jesus e proceder com uma metodologia «a partir de baixo», é preciso regressar de forma decidida ao «Jesus histórico», colocando assim a sua vida e a sua mensagem no centro de interesse da reflexão cristológica

Pode afirmar-se, sem medo de errar, que o regresso ao Jesus histórico, ou seja, àquilo que a investigação histórico-crítica nos permite afirmar acerca de Jesus, é uma característica de uma parte da cristologia actual. Como indica González Faus, «diante da total ausência do Jesus histórico, quer em Bultmann que o ignora … quer em Tomás de Aquino, que se limita a justificar com razões Ꞌa prioriꞋ os episódios da sua vida, assistimos hoje a um regresso ao Jesus da história, ou seja, àquilo que a história nos pode dizer acerca da vida real e acerca da pessoa concreta daquele homem que se chamou Jesus de Nazaré».[11]

Acontece que este regresso ao Jesus da história apresenta, na cristologia de J. Sobrino, características específicas próprias da teologia da libertação, o que lhe confere uma identidade singular.

Com efeito, a cristologia que a teologia da libertação nos oferece afirma a importância da investigação histórico-crítica sobre Jesus, na medida em que sabe que é preciso que se supere uma apresentação mitificada de Cristo e se elabore uma cristologia fundamental capaz de mostrar a condição de "obséquio razoável" que a fé em Cristo tem, mas não outorga, porém, a mesma finalidade (à dita investigação) que lhe outorga a cristologia europeia. A cristologia da libertação procura recuperar a história de Jesus com a finalidade prioritária de prolongar essa mesma história dentro da situação actual de opressão de que a América Latina padece. O seu objectivo preferencial não é tanto mostrar a razoabilidade da fé em Cristo, mas a operacionalidade histórica do sinal libertador.

González Faus di-lo com clareza: «Na Europa, o Jesus histórico é objecto de investigação ao passo que na América Latina é critério de seguimento. Na Europa, o estudo do Jesus histórico procura estabelecer as possibilidades e a razoabilidade do ꞋacreditarꞋ ou do Ꞌnão acreditarꞋ. Na América Latina o apelo ao Jesus histórico pretende conduzir ao dilema do Ꞌconverter-seꞋ ou Ꞌnão se converterꞋ.[12]

Assim, a finalidade que J. Sobrino persegue com o regresso ao Jesus histórico é a de permitir que prossiga a Sua história na actualidade. Porém, concretizando ainda mais, o nosso Autor considera que «o mais histórico de Jesus é a sua prática, ou seja, a sua actividade para laborar activamente sobre a realidade circundante e transformá-la numa direcção determinada e perseguida: na direcção do Reino de Deus … O lado histórico do Jesus histórico é, para nós, então e em primeiro lugar, um convite (e uma exigência) a prosseguir a Sua prática; na linguagem do próprio Jesus, convite a segui-lo em missão… Quando se fala do Jesus histórico, aquilo que há que garantir antes de mais nada é o prosseguimento da Sua prática».[13]

Convém deixar claro, por outro lado, que a postulada recuperação da humanidade real de Jesus, com a consequente preeminência concedida – do ponto de vista metodológico – ao regresso ao Jesus histórico, de forma alguma implica negar ou questionar a divindade ou a condição divina de Jesus.

Mais. Pode afirmar-se que de facto a cristologia de J. Sobrino tentou precisamente, como ele mesmo diz, «tratar a divindade de Cristo a partir de uma óptica mais própria da Cristologia da Libertação (CL): a apresentação da pessoa de Jesus.»[14] O nosso teólogo está convencido que tal óptica, caso mantenha a radicalidade da apresentação de Jesus, não vai degenerar num puro jesuanismo que ignore a sua divindade.

Para conseguir esta tematização da divindade, Sobrino propôs dois modos: «O primeiro modo é desenvolver especulativamente as virtualidades do Jesus histórico para, a partir da Sua história, reformular a Sua transcendência divina. O segundo modo – o mais surpreendente – consiste em desenvolver praxicamente o impacto de Jesus. Neste modo, trata-se de explicitar a divindade de Cristo a partir do acto da fé que a pessoa de Jesus desencadeia na sua realidade histórica.»[15]

Depois de explicar os dois modos, Sobrino conclui: «A CL (Cristologia da Libertação) não desconhece, nem especulativamente nem praxicamente, a transcendência divina de Cristo, ainda que se tenha concentrado na exposição da figura histórica. Essa transcendência divina está implícita — e na verdade presente — nos conteúdos da sua pessoa e no próprio enfoque dessa pessoa. Para afirmar a sua divindade, tal como o faz o Novo Testamento e os concílios, não é preciso fazer mais do que explicitar as suas virtualidades. Aquilo que a CL acrescenta, porém, é que a confissão da divindade de Cristo se realizará cristãmente no real, e superará um mero saber acerca de Cristo, … através dum humilde e incondicional «seguimento de Jesus», onde se aprende a partir de dentro que Deus se abeirou incondicionalmente em Jesus e que Deus se prometeu a nós incondicionalmente em Jesus, que Jesus é verdadeiro Deus e que em Jesus o verdadeiro Deus se manifestou».[16]

Ora, é precisamente a esta questão central da divindade de Jesus que se refere a "Notificação" da Congregação para a Doutrina da Fé, para indicar que diversas afirmações de Jon Sobrino «tendem a diminuir o alcance das passagens do Novo Testamento que afirmam que Jesus é Deus» e que «com as suas asserções de que a divindade de Jesus só foi afirmada depois de muito tempo de reflexão crente decorrido … evidentemente que não a nega, mas não a afirma com a devida clareza dando azo à suspeita de que o desenvolvimento dogmático, que é recoberto com características ambíguas, chegou a esta formulação sem uma continuidade clara com o Novo Testamento».[17]

Será que Jon Sobrino estabelece essa descontinuidade ou rotura inadmissível entre o desenvolvimento dogmático posterior e o que afirma o Novo Testamento? Não parece que seja assim. O que o nosso Autor sustenta é que, no Novo Testamento, a divindade de Jesus é afirmada de maneira implícita e marginal, e só mais tarde sê-lo-á de forma clara e explícita. Isto – tal como afirma o rigoroso "Comentário" de «Cristianisme i Justicía» à Notificação – «é hoje quase um lugar-comum da teologia». Com efeito, «tudo o que Sobrino diz acerca do Novo Testamento não é original e foi tomado de diversos exegetas e teólogos da actualidade (U. Wilckens, R. Brown, W. Kasper, X. Leon-Dufour, H. Schúrmann, etc.). Muitas das cristologias actuais (entre elas as do bispo e cardeal W. Kasper) sustêm essa germinalidade e procuram mostrar, tal como o faz Sobrino, que existe uma continuidade — quebrada e descontínua — entre a confissão neotestamentária da Transcendência de Jesus e a afirmação conciliar da sua consubstancialidade divina». Em jeito de conclusão, há que dizer que «não se pode acusar Jon Sobrino de diminuir ou não afirmar com suficiente clareza a divindade de Jesus».[18]

A tudo isto importa acrescentar que a recuperação da humanidade real de Jesus, no sentido já referido atrás, não pressupõe que se pretenda negar ou tergiversar a questão da encarnação do Filho de Deus n’Ele.[19]

Claro que também não é este o critério da "Notificação" da Congregação da Fé, para quem a cristologia de J. Sobrino «estabelece uma distinção entre Filho e Jesus, a qual sugere ao leitor a presença de dois sujeitos em Cristo: o Filho assume a realidade de Jesus; o Filho experimenta a humanidade, a vida, o destino e a morte de Jesus. Não está claro que o Filho seja Jesus e que Jesus é o Filho». A distinção assim estabelecida — continua a "Notificação" — «reflecte a chamada teologia do homo assumptus, a qual é incompatível com a fé católica que afirma a unidade da pessoa de Jesus Cristo em duas naturezas – divina e humana – na linha das formulações dos Concílios de Éfeso e sobretudo do de Calcedónia».[20]

Vou limitar-me a citar aquilo que o próprio Jon Sobrino disse (que consta da resposta em privado que ele deu ao primeiro escrito não público da Congregação da Fé), em que nega que a sua cristologia seja reflexo daquela teologia de recorte nestoriano mencionada («homo assumptus»), que fala de dois sujeitos:

«Importa lembrar que em Deus a expressão «assumir» não tem de pressupor a existência de uma realidade prévia formalmente constituída, como se o Logos fizesse seu aquilo que antes era autónomo. Ou seja: não digo ꞋJesusꞋ existia e o Logos assume-o, a seguir. Para que fique claro que "toda a realidade de Jesus" de que falo não é uma realidade que já está constituída diante do Logos: basta recordar a conhecida frase de Agostinho acerca da humanidade de Jesus — Ꞌipsa assumpione creaturꞋ — que quer dizer, a humanidade ao ser assumida é criada. A humanidade não foi em primeiro lugar criada e só depois é que foi assumida. Não existem dois sujeitos; muito menos eles existem na minha cristologia. Não sou nestoriano e isso nunca me passou pela cabeça. Não creio que se possa deduzir, do «teor literal» do meu texto, que ele seria "incompatível com a fé católica". Tanto quanto seja do meu conhecimento, ninguém, até ver, afirmou tal coisa.»[21]

V-É interessante destacar que a tentativa citada de recuperar a humanidade real de Jesus leva à afirmação da condição crente de Jesus

«Um modo concreto e eficaz de atingir a verdadeira historicidade de Jesus consiste em meditar sobre algo que, regra geral, acaba por ficar para trás e que representa o mais profundo da pessoa de Jesus: a sua fé.» E acrescenta Sobrino, citando L. Boff: «Jesus foi um extraordinário crente e teve fé. A fé foi o modo de viver de Jesus».[22]

A importância decisiva desta questão — a fé de Jesus — é melhor apreciada caso tenhamos em conta o seguinte: caso Jesus não a possuísse, «Jesus poderia ser chamado como um igual a nós, ainda que no mais fundo da sua humanidade ele não é como nós. Podemos definir a humanidade de Jesus a vários níveis: pessoal-existencial, inclusivamente social e até político, mas caso não se aceite a sua fé, Jesus ficaria infinitamente distante de nós e — paradoxalmente, para a teologia — estaríamos a dizer que a fé não seria essencial para definir o lado humano. A aceitação da verdadeira humanidade de Jesus fica posta à prova a partir do questionamento da admissibilidade ou da não admissibilidade da fé de Jesus. Caso não seja admitida a sua fé, a linguagem de Jesus não passaria de uma linguagem piedosa, mas não real.»[23]

É curioso que, entre outros motivos, se destaque esta questão concreta da fé de Jesus, tanto mais que esta recuperação do Jesus crente foi desqualificada na já citada "Notificação" da Congregação para a Doutrina da Fé.

Após citar algumas afirmações de livros de J. Sobrino nos quais este autor defende a condição crente de Jesus, a "Notificação" afirma que «a relação filial de Jesus com o Pai – na sua singularidade irrepetível – não surge com clareza nas passagens citadas, antes pelo contrário, essas afirmações levam a concluir pela sua ausência». E acrescenta: «Se Jesus fosse um crente como nós, mesmo que de maneira exemplar, nunca poderia ser o verdadeiro revelador que mostra o rosto do Pai». Na verdade, «Jesus, o Filho de Deus feito carne, goza de um conhecimento íntimo e imediato de seu Pai, de uma "visão", que seguramente vai para lá da fé».[24]

O "Comentário" do centro «Crstianisme i Justicía», redigido para responder à "Notificação", depois de reconhecer que, na história da teologia, teólogos tão ilustres e influentes como Santo Agostinho negaram, a Jesus, a condição de crente[25], lembra que, a partir dos anos 60 do passado século, «o tema da fé de Jesus esteve em cima da mesa de quase todas as cristologias».[26] E anexa-se a razão por que a teologia foi levada a esta situação: «Numa encarnação que leva em conta a kénosis de Deus e a historicidade de Jesus … nunca se poderá dizer que a união hipostática requer necessariamente a visão e o conhecimento do plano da salvação». Portanto, pretender «que por via da união hipostática Jesus teve, desde o início, a experiência da visão imediata de Deus, é apenas uma opção teológica — hoje em dia minoritária —, que corre o risco de eliminar Jesus de todos os territórios ou âmbitos humanos: a dúvida, a tristeza (Mc 3, 5), a confiança (Heb 5), a sensação de abandono (Mc 15, 34), o terror, o pavor ou a angústia (Mc 14, 33-34)».[27]

VI-A reflexão cristológica de Jon Sobrino pretende ser uma reflexão feita a partir do lugar em que está a solidariedade real – traduzida em praxis libertadora – com a causa dos pobres e dos excluídos

Com esta postura, e aplicando-a à Cristologia, Jon Sobrino apropria-se da metodologia própria da Teologia da Libertação, quiçá o contributo mais decisivo que essa TdL deu à reflexão teológica cristã. Como diz o nosso Autor — «a insistência em que só a partir da praxis (da libertação) se pode fazer teologia — este é o contributo mais profundo que a teologia da libertação deu à teologia geral, já que operou um descentramento do problema dos conteúdos da teologia para a própria condição da possibilidade de fazer teologia cristã».[28]

Ao aceitar que a opção-praxis da libertação, traduzida na solidariedade para com as vítimas e a sua causa é o novo horizonte da produção teológica, está-se a postular uma nova metodologia teológica caracterizada fundamentalmente por uma nova racionalidade (racionalidade dialéctica: o compromisso solidário com os pobres-vítimas e seu projecto histórico-libertador é um momento necessário e interno da elaboração teológica) que implica a chamada «rotura epistemológica» (a relação do Ꞌsujeito-teólogoꞋ com o Ꞌobjecto-mensagem reveladoꞋ pressupõe a mediação necessária da Ꞌopção-praxis libertadoraꞋ: o compromisso com os pobres-vítimas, «acto primeiro»; a reflexão teológica estritamente dita, «acto segundo»).

Porque esta opção-praxis, nesta situação histórica existente de injustiça, é a versão fiel e imprescindível do seguimento do Crucificado, na rotura epistemológica mencionada introduz-se a vivência da cruz (teologia a partir da Cruz, pois então).

A incorporação desta metodologia na reflexão cristológica é uma consideração recorrente na obra de Jon Sobrino: «As vítimas oferecem-nos uma luz específica que nos permite "ver" aquilo a que chamamos os "objectos" da teologia: Deus, Cristo, graça, pecado, justiça, esperança, encarnação, utopia, etc.». Mais em concreto: «A perspectiva das vítimas ajuda a ler os textos cristológicos e a conhecer melhor Jesus Cristo. Por outro lado, esse Jesus Cristo assim conhecido ajuda a conhecer melhor as vítimas e, sobretudo, a trabalhar em sua defesa.» É por isso que a «cristologia joga toda a sua relevância» na incorporação (ou não) desta perspectiva.[29]

Este lugar social em que se situa a opção pelas vítimas é aquilo que se poderia denominar — diz Jon Sobrino — «aspecto subjectivo do ponto de partida da cristologia», o seu ponto de partida real.[30] A assunção deste «aspecto subjectivo do ponto de partida» está essencialmente vinculado à convicção de que os pobres são o lugar teológico central da reflexão cristológica: «Procurámos sublinhar a importância do lugar a partir de onde a cristologia se faz… Para a cristologia latino-americana, esse lugar é a realidade do pobre, o qual é, em última análise, uma opção cuja justificação só acontece dentro do círculo hermenêutico: a partir dos pobres cuida-se que se conhece melhor a Cristo, e esse Cristo assim melhor conhecido é aquele que se julga que melhor remete para o lugar do pobre». Precisamente «por serem os privilegiados de Deus … dentro da Comunidade, os pobres questionam a fé cristológica e oferecem-lhe a sua direcção fundamental.»[31], [32]

Sobrino fala também do «lugar eclesial» da cristologia, o qual, em consonância com tudo o que foi dito já, é "a Igreja dos pobres". «Quando a Igreja e os pobres são postos numa Ꞌrelação essencialꞋ, então, surge a Igreja dos pobres e esta converte-se no lugar eclesial da cristologia latino-americana».[33]

Ora bem, estas considerações em torno de os pobres como lugar teológico e de a Igreja dos pobres como lugar eclesial da cristologia também são desvalorizadas pela "Notificação", quando afirma que, com elas, Sobrino coloca a Igreja dos pobres «no lugar que equivale ao lugar teológico fundamental e que é tão só a fé da Igreja». Para a Congregação da Doutrina da Fé, caso se escolham outros pontos de partida para o labor teológico que não sejam a fé apostólica transmitida pela Igreja a todas as gerações, correr-se-á o risco «de arbitrariedade e acabar-se-á por se desvirtuarem os conteúdos da própria fé».[34]

O "Comentário", já várias vezes citado, de «Cristianisme i Justícia», depois de recordar que já no século XVI Melchor Cano mostrou que os «lugares teológicos são de diferentes tipos: existem os "próprios", que podem ser fundamentais (é o caso da Escritura, da Tradição e de toda a Igreja), e os "interpretativos" (é o caso dos Concílios, dos Padres da Igreja e do Magistério); outros são "derivados" (alieni; ex.: a razão natural, a filosofia e a história)» e acrescenta que «se a história é um "lugar teológico" já clássico, não há dúvida de que a enorme ferida da pobreza e da miséria configuram, hoje, o rosto da história, para nós». Como consequência, «é possível e é cristão, para algumas cristologias, falar d’os pobres como lugar teológico».[35]

Conviria, por outro lado, lembrar também que falar, como o faz J. Sobrino, dos pobres e da Igreja dos pobres como lugar teológico da sua cristologia, não pressupõe de forma alguma negar o primeiro e indispensável momento da fé — dom gratuito de Deus livremente acolhido pelo homem —, nem muito menos ignorar a forçosa e consequente vinculação de todo o labor teológico às fontes da Revelação ou da Fé. Sobre isto não nos restam dúvidas, caso tenhamos em conta a distinção que Jon Sobrino faz entre «lugar» e «fonte», o, que conjuntamente com ele, a generalidade dos teólogos da libertação também faz.

Por «lugar» entende-se o "a partir de onde" é que se faz a vivência da fé e a reflexão teológica, ao passo que «fonte» é aquilo que, de uma ou de outra forma, vai alimentando e oferecendo os conteúdos da fé. A missão teológica em geral — e em concreto, obviamente, a tarefa cristológica— será sempre referida às «fontes» no que concerne à determinação do seu conteúdo e significado. Contudo, existe uma estreita e fecunda relação dialéctica entre «lugar» e «fonte; por isso, não convém referi-las separadamente, esquecendo a sua mútua implicação. É assim que J. Sobrino o expressa: «Evidentemente que existe entre os teólogos um primeiro momento de aceitação da fé cristã, mas a concretização dessa fé vai-se dando, ao mesmo tempo, paralela e dialeticamente de braço-dado com a existência real… As fontes da Revelação não são vistas, então, tanto como fontes de conhecimento prévio à análise da realidade e à praxis transformadora, mas como fontes que iluminam a realidade, sendo elas iluminadas, por sua vez, pela praxis agindo sobre a realidade… "Esclarecimento da Revelação" e "praxis" andam juntas, donde o importante não é esclarecer a questão teórica acerca da primazia da lógica ou da Revelação recebida ou da existência cristã entendida como Revelação a realizar (círculo hermenêutico), mas a consciência de se encontrar um processo que inclua dialeticamente, quer as fontes da Revelação, quer a existência cristã concreta, real».[36]

VII-A cristologia de J. Sobrino exige a superação de qualquer concepção afunilada e absorvente da Cruz

Um dos sucessos mais significativos da reflexão cristológica das últimas décadas foi o de colocar a cruz de Jesus numa dupla relação: relação com toda a história da vida de Jesus antecedente à sua morte e com a sua posterior ressurreição. Só assim, creio eu, é que se pode descobrir o seu verdadeiro significado salvífico da cruz, evitar deformar a imagem de Deus revelada em Jesus, bem como esclarecer as consequências cristãs da salvação e da espiritualidade.

A cruz, subtraída da história e de toda a vida de Jesus, corre o risco de se ver vinculada à vontade do Pai, que reclamou o sangue de Jesus para que a ordem alterada pelo pecado possa ser convenientemente restaurada.

Por outro lado, o sequestro da vida de Jesus de toda a consideração teológica da cruz pode conduzir a uma valorização positiva da dor humana, considerada em si mesma. Com efeito, quando a cruz é isolada da história, converte-se num momento pontual da vida de Jesus, em fonte de redenção salvífica. O risco real da «fixação dolorista» parece evidente. A recuperação histórica, que boa parte da reflexão cristológica actual postula — a começar por Jon Sobrino — leva a considerar a morte como o destino final da existência de Jesus, entregue incondicionalmente ao serviço da causa do Reino. A cruz adquire, então, valor soteriológico por ser expressão culminante e verificação incontestável de toda uma vida informada pelo amor solidário feito entrega generosa. Só o amor salva e, por conseguinte, o sofrimento só adquire valor salvífico na medida em que ele seja expressão consequente desse amor que salva.

Quando a cruz se situa em continuidade com toda a vida de Jesus, ou seja, quando é vista como consequência da sua maneira concreta de viver, ela recobra a sua força crítica e libertadora, torna-se julgamento contra o pecado dos poderosos que crucificaram o Justo e é convite premente a lutar contra a opressão, seja lá de que tipo de poder for que não desista de provocar a morte injusta de vítimas inocentes ao longo da História.

Jon Sobrino junta-se decididamente a essa superação de todo o tipo de "concepção pontualista" da cruz, bem como à missão de reconsiderar, de forma coerente, o seu significado salvífico. «Há que salientar que o Novo Testamento não insiste na ideia de que o lado doloroso da cruz é que produz a salvação… Ou seja, não só não afirma nem muito menos se concentra no facto de que, porque houve sofrimento, há salvação, e, por isso, nem o dolorismo nem o masoquismo encontram qualquer tipo de justificação nele, nem muito menos a ideia de que Deus tinha de fazer pagar a alguém um pesado resgate… Aquilo que o Novo Testamento destaca — e aí, sim, há um ponto de contacto com a lógica do modelo teórico do sacrifício — é que Jesus foi agraciado por Deus e por isso Deus o aceitou… Ora, no Novo Testamento, aquilo que foi agraciado por Deus foi a totalidade da vida de Jesus — usando as palavras da Carta aos Hebreus: uma vida em fidelidade e em misericórdia; Heb 3, 2 e Heb 4, 15 — e aquilo que a cruz de Jesus revela, sem lugar para dúvidas, é que foi assim que decorreu a vida de Jesus… Assim sendo — a cruz de Jesus como cume de toda a sua vida — ela poderá ser entendida salvificamente. Esta eficácia salvífica está mais próxima da "causa exemplar" do que da "causa eficiente", o que não nega que foi eficaz: eis aí Jesus, o fidelíssimo e misericordioso até ao fim, convidando e incentivando os seres humanos a reproduzir, neles mesmos, o homo verus, o verdadeiro humano.»[37]

Importa dar destaque à afirmação do nosso Autor: «a cruz de Jesus como culminar de toda uma vida pode ser entendida salvificamente». Nesta afirmação de Jon Sobrino está claro que ele não nega o valor salvífico da cruz. Ele quer dizer que não considera conveniente que se recorra aos modelos posteriores que se encontram no Novo Testamento e na História da Teologia - uns mais conhecidos (sacrifício, aliança), outros mais suspeitos (expiação vicária do Servo), outros inéditos (libertação da Lei) -  os quais, "estritamente falando, nada explicam", não nos dizem nada e que, para além disso, caso não sejam rapidamente «reconvertidos» (reelaborados, retrabalhados), podem veicular ideias confusas e equívocas ao ponto de poder falsear, e inclusivamente perverter, o verdadeiro alcance da salvação cristã.[38] Longe de negar o valor salvífico da morte de Jesus, o que Sobrino prefere é vincular esse valor às categorias de «serviço» ou «entrega», provavelmente influenciado pela opinião de muitos estudiosos da Bíblia que consideram historicamente mais provável que Jesus fosse recorrendo a essas categorias para interpretar o sentido da sua morte, à medida que ia tomando consciência da aproximação desse terrível momento.

Talvez se possa considerar que aquilo que está aqui em jogo - Ꞌcomo explicar o significado salvífico da cruzꞋ - «não pertence à ossatura da fé, mas ao campo de exegese bíblica» e, por isso, «Sobrino limita-se a dizer aquilo que a maioria dos exegetas diz hoje em dia».[39]

VIII-A cristologia de J. Sobrino exige igualmente a superação do sequestro apologético da ressurreição e destaca, ao mesmo tempo, o significado salvífico-libertador dessa ressurreição, especialmente tendo em consideração aa vítimas injustamente crucificadas ao longo da História

Hoje em dia, temos poucas dúvidas acerca do lugar central que a ressurreição de Jesus ocupa na confissão da fé cristã. Porém, convém recordar que a recuperação desse decisivo lugar foi realizada apenas nas últimas décadas. Como o afirma J. Sobrino, «antes do Concílio Vaticano II, a teologia católica praticamente não falava da ressurreição de Jesus, nem na cristologia, nem na soteriologia, relegando-a para a apologética – como um portento sem igual – e para a espiritualidade em que ela se convertia em antecipação e memorial do final da nossa existência, à qual se seguiam as duas possibilidades – salvação ou condenação – o que acabava por levar à desvalorização da História».[40]

O nosso Autor juntou-se a esse esforço, no sentido de recuperar esse tal lugar decisivo ou central da ressurreição, o qual permitiu superar vários males: «o dolorismo da teologia e a crueldade da soteriologia (mal) baseados na cruz, bem como o sacrificialismo unilateral da Liturgia, a qual … chegou ao ponto de ser inteiramente pascal». A isto, conviria juntar — diz ele — que «a investigação bíblica superou um modo de a apresentar como acontecimento mítico podendo mostrar a sua relevância diante das exigências do pensamento moderno e da respectiva antropologia».[41]

Tais progressos, que são indubitáveis, ainda não são suficientes na opinião de Sobrino. Para que a ressurreição, acrescenta ele, «possa manter a sua identidade e relevância, parece-nos necessário adoptar uma nova perspectiva, a qual, recolhendo a novidade da teologia pós-conciliar, vá mais longe». E concretiza: «Esta nova perspectiva deve incluir duas dimensões. A primeira, que a ressurreição de Jesus seja, de alguma maneira, uma realidade que afecte eficazmente a história presente. A outra, e isto sobretudo no Terceiro Mundo, consiste em compreender a ressurreição de Jesus na sua relação essencial com as vítimas, de modo que a esperança que ela desencadeia seja, antes de mais, esperança para as vítimas».[42]

A primeira destas duas dimensões - insistir que a ressurreição deve ter um impacto eficaz na história presente - tem sido muito sublinhada pela teologia cristã, especialmente a partir da publicação, em meados dos anos 60 do século passado, da obra de J. Moltmann "Teología de la esperanza".

Relevar a segunda dimensão é uma das preocupações máximas do nosso Autor. Para ele, ao ressuscitar Jesus de entre os mortos - vítima injustamente crucificada - Deus revela-se como um Deus justo e libertador de todas as vítimas da injustiça, ou seja, como um Deus cuja paixão é mudar o mundo fazendo sua a causa dessas vítimas. Em suma, a acção que ressuscita Jesus coincide com um protesto de Deus contra a injustiça que gera vítimas. Por isso, «o específico da ressurreição de Jesus não é o que é que Deus faz com um cadáver, mas o que Ele faz com uma vítima. A ressurreição de Jesus revela directamente o triunfo da justiça de Deus (e não apenas a Sua omnipotência) e converte-se em boa nova para as vítimas: ao menos por uma vez, a justiça triunfou sobre a injustiça. Nas bem conhecidas palavras de Max Horkheimer, cumpriu-se o anseio do totalmente outro: que "o verdugo não triunfe sobre a vítima". Deus é o Deus libertador das vítimas».[43]

Deste modo, a esperança que a ressurreição de Jesus gera remete-nos para essa História da qual brota o clamor das vítimas, não superando apenas o escândalo da morte natural, mas também - e concretamente - o escândalo da morte antes de tempo e injustamente infligida às vítimas às quais se promete atender às reivindicações delas todas através da ressurreição (antecipadamente realizada) daquela vítima que morreu crucificada no ano 30 da nossa era fora dos muros de Jerusalém (João 19, 20).

IX-J. Sobrino oferece-nos uma cristologia libertadora estreitamente relacionada com a soteriologia

A reflexão teológica sobre a pessoa de Jesus conheceu duas orientações fundamentais ao longo da história: uma, que acabou por ser denominada "cristologia", de carácter mais ontológico ou entitivo, baseada num pensamento mais metafísico e preocupado sobretudo com a definição da identidade de Jesus, o Cristo; a outra, de carácter mais funcional e operativo, baseada num pensamento mais histórico e existencial, com o propósito de clarificar a Sua missão salvífica, à qual se colou o nome de "soteriológica".

Ambas discorreram abundantemente nos últimos séculos por caminhos paralelos, sem se fecundarem entre si.

Acontece que, boa parte da reflexão cristológica actual, recuperando a melhor tradição cristã que vem já dos primeiros séculos do cristianismo, demonstrou que ambas as orientações estão estreitamente relacionadas e, por isso, devem fecundar-se mutuamente.

É a esta missão de recuperação, no sentido já indicado, da melhor tradição cristã - destacando fortemente a necessidade de insistir muito especialmente na sua dimensão soteriológica - que Jon Sobrino se vem juntar: «A cristologia precisa e deve desencadear não só a força da inteligência, mas também outras forças do ser humano. A sua acção deverá ser puramente intelectual - para alguns deverá ser inclusivamente doutrinal -, mas a sua essência mais funda situa-se em ser algo ꞋespiritualꞋ, que ajude as pessoas e as comunidades a encontrarem-se com Cristo, a seguir a causa de Jesus, a viver como homens e mulheres novos e a construir este mundo segundo o coração de Deus».[44]

Para o Autor, que aqui apresentamos, fica claro que a melhor cristologia é a que revela Jesus como Salvador que nos convida a segui-lo e que nos infunde o seu Espírito, de modo a que tal convite se torne realidade em nós. Assim, tal como ele o diz, «fé em Cristo significa, antes de mais nada, seguimento de Jesus».[45]

Poderíamos, então, qualificar a cristologia de Jon Sobrino como cristologia soteriológica do seguimento de Jesus. Esta vinculação essencial entre cristologia e seguimento de Jesus, é felizmente assinalada por muitos: «A praxis do seguimento pertence constitutivamente à cristologia… Princípio válido para todo o tipo de cristologia é que Cristo sempre que seja pensado não seja nunca somente pensado. Toda a cristologia nutre-se, por mor da sua verdade própria, de praxis: a praxis do seguimento… O saber cristológico não se constitui nem se transmite primariamente através do conceito, mas através de relatos de seguimento».[46]

O seguimento surge assim como exigência ineludível que advém de nos situarmos como crentes diante da vida e diante da mensagem de Jesus e, ao mesmo tempo, como fonte de conhecimento que permite aprofundar a todo o momento o significado salvífico dessas duas realidades: vida e mensagem. Em suma e concomitantemente, é uma exigência ineludível que brota do encontro com Jesus, e um lugar a partir do qual se aprofunda esse mesmo encontro, na linha de um processo sempre aberto e nunca acabado.

X-A cristologia de J. Sobrino afirma com vigor a centralidade do Reino de Deus

A centralidade e ultimidade do Reino de Deus na vida e na mensagem de Jesus é a afirmação central e recorrente da reflexão cristológica de J. Sobrino.

Jesus - diz-nos Sobrino - «não se constitui no fim último para si mesmo… Ao nível da consciência de Jesus, é evidente que Ele não se pregou a si mesmo… Jesus nunca pregou ꞋDeusꞋ simplesmente. ꞋDeusꞋ assim, sem mais, não constituiu o último polo referencial de Jesus. Jesus pregou o Reino de Deus e não a sua pessoa. O centro e a referência da pregação de Jesus foi aquele Reino de Deus que se aproximava a passos largos… Aquilo que se quer dizer é que o fim último, para Jesus, é Deus na sua relação com a história dos homens expressa como Reino, a sua proximidade, a sua vontade ou amor paternal, ou, portanto, uma história que seja segundo Deus». Em suma, «Deus nunca é um "Deus-em-si-mesmo", mas um Deus em relação com a História». E acrescenta: «Se isso ainda causa alguma surpresa é porque o cristianismo não superou, como devia ser, as suas origens gregas de muita da sua teologia e não foi capaz de integrar - apesar de muitas declarações formais - a sua origem bíblica».[47]

Segundo J. Sobrino, então, «o fim último para Jesus é a vontade realizada de Deus… O fim último para Jesus é aquilo que o sustentou ao longo da sua história e apesar da história: o serviço e o amor aos oprimidos, de modo a que se implante o Direito e a Justiça, a partir dos quais nasça a imortal esperança de que, apesar de tudo, o Reino de Deus se mantenha por perto».[48]

Esta centralidade e ultimidade do Reino, acabaram com o tempo por se ir desvalorizando de três maneiras:

— «Uma, foi a personalização do Reino: Cristo é o Reino de Deus em pessoa: "autobasileia tou Theou", dirá Orígenes… A partir de agora, importante importante passa a ser a pessoa de Jesus».

— «A segunda forma de desvalorização, mais grave, foi a eclesialização espúria do Reino de Deus… Que a Igreja seja sinal do Reino (para o qual o Concílio Vaticano II apontou, aliás) está correcto, mas em regime de cristandade (e, séculos depois, em regime de sociedade perfeita) chegou-se ao ponto de fazer coincidir Reino de Deus e Igreja, ao ponto de se considerar a Igreja como o fim último eficaz, o que conduziu a graves erros e a muitas aberrações».

— «Finalmente, ele é desvalorizado deslocalizando o Reino para o além, tendência que se impôs com firmeza já no século VI, ou deslocalizando-o para o íntimo, o a-histórico, o esotérico, tendência recorrente ao logo da História. A consequência mais grave (a-jesuânica ou anti-jesuânica, consoante os casos) é que, assim, se o des-historifica e desaparece a relação entre Reino de Deus e libertação dos pobres».

Esta visão de Jon Sobrino acerca da relação entre Jesus e o Reino é considerada «peculiar» pela "Notificação" da Congregação para a Doutrina da Fé. O mais preocupante, para a dita "Notificação", é que, na obra do nosso Autor, «Jesus e o Reino se distingam de tal maneira, que o vínculo entre ambos acabe esvaziado do seu conteúdo peculiar e da sua singularidade», já que «não chega falar de conexão íntima ou da relação constitutiva entre Jesus e o Reino ou de "ultimidade do mediador", se este nos remete para algo que é distinto dele mesmo». E acrescenta: «Jesus Cristo e o Reino num certo sentido identificam-se: na pessoa de Jesus, o Reino torna-se desde já presente».[49]

Após citar numerosos textos bíblicos, os subscritores do "Comentário" de "Cristianisme i Justícia" afirmam, a este respeito: «Portanto, a Bíblia distingue entre Jesus e o Reino de Deus. Mesmo assim, importa dizer que Jesus e o Reino se identificam, mesmo que esta afirmação não pressuponha que se trate de uma identificação total». E acrescentam: «Então, não entendemos porque é que a Congregação da Fé possa escrever que "não chega falar de uma conexão íntima ou da relação constitutiva entre Jesus e o Reino ou de "ultimidade do mediador", se este nos remete para algo que é distinto dele mesmo. Jesus Cristo e o Reino num certo sentido identificam-se". As palavras que destacamos dizem o mesmo que Sobrino! Mas a "Notificação", para o poder condenar, esquece logo de seguida esse facto e identifica totalmente Jesus com o Reino». A conclusão do "Comentário" é lógica: «À "Notificação" podemos objectar justamente que, no seu afã em condenar, acabou por esquecer a expressão "num certo sentido" e identifica totalmente Jesus com o Reino».[50]

Na altura em que decidimos fazer a apresentação da cristologia de Jon Sobrino, podíamos ter escolhido muitas outras questões. A partir dos pontos até aqui desenvolvidos, podemos concluir, dizendo:

- Que estamos perante uma cristologia que é uma excelente expressão do legítimo pluralismo que incumbe à interpretação ortodoxa do acontecimento Jesus.

- Que é uma cristologia importante e seriamente significativa, no momento histórico presente.

- Que a grande preocupação que Sobrinho manifesta, em toda a sua obra - concretamente, em responder com a sua reflexão cristológica ao clamor das vítimas - é claramente evangélica e que só faríamos bem, nós, em acompanhar Jon Sobrino tomando igualmente como nossa a sua preocupação.


Julio Lois Fernández

«La cristología de Jon Sobrino», Instituto Diocesano de Teología y Pastoral, Editorial Desclée de Brouwer S. A., 2007. (IDTP, Plaza Nueva, 4. 48005 Bilbao; Ed. DDB, Henao, 6. 48009 Bilbao). ISBN 978-84-330-22004. Boletim «Xirimiri de Pastoral», do IDTP (de grande valia): http://idtp.org/es/xirimiri/

 

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[1] Cf. «Cristología desde América Latina. Esbozo», Ed. CRT, México, 1977; «Jesús en América Latina. Su significado para la fe y para la Cristología», UCA (eds.), San Salvador, 1982; «Jesucristo liberador. Lectura histórico-teológica de Jesús de Nazaret», Ed. Trotta, Madrid, 11991 (ou 52010); «La fe en Jesucristo. Ensayo desde las víctimas», Ed. Trotta, Madrid, 1999.

[2] Cf., por exemplo, A. Torres Queiruga, «Repensar la Cristología», Ed. Verbo Divino, Estella (Navarra), 1966, pp. 179-213.

[3] Cf. Jon Sobrino, «Jesucristo liberador. Lectura…», op. cit., pp. 62-63.

[4] Cf. J. I. González Faus, «Aceso a Jesús», Sígueme, Salamanca, 1979, p. 27. (Existe edição em brasileiro)

[5] Cf. Id., «La Humanidad Nueva. Ensayo de Cristología», Sal Terræ, Santander, 1984, p. 218.

[6] Cf. Jon Sobrino, «Jesucristo liberador. Lectura…», op. cit., p. 75.

[7] Cf. W. Pannenberg, «Fundamentos de Cristología», Sígueme, Salamanca, 1974, p. 45.

[8] «O inconveniente de partir da divindade de Jesus reside em que Deus se torna para nós um conceito omni-abarcante. Portanto, uma vez estabelecido que "Jesus é Deus" há que dar inúmeras voltas aos miolos até se conseguir arranjar aí algum espaço para que Ele (também) ainda possa ser homem. Temos de confessar que tal é praticamente impossível. Na melhor das hipóteses, resta-nos pespegar em cima desse Deus algum envoltório ou alguns "post-it’s"® oriundos de algum ser humano.» (cf. J. I. González Faus, «Cristología elemental. A propósito de la "última tentación de Cristo" de Scorsese», Ed. Cristianisme i Justícia, Cuaderno N. 26, Barcelona, 1988, p. 8). NOTA: É possível e grátis descarregar este «Caderno C&J», tal como este outro:

https://www.cristianismeijusticia.net/es/memoria-subversiva-memoria-subyugante

[9] Cf. Jon Sobrino, «Cristología desde América Latina. Esbozo.», op. cit., pp. 2-3.

[10] Cf. Jon Sobrino, «Jesucristo liberador…», op. cit., pp. 61-64.

[11] Cf. González Faus, «Aceso a Jesús», op. cit., p. 20.

[12] Cf. González Faus, «Hacer teología y hacerse teología. Notas sobre el significado cultural del quehacer teológico en el Primer mundo y en América Latina», em AA. VV., «Vida y reflexión. Aportes de la teología de la liberación al pensamiento teológico actual», Ed. CEP, Lima, 1983, p. 79.

https://es.wikipedia.org/wiki/Jos%C3%A9_Ignacio_
Gonz%C3%A1lez_Faus

[13] Cf. «Jesús en América Latina…», op. cit., pp. 81-82. Oferece particular interesse, a fim de precisar o alcance da escolha do lado histórico de Jesus como ponto de partida da sua cristologia, o conteúdo das páginas 80-88 desta mesma obra.

[14] Cf. «Jesús en América Latina…», op. cit., p. 35.

[15] Cf. Ibid., p. 35.

[16] Cf. Ibid., p. 40.

[18] Cf. AA. VV. «Comentario a la "Notificación" de J. Sobrino», Cuadernos «Cristianisme i Justícia», nº 148, Barcelona, Junio 2007, pp. 26-27. Convém destacar que este comentário foi assinado pela totalidade da equipa de colaboradores daquele Centro de Teologia dos jesuítas, entre os quais figuram teólogos, teólogas e biblistas acreditad@s. Link para descarregar em PDF:

https://www.cristianismeijusticia.net/sites/default/files/pdf/es148.pdf

[19] Cf. uma opinião crítica porque desafiante: a dissertação doutoral de Gerardo A. Alfaro (Southwestern Baptist Theological Seminary, Dallas/Forth Worth, Texas) publicada em 2017 (mas elaborada e defendida vários anos antes), à volta da cristologia de Jon Sobrino e intitulada «Jesús para América Latina – un análisis de la Cristología de Jon Sobrino», Ediciones El Faro, 6961 Katie Corral Drive Fort Worth, Texas 76 126, 2017, ISBN-13: 978-1978289307. ISBN-10. Cito-a: «Que lugar ocupa o Jesus histórico de Sobrino na sua teologia? Rigorosamente, ao longo do nosso estudo cremos ter comprovado que para Sobrino o Jesus histórico não é o ponto de partida. Dito mais teologicamente, o Jesus histórico não é a norma normans.» (p. 238) «O que interessa não é o conhecimento dos factos [o Jesus histórico], mas o encontro com os seus resultados, com a autêntica prática encontrada na pessoa de Jesus, que está à vista através dos crucificados do tempo histórico presente». (p. 239) [NdT]

[20] Cf. III. 5, da «Notificação sobre as obras de Jon Sobrino», op. cit..

[21] Cf. AA. VV., «Comentario a la "Notificación" de…», op. cit., pp. 29-30.

[22] Cf., «Cristología desde América Latina. Esbozo…», op. cit., p. 59.

[23] Cf. «Jesucristo liberador…», op. cit., p. 204. Para uma consideração ampla desta questão em Jon Sobrino, cf. por exemplo, «Cristología desde América Latina. Esbozo.», op. cit. pp. 59-108 e «Jesucristo liberador…», op. cit., pp. 203-206.

[24] Cf. V.8. Para apoiar a sua posição, a "Notificação", no próprio capítulo 8, cita, logo a seguir, afirmações retiradas: da Carta Encíclica «Mystici Corporis», de Pio XII; da Carta apostólica «Novo Milennio Inuente», de João Paulo II; e do Catecismo da Igreja Católica. E conclui este ponto dizendo que «a relação de Jesus com Deus não se expressa correctamente quando se diz que era um crente como nós. Pelo contrário, é precisamente a intimidade e o conhecimento directo e imediato que Ele tem com o Pai que lhe permite revelar aos homens o mistério do amor divino. Só assim nos pode introduzir nele.»

[25] Também se acrescenta que S. Tomás de Aquino participou do mesmo critério: cf. J. Sobrino, «Cristología desde América Latina…», op. cit., p. 60.

[26] Por causa disto é que P. Hünermann, comentando a "Notificação" da Congregação da Doutrina da Fé, disse que «conjuntamente com Jon Sobrino, também estão no banco dos réus os exegetas e os teólogos sistemáticos mais respeitados, quer católicos, quer protestantes».

[27] Cf. AA. VV., «Comentario a la "Notificación" de…», op. cit., pp. 34-35.

[28] Cf. «Cristología desde América Latina…», op. cit., p. XVIII.

[29] Cf. «La fe en Jesucristo. Ensayo desde las víctimas», op. cit., p. 20.

[30] Recorde-se o que já dissemos atrás no capítulo II deste mesmo trabalho: para J. Sobrino «o ponto objectivo de partida da reflexão cristológica é a pessoa histórica de Jesus». E agora estamos a falar do aspecto subjectivo desse mesmo ponto de partida.

[31] Cf. «Jesucristo liberador. Lectura histórico-teológica de Jesús de Nazaret», op. cit., 52010, pp. 50.

[32] O Papa Francisco fez, do seu programa de pontificado, este «lugar teológico», o qual passou a ser o centro da sua fé práxica: os pobres! Cf.:

https://drive.google.com/file/d/1Iwr8zDsvtqAiFCxhw4Em79uUMeLWc-k2/view?usp=sharing

 [33] Cf. Ibid., p. 50.

[34] Cf. I.2, da «Notificação».

[35] Cf. «Comentario a la "Notificación"…», op. cit., pp. 20-21.

[36] Cf. «Resurrección de la verdadera Iglesia. Los pobres, lugar teológico de la eclesiología», Ed. Sal Terræ, Santander, 1981, p. 52.

[37] Cf. «Jesucristo liberador…», op. cit., pp. 291-294.

[38] Cf., a este respeito, J. Lois, «Jesús y la salvación», AA. VV., «Jesús de Nazaret. Perspectivas», Ed. PPC-Fundación Santa María, Madrid, 2003, pp. 244-284.

[39] Cf. «Comentario a la "Notificación…"», op. cit., p. 37. Neste Comentário aduz-se uma observação importante. Esta questão – diz o Comentário – está em estreita relação com a questão (já tratada atrás) da "fé de Jesus". Com efeito, «se em Jesus não existiu de facto nenhuma fé mas apenas um conhecimento prévio de todos os planos de Deus, então faz sentido procurar associar à sua morte todas aquelas categorias neotestamentárias posteriores à sua morte». Mas, se é verdade que Jesus viveu toda a sua existência impregnado pela sua fé, então, «a opinião de Sobrino parece ser a mais ajustada» (cf. Ibid., p. 37).

[40] Cf. «La fe en Jesucristo…», op. cit., p. 25.

[41] Cf. Ibid., pp. 25-26.

[42] Cf. Ibid., p. 26.

[43] Cf. Ibid., p. 130.

[44] Cf. «Jesucristo liberador…», op. cit., p. 19.

[45] Cf. Ibid., p. 27.

[46] Cf. J. B. Metz, «La fe, en la historia y en la sociedad», Ed. Cristiandad, Madrid, 1979, pp. 66-67.

[47] Cf., «Jesús en América latina…», op. cit., pp. 98-99.

[48] Cf. Ibid., p. 109. Para uma análise mais detalhada desta questão na obra de Jon Sobrino, cf. também: «Cristología desde América Latina…», op. cit., pp. 31-58; «Jesús en América latina»… op. cit., pp. 97-114; «Jesucristo liberador…», op. cit., pp. 95-141; «La fe en Jesucristo…», op. cit., pp. 337-340.

[49] Cf. IV.7. A favor da sua postura, a Congregação aduz que a identidade entre Jesus e o Reino «foi posta em relevo desde a época patrística» e, recentemente, reafirmada por João Paulo II na Encíclica Redemptoris Missio.

[50] Cf. «Comentario a la "Notificación"… op. cit., pp. 32-33.



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