A tripla e profunda
helenização do cristianismo
envolve uma certa ‘paganização
parcial’ do mesmo
O PROCESSO DE DIVINIZAÇÃO DE JESUS
Juan Currais Porrúa
1.
Os estudiosos da antropologia cultural tendem a ter duas perspetivas diferentes sobre a compreensão de uma cultura, a dos nativos e a do investigador. A primeira é chamada de «émica» e refere-se à visão do mundo da cultura em análise e às experiências e perceções internas dos seus membros. A segunda é chamada de «ética» e refere-se à perspetiva externa do antropólogo, que utiliza uma metodologia científica para compreender e explicar objetivamente um dado grupo cultural, para além da auto-compreensão subjetiva que o grupo tem de si mesmo.
O historiador francês Ernest Renan, autor da famosa “Vida de Jesus” (1863) que, no final do século XIX, causou forte impacto e até escândalo num público doutrinado desde a infância na ‘teologia abreviada do Catecismo’, disse que quem melhor conhece uma religião são aqueles que a abandonaram depois de terem sido crentes e membros dela. A razão é que essa religião tem uma dupla perspetiva: a experiência interna subjetiva própria da fé teológica e a compreensão externa e objetiva, própria da ‘ciência histórica’ ou da ‘exegese crítica’.
Tendo em mente a distinção apontada, a dupla abordagem pode ser aplicada igualmente à análise e à compreensão histórica da religião cristã, como alguns estudiosos fizeram. De facto, o cristianismo é um elemento constitutivo essencial da cultura ocidental, em estreita união com o pensamento helénico a nível filosófico e científico.
O filósofo italiano
Benedetto Croce afirmou que "não podemos deixar de ser cristãos" do ponto de vista cultural, o que é muito diferente do campo da crença na fé e na prática cultual. Algo semelhante acontece com o islamismo, que invadiu, como uma maré ideológica, a cultura de muitos Estados, ainda mais intensamente, já que o Islão não passou pelo "purgatório" do Iluminismo ou da ciência bíblica.
Assim, se alguém parte do catecismo tradicional (abordagem "
émica") para conhecer a história de ‘Jesus, o Galileu’, o que encontrará é a doutrina sobre o Cristo da fé, criada pela primeira vez pelo apóstolo Paulo, que fez do adjetivo grego "christós" (= ungido com óleo) um "nome próprio" que aparece nas suas cartas para designar o Messias Jesus. Daí vem o nome composto de Jesus-Cristo, do hebraico ‘Yeshuah’ (= Javé salva) e do grego ‘Christós’ (Cristo), que traduz o hebraico ‘moshiah’ (Messias).
Por esta razão, como apontam investigadores independentes que negam a hipótese mítica, a palavra Jesus Cristo não denota uma realidade histórica, mas implica implicitamente uma paradoxal confissão de fé típica da teologia dogmática, afirmando semanticamente que Jesus é o Messias, em consonância com a revelação bíblica. A história do historiador é o uso do termo Jesus em referência a um sujeito histórico e tão humano como qualquer outro do seu tempo.
Aquando do seu desenvolvimento histórico, à cristologia paulina, elaborada de forma epistolar na década de 50, juntaram-se mais tarde as cristologias dos evangelhos sinóticos (Marcos, Mateus e Lucas) redigidos entre os anos 70 e 80 e também, no final do século I, a cristologia do Quarto Evangelho de João, que está escrita numa base muito diferente da sinóptica. O Evangelho de João (João, que não foi Apóstolo), escrito inteiramente numa chave simbólica e com elementos gnósticos claros, baseia-se na
Teofania do Logos, isto é, na encarnação do Filho Unigénito de Deus, que será fundamental para a elaboração dogmática do Credo de Niceia (325 E.C.), Credo concluído no Concílio de Constantinopla I (381 E.C.), numa atmosfera carregada de acesas disputas doutrinárias, que implicaram a condenação de numerosos grupos heterodoxos.
Se, por outro lado, partirmos de uma abordagem crítica (externa ou "
ética"), típica da pesquisa histórica, chegaremos a conclusões muito diferentes. A religião de Jesus não era o cristianismo, mas o judaísmo, tanto na sua dimensão jurídica como culta, como é defendido, entre outros e por muitos historiadores, Julius Wellhausen. Jesus era um observador fiel da Lei Judaica, embora, como outros rabinos (Hillel ou Shammai), ele fizesse a sua própria interpretação dela, rigorista em alguns casos, como na questão do divórcio, e laxista em outros, como na observância do sábado, ao contrário do rigoroso legalismo essénio. O próprio
J. P. Meier [1942-2022], o melhor exegeta católico da contemporaneidade, intitulou a sua volumosa obra (Editorial Verbo Divino em 4 volumes/6 tomos) "
Um judeu marginal", para reafirmar o pleno "judaísmo" de Jesus.
Como afirma o investigador americano Balt Ehrmann, o cristianismo não é a religião de Jesus, mas a religião sobre Jesus que ele não conhecia, pois foi formada apenas após a sua morte na cruz ordenada pelo procurador romano Pilatos.
Estudiosos da génese histórica do cristianismo afirmam que sem o apóstolo Paulo é impossível entender o nascimento da nova religião cristã a partir de uma seita judaica de caráter apocalíptico. Paulo foi, sem dúvida, uma condição necessária, embora não suficiente, para o nascimento e desenvolvimento do cristianismo.
2.
O fato histórico mais certo que conhecemos sobre o profeta e pregador apocalíptico Jesus de Nazaré (ou “
Nazireu”, porque ele tinha feito voto de "nazir"; cf. S. Paulo,
Actos 21,23-26;
Números 6,10), é que ele foi condenado pelos romanos à pena de crucificação e colocado no meio de dois outros prováveis insurgentes, que a tradição descreveu como ladrões ou malfeitores, como afirma o evangelista Lucas.
Mas, a verdade é que os romanos não crucificavam simples criminosos comuns, fossem eles bandidos ou ladrões. Apenas aplicaram o terrível castigo sangrento da crucificação aos rebeldes contra o império e, de facto, houve milhares de condenados à crucificação, não só na Palestina, como mostra a conhecida rebelião escrava de Espártaco, transformada em filme no século XX.
Foi o mais cruel dos castigos romanos, segundo Cícero. A crucificação coletiva do Calvário foi uma entre muitas, aplicada a rebeldes ou resistentes contra o poder imperial. A tradição cristã, no entanto, transmitia a imagem distorcida de um inocente e fraco Pilatos, que se deixou levar pelos pérfidos judeus, pelas autoridades e pelas massas populares, que no Evangelho de Mateus clamam pela crucificação apesar de previamente o terem aclamado como ‘O Messias, filho de David’.
Nos relatos evangélicos, segundo a pregação primitiva, o tema central é a paixão e a morte de Jesus. A partir daí foram acrescentados outros temas provenientes das tradições orais relacionadas com os ‘ditos’ e ‘feitos’ do Nazareno vinculados à sua própria pregação.
É por isso que alguns estudiosos afirmam que esses relatos da vida e do ensinamento de Jesus são apenas uma introdução ou prelúdio à sua ‘paixão, morte e ressurreição’ que fora o núcleo doutrinário que os evangelistas herdaram da teologia de Paulo de Tarso, numa altura em que ainda não tinham sido compostos os evangelhos. Paulo escreve suas ‘cartas autênticas’ na década de 50, enquanto os evangelistas escrevem muito mais tarde, provavelmente entre 70 e 100 da era comum [E.C.=d.C.].
Após o fracasso de sua pregação do «Reino de Deus» na Galileia e na fase final da sua vida, Jesus surge em Jerusalém com uma pretensão régio-messiânica, aspirando a ser um Messias de Israel, tal como aconteceu com vários outros resistentes contra o Império Romano, segundo o historiador judeu Flávio Josefo. O título que está cravado na cruz "Rei da Judeia" indicava que o prefeito romano Pôncio Pilatos, que teve o privilégio de ser mencionado no Credo cristão, condenou-o pelo crime político de sedição contra o império e não por simples razões religiosas (p. ex., por blasfémia), tal como contam os evangelistas e a tradição cristã.
Jesus, sem dúvida um pregador carismático, poderia ter acreditado ser um Messias libertador de Israel, como pensavam os seus discípulos: «Esperávamos que ele libertasse Israel» (Lc 24, 21), mas de modo algum se considerava um ser divino, nem os seus discípulos o consideravam divino antes da sua morte na cruz, o que seria blasfémia para um monoteísta judeu. Naturalmente, também não foi objeto de adoração durante sua vida terrena.
No entanto, tal como outros importantes benfeitores (euergétai) do mundo judaico e greco-romano, após a sua morte passou por um lento e gradual processo de deificação, passando de mero ser humano à categoria de homem divino (theîos anér), sendo exaltado com o título divino de Senhor (Kyrios), salvador universal (sotér) e Filho Unigénito (monogenés) de Deus preexistente e como Logos divino depois no Quarto Evangelho.
Finalmente, nesta cristologia progressivamente ascendente, foi elevado à categoria ontológica, definida como consubstancial (homooúsios), isto é, da mesma substância, natureza ou essência de Deus Pai, e até mesmo coeterna com Ele. Isso acontecerá 300 anos depois, no Primeiro Concílio de Niceia (325), o que implica uma verdadeira metamorfose ou mutação ontológica do personagem.
Paralelamente à exaltação piedosa no culto, a exaltação metafísica ao nível especulativo por parte dos teólogos eruditos continuará, acompanhada por uma exaltação do caráter moral como modelo exemplar, perfil dominante que perdura até hoje.
Do ponto de vista histórico, Jesus nunca foi um ser absolutamente único e singular, misterioso, incompreensível, uma figura incomparável, como sustenta a maioria dos exegetas e estudiosos confessionais a partir de postulados apologéticos mais ou menos implícitos.
É o que propôs o biblicista alemão H. S. Reimarus (séc. XVIII): a figura do Jesus histórico deve ser entendida como distinta do Cristo da fé e analisada como mais um fenómeno dentro da história geral das religiões, segundo uma abordagem que é peculiar da "Escola da História das Religiões" alemã.
Não é, portanto, um enigma inexplicável, como se afirma a partir de pressupostos apologéticos ou a partir da devoção religiosa. A união tradicional feita pela teologia entre a figura humana de Jesus e o epíteto divino de Cristo, - uma simbiose nascida da fé - gera confusão epistemológica e "ex confusione, quodlibet".
Por esta razão, a separação dos dois termos é uma premissa indispensável para qualquer abordagem científica ou racional da história de Jesus. Há cristãos, porém, que negam todo e qualquer discurso racional, seja teológico ou científico, e refugiam-se no fideísmo de uma experiência mística de caráter solipsista.
O que um historiador tem de entender e tem de explicar é a génese e a evolução do processo de divinização, pelo qual os discípulos de Jesus, após a infame morte do mestre, executada pelos romanos, passaram de considerá-lo humano a acreditar nele como um ser semidivino ou plenamente divino, digno de adoração.
3.
A questão fundamental para um historiador, então, é: como é que o Jesus galilaico, sendo plenamente humano, veio a tornar-se num ser divino? Esta pergunta é respondida, entre muitos outros, pelo estudioso americano
Bart D. Ehrman em seu livro «
How Jesus Became God» (
e em português). Na antiguidade greco-romana - afirma este autor - há inúmeros casos de seres humanos divinizados, exaltados aos céus por um processo de apoteose.
Assim, César Augusto em Roma, sendo um filho adotivo, foi elevado à categoria de númen divino que era adorado. Rómulo, o mítico fundador de Roma, acreditava ter subido ao céu e também era adorado como um deus.
No contexto do mundo judaico, Moisés, entre outros, também foi levado ao céu e feito um ser divino. Da mesma forma, as figuras judaicas de
Henoque (
Génesis 5,18) e
Elias [
2 Reis 2] foram exaltadas ao céu sem passar pela morte. Imitando-os e 20 séculos depois, o Papa Pio XII, em 1950, proclamou que Maria, mãe de Jesus (e mãe de Deus desde o Concílio de Éfeso), foi assumida de corpo e alma no céu sem passar pela morte natural.
É assim que se define o último dogma mariano, a Assunção, que entrará no Catecismo apesar de carecer de qualquer fundamento bíblico, tal como o dogma anterior da Imaculada Conceição, proclamado pelo Papa Pio IX em 1854.
Entre os gregos, encontramos também casos de seres humanos que, pelas suas ações altamente benéficas e pelos seus feitos heroicos, extraordinários ou prodigiosos, adquirem a imortalidade por “apoteose”. É o caso de Héracles depois dos seus duros e cansativos trabalhos, Dionísio, Perseu ou Asclépio, o curandeiro de Epidauro.
Aristóteles na sua «Ética a Nicómaco» (Livro VII) refere-se aos seres humanos que "se tornam deuses ("gignontai theoi") por causa de sua extraordinária virtude" [«E também as memórias gloriosas Daqueles Reis, que foram dilatando A Fé, o Império, e as terras viciosas De África e de Ásia andaram devastando; E aqueles, que por obras valerosas Se vão da lei da morte libertando; Cantando espalharei por toda parte, Se a tanto me ajudar o engenho e arte.», in “Os Lusíadas”, L. V. de Camões]. O filósofo siciliano Empédocles é um exemplo notório de tal divinização, como Pitágoras de Samos tinha sido, também elevado à condição divina por seus discípulos.
Esta mesma teoria da conversão de homens notáveis em deuses por “apoteose” é defendida por
Evémerus de Messina (século IV a.C.) tendo o “evemerismo” uma grande influência nos tempos helenístico e romano e até na era moderna, como por exemplo na filosofia da religião de Hume ou de Voltaire.
Na verdade, uma ideia semelhante já havia sido defendida antes pelo sofista
Pródico de Ceos, contemporâneo de Sócrates. Curiosamente, alguns Padres da Igreja dos primeiros séculos usaram o "evemerismo" para explicar a divinização dos deuses pagãos, mas não o aplicaram à figura do Cristo em quem acreditavam firmemente.
Assim, os modelos helénico e romano foram plausivelmente aplicados a Jesus por um processo normal de osmose cultural. Héracles foi um benfeitor ou salvador dos mortais por vencer as forças do mal e Jesus, em paralelo, foi proclamado salvador universal por ter derrotado o Maligno da tradição apocalíptica judaica, à qual pertencia. Jesus, na visão das histórias evangélicas do Novo Testamento, superará Asclépio por suas curas, exorcismos e ações portentosas, chamadas milagres.
Mas a faculdade de realizar milagres era igualmente atribuída no mundo antigo a outras figuras, como Apuleio ou
Apolónio de Tiana, uma vez que as crenças em ações mágicas e portentosas eram generalizadas.
Tradicionalmente, no entanto, os milagres do Novo Testamento e as profecias do Antigo Testamento eram apresentados pela apologética cristã como argumentos (falaciosos) a favor da divindade de Jesus.
Com base na teologia paulina, as ações benéficas e salutares do Nazareno concedem antes de mais saúde física e corporal e só depois salvação espiritual.
A palavra grega "sotería", bem como a palavra latina "salus", significam saúde e salvação. Marcos, o primeiro evangelista histórico, enfatiza a figura de Jesus como curandeiro dos doentes e curandeiro através de exorcismos de supostos demónios, enquanto Paulo o torna um salvador espiritual, redentor universal por sua
morte vicária em benefício de toda a humanidade.
4.
Fernando Bermejo Rubio
[1], na sua excelente e desmistificadora obra de 2018, «La invención de Jesús de Nazaret. Historia, ficción, historiografía» (Siglo XXI) distingue no Novo Testamento dois modelos cristológicos de divinização: a) um modelo ascendente, onde um ser humano é exaltado ao céu através da “apoteose” e b) um modelo descendente, de pré-existência ou teofania, onde um ser divino desce à terra: como ‘revelador’ torna-se humano com uma missão salvadora; depois regressa ao céu. Ambos os modelos, segundo este historiador, aparecem justapostos em textos do Novo Testamento.
O primeiro modelo cristológico encontra-se na Carta de Paulo aos Romanos (
Rm 1, 3-4), onde Jesus, um ser humano em sentido pleno, que nasceu dos descendentes de Davi segundo a carne («katà sárka») e que a partir da sua ressurreição dos mortos («ex anastáseos nekrôn») é constituído Filho de Deus com poder segundo o Espírito de santidade («katà spneûma hagiosýnes»). Como já se disse, Paulo não está interessado em narrar a vida e os feitos do Jesus terreno, como os três sinóticos farão mais tarde, mas apenas em destacar a sua morte e ressurreição, cuja fé salvará os novos convertidos, judeus ou gentios.
O mesmo padrão ascendente de divinização é encontrado no discurso de Pedro nos Atos dos Apóstolos (
2, 36), onde ele afirma que, na ressurreição, Deus constituiu Senhor (Kyrion) e Messias (Christo) o Jesus que os judeus crucificaram (não os romanos). Ou seja, Deus adotou-o como seu Filho depois de o ter ressuscitado. Aqui encontramos a cristologia primitiva de caráter adocionista, que no Credo niceno se tornará herética. Em
Atos (13,33) Paulo afirma a mesma doutrina: que Deus ressuscitou Jesus dos mortos tornando-o o Filho de Deus, em cumprimento das promessas feitas aos pais e de acordo com o
Salmo 2,7 ("Tu és meu filho, hoje eu te gerei").
Da mesma forma, o autor de Hebreus, que não é Paulo, mas sim um discípulo, afirma (
Hebreus 1,2-4) que Deus constituiu seu Filho Jesus herdeiro do universo, sendo elevado à direita de Deus e feito maior que os anjos com um nome mais excelso do que eles. O evangelista Marcos, escrevendo depois de 70 d.C., recebe da cristologia de Paulo a doutrina da filiação divina, mas antecipa a divinização de Jesus para o momento do seu batismo que é administrado por João Batista no rio Jordão, momento que marca o início da sua vida pública.
O batismo de Jesus é muito provavelmente histórico, por causa do ‘critério’ que os exegetas denominam ‘de dificuldade’. Se na realidade o batismo de João foi para o perdão dos pecados, isso implica que Jesus era apenas mais um ser humano com consciência do pecado e necessitado de purificação, o que causou à igreja dos começos um problema teológico difícil de explicar. Mas é neste rito batismal que ele é exaltado como ser divino, isto é, adotado como Filho de Deus, tal como afirma o texto bíblico: “Viu serem rasgados os céus e o Espírito descer sobre Ele como uma pomba. E do céu veio uma voz: «Tu és o meu Filho muito amado, em ti pus todo o meu agrado.»” (Mc 1, 10-11).
Note-se que no evangelista Marcos Jesus aparece subordinado ao pai, como fez anteriormente em Paulo. A chamada doutrina subordinacionista seria a doutrina maioritária e dominante nos primeiros três séculos, em Justino, Tertuliano, Ireneu, Clemente e Orígenes, entre outros, até ser condenada como doutrina herética em Nicéia, no âmbito do processo anti-ariano. Marcos, o primeiro evangelista, não faz qualquer referência ao nascimento virginal de Jesus ou à “pré-existência” ou à “encarnação” do Verbo.
Mateus e Lucas, que escrevem depois de Marcos nos anos 80 do século I, também narram o acontecimento do batismo de Jesus, acrescentando diferentes nuances à interpretação, adaptada às suas próprias comunidades, com uma versão mais judaica em Mateus e uma versão mais helenística em Lucas. No entanto, ambos vão para além de Marcos e colocam a divindade de Jesus em estreita união com o nascimento virginal. Mateus e Lucas são os únicos dos quatro evangelhos canonizados que criam relatos sobre a infância de Jesus, relatos lendários em praticamente toda a sua extensão à semelhança dos apócrifos posteriores, recheados de fantasia a fim de preencher o enorme vazio da vida oculta de Jesus, precisamente aquela vida que antecedeu a sua vida pública na dependência de João Baptista, o seu mentor.
5.
No evangelista Lucas aparece o lendário relato da anunciação, onde o Arcanjo Gabriel aparece a Maria, anunciando que ela conceberá e dará à luz um filho pelo poder do Espírito Santo. Maria suplicou ao anjo que não conhecia um homem e Gabriel respondeu: «O Espírito Santo virá sobre ti, e o poder do Altíssimo te cobrirá com a sua sombra, e por isso o Filho gerado será santo, será chamado Filho de Deus» (Lc 1, 35).
Portanto, na história lucana, Maria não será coberta de sémen masculino, mas da sombra do Espírito Santo. Na mitologia grega há casos paralelos de filhos de mulheres e deuses imortais. Por exemplo, Zeus, transformado numa chuva de ouro, engravida Danae (ou Danai) e dessa união nasce Perseu.
Mateus afirma também a conceção milagrosa de Jesus por obra do Espírito Santo, vendo nela o cumprimento da profecia de Isaías 7, 14: «Eis que uma donzela conceberá e dará à luz um filho, e o seu nome chamar-se-á 'Emanuel', que significa 'Deus connosco'» (Mt 1, 22).
No texto hebraico falava-se de uma donzela casadoira ("almah"), mas a versão dos LXX (ou Septuaginta) traduziu essa expressão para o grego usando uma expressão que sugeria que Maria era virgem ("parthénos"), tendo sido assim que ela perduraria na tradição teológica. Com o tempo, a virgindade de Maria tornar-se-á perpétua, isto é, será “não só virgem antes do parto, mas durante o parto e depois do parto”, passando para o Catecismo como objeto de fé e para o Culto como objeto de veneração.
O texto de Mateus acrescenta que José não a "conhecia" até que ela deu à luz o primogénito Jesus. Pressupõe-se que os restantes irmãos e irmãs de Jesus nasceram naturalmente, não sobrenaturalmente. Por outro lado, o pretenso e popular presépio de Belém, de enorme sucesso no culto, não passa de um "theologoumenon" (
teologúmeno) uma tese teológica sem fundamento histórico.
Mateus e Lucas propuseram Belém como o cumprimento de uma profecia bíblica, que anunciava que a cidade de Davi era o local de nascimento do futuro Messias, Messias que para eles é Jesus, ao contrário do que os judeus pensavam.
O segundo modelo de deificação afirma a preexistência e aparece claramente no prólogo do Quarto Evangelho, escrito depois de Lucas e Mateus, no final do século I (entre 95 e 100). Jesus está aqui identificado com a “Palavra divina pré-existente com Deus”. É designado pelo termo helénico «Logos», o Verbo que desce do céu e se faz carne humana: «E o Verbo fez-se carne ('kai ho Lógos sarx egéneto') e habitou entre nós» (Jo 1, 14).
O Logos pré-existente estava no princípio com Deus e Ele era Deus (Jo 1,1-3), e todas as coisas foram feitas através d'Ele, sendo esta maneira de dizer as coisas nada mais do que uma “leitura midrashica” do relato da criação no início do livro do Génesis (um "Midrash" é uma reinterpretação de um texto do Antigo Testamento para torná-lo mais compreensível para os crentes da época).
O autor do Prólogo do Quarto Evangelho, que não é o apóstolo João, faz uma síntese de ideias da Bíblia hebraica e ideias helénicas da filosofia grega através de Fílon de Alexandria e da sua conceção do Logos divino como sendo o intermediário entre o criador - Deus transcendente - e as suas criaturas.
Em vários textos bíblicos, a Palavra de Deus aparece personificada ("
dabar"), unida à criação do céu e da terra, e conectada com a personificação da Sabedoria de Javé na literatura sapiencial (Salmo 33, Provérbios 8,22-27 ou Sabedoria 13,1-8). Em
Sab. 9,1-4 Palavra e Sabedoria estão unidas na criação: «Deus dos nossos pais e Senhor de misericórdia, que tudo criaste pela tua palavra («Logos»), que formaste o homem pela tua Sabedoria («sophia»), a fim de que dominasse sobre todas as criaturas que chamaste à existência, governasse o mundo com santidade e justiça e exercesse o julgamento com rectidão de espírito, dá-me a Sabedoria que se senta junto do teu trono e não me excluas do número dos teus filhos.»
Estes textos podem ser o pano de fundo judaico do Prólogo de João, juntamente com o conceito grego de “Logos” de Fílon de Alexandria. Este último, inspirado na filosofia platónica e estoica, concebe o Logos como arquétipo e mediador entre os mundos inteligível e sensível. Ele é divino, mas está subordinado a Deus porque é a sua imagem. Governa o cosmos e dá-lhe vida, o que recorda a razão cósmica e panteísta dos estoicos, inspirados no Logos de Heraclito, razão imanente no cosmos. Fílon concebe-o como “o segundo deus” ("deuteros theos"), o "primogénito de Deus", o agente divino que executa os planos para a criação do mundo.
Paralelamente, o Logos de João é também o mediador cósmico da criação, o mediador salvífico e o portador da revelação, no estilo gnóstico. Ao encarnar-se, Ele torna-se presente no mundo como Vida e como verdadeira Luz, que ilumina aqueles seres humanos que receberam e viram a Sua glória como o Unigénito do Pai.
Com a teofania do Logos de João, a deificação de Jesus atinge o seu ponto culminante no Novo Testamento, o que será expresso no Credo niceno em termos metafísicos gregos, ao mesmo tempo que afirma a identidade de substância entre o Filho e o Pai (“homooúsios” ou “consubstancial”).
6.
Na Carta aos Colossenses (1, 15-20), que é deutero-paulina, defende-se um modelo semelhante, afirmando que Jesus Cristo é a «imagem de Deus (“eikôn toû Theoû”) invisível e primogénita de toda a criação (“prototokos pases ktíseos”), porque n'Ele foram criadas todas as coisas no céu e na terra». No século IV, Ario tomou este texto como base de sua doutrina heterodoxa, defendendo que Cristo é a primeira criatura gerada do nada ("ex nihilo") e, portanto, um ser inferior ao Pai, indo contra a tese da identidade da sua natureza ("homooúsios"), que é a doutrina de Atanásio, e que viria a ser declarada ortodoxa pela maioria no Concílio em Niceia.
O autor de Colossenses concorda com o prólogo de João ao descrever Cristo como o mediador da criação, mas em João o Logos é gerado, não criado, como afirmará o Credo niceno contra Ario. O evangelista João é, portanto, um subordinacionista, o mesmo que Paulo, uma vez que o Logos não tem identidade de essência com Deus Pai, ou seja, não é «homooúsios».
No entanto, na carta paulina aos
Filipenses (2,6-11) parece que os dois modelos propostos por Fernando Bermejo estão presentes, embora a existência ou não de uma preexistência seja uma questão muito discutida entre os especialistas. O modelo de “apoteose”, no entanto, é mais claro aqui. Cristo Jesus, existindo sob a forma de Deus ("en morphêi Theoû"), esvaziou-se ("heautòn ekénosen"), tomando a forma de um servo ("morphèn doûlou") e assemelhando-se aos humanos (excepto no pecado), tornou-se obediente até à morte na cruz, razão pela qual «Deus o elevou acima de tudo e lhe concedeu o nome que está acima de todo o nome, para que, ao nome de Jesus, se dobrem todos os joelhos, os dos seres que estão no céu, na terra e debaixo da terra; e toda a língua proclame: «Jesus Cristo é o Senhor! (Kyrios)», para glória de Deus Pai.»
Assim, através de um lento processo de deificação, começando com o homem Jesus a tornar-se um ser divino, concluiu-se a teofania de ‘Deus feito homem’, que constituirá o dogma futuro da Encarnação. O Credo do Concílio de Constantinopla sintetizará diferentes cristologias do Novo Testamento: afirmará a filiação divina de Cristo a nível ontológico, incluindo a pré-existência e encarnação em João, o nascimento virginal em Mateus e Lucas e a ressurreição ao terceiro dia em Paulo (1 Cor 15). Mas nega-se o adocionismo de Marcos, que passará para os
ebionitas judaizantes [«…para Jerónimo, Ebion teria vivido na época do apóstolo João, sendo repreendido pelo apóstolo por não acreditar que Jesus existia antes de Maria»!!!] e para Paulo de Samosata, condenado como herege no séc. II.
Jesus passou assim de «Filho adotivo de Deus» para «Filho natural», no sentido de geração ôntica, isto é, concorrente ou consubstancial a Deus Pai. É claro que, para a teologia ortodoxa tradicional, é inaceitável aplicar a Jesus, o Cristo, a hipótese científica de um processo de endeusamento de um ser humano, semelhante ao de outras figuras históricas também divinizadas, no judaísmo e no helenismo.
A teologia, tradicional e atual, só admite a tese confessional da encarnação de um Deus preexistente que se torna humano ("humanização de Deus", dizem os teólogos), de modo que a questão teológica relevante para os medievais já era "Cur Deus homo", porquê Deus se fez homem e não o contrário, porquê e como um humano poderia tornar-se divino, que é a questão básica para um historiador como pesquisador independente, não sujeito a postulados confessionais. Para a teologia, por outro lado, a singularidade de Jesus é um axioma inquestionável, derivado da convicção da fé.
Em suma, Jesus sofreu uma tripla exaltação: a religiosa através do culto, tornando-o uma figura divina à direita de Deus Pai, depois da fé em Cristo ressuscitado. O segundo é a exaltação moral como paradigma sublime de exemplaridade moral, que é feita pelos quatro Evangelhos canonizados, influenciados por Paulo. A terceira é a exaltação teológica feita por especialistas por meio de categorias metafísicas gregas, alheias aos textos bíblicos e à realidade histórica (Cf. «La divinización de Jesús: estratégias bio(teo)gráficas», Cap. XIV de «
La Invención de Jesús de Nazaret», SIGLO XXI, p. 455).
É a helenização profunda do cristianismo no plano filosófico, após a helenização primária através da língua grega, a partir da versão grega dita da LXX, e a secundária através dos cultos de mistérios helenísticos, que influenciaram Paulo de Tarso. Todas as três formas de helenização sobreviveram até aos nossos dias e envolvem uma paganização parcial do cristianismo, que seletivamente absorve e incorpora certos elementos pagãos e rejeita outros. Se a tríplice helenização apontada é negativa, como pensava a tradição protestante, especialmente Adolf von Harnack, ou positiva, como defendeu recentemente o teólogo e papa Joseph Ratzinger, é uma questão controversa entre teólogos e historiadores confessionais.
(Publicado em "Religión Digital" nos dias 18, 21, 24, 27 e 30 de maio e 10 de junho de 2023)
Fernando Bermejo Rubio
Fernando Bermejo Rubio, doctor en Filosofía y máster en Historia de las religiones, es un reconocido experto a nivel internacional en el judaísmo de época herodiana –con especial atención a la historiografía sobre Jesús de Nazaret–, el cristianismo antiguo y el maniqueísmo. Ha sido profesor en el Departamento de Filosofía de la Universitat Autònoma de Barcelona y docente de cristianismo antiguo en el máster de Historia de las Religiones (Universitat de Barcelona) y en el de Religiones y Sociedades (Universidad Pablo de Olavide). En la actualidad, ejerce como profesor del Departamento de Historia Antigua de la UNED (Madrid).
Ha publicado numerosos artículos de investigación en prestigiosas revistas europeas y americanas, así como en volúmenes especializados. Es autor de los libros: «La escisión imposible. Lectura del gnosticismo valentiniano» (1998); «El maniqueísmo. Estudio introductorio» (2008), y «Los judíos en la Antigüedad. Desde el exilio en Babilonia hasta la irrupción del islam» (de próxima aparición en 2020). Es coeditor, con Josep Montserrat, de «El maniqueísmo. Textos y fuentes» (2008). Ha preparado la edición del texto apócrifo copto «El evangelio de Judas. Texto bilingüe y comentário» (2012), así como la edición española de relevantes contribuciones historiográficas del siglo xx: Maurice Goguel, «Judíos y romanos en la historia de la pasión» (2018); Viktor Burr, «Tiberio Julio Alejandro» (de próxima aparición en 2020).