(…)
3.4 Âmbito da compreensão
Tal como já vimos, a ressurreição não é um facto histórico,
ou seja, algo que se possa constatar usando uma metodologia. As «aparições»
não são provas, no sentido científico ou histórico, mas maneiras de
mostrar como é o corpo ressuscitado. As aparições pertencem ao género literário
«epifania», manifestação da divindade[1],
que apenas tem valor para quem a experimenta e para todos aqueles que a ela
aderem.
Isso não significa de nenhuma maneira que a ressurreição
pertence intrinsecamente ao âmbito do irracional. Quando alguém diz isso é
sinal que sustenta um conceito estreito e unilateral de racionalidade herdado
da Ilustração.[2] Para entender o
significado da ressurreição é preciso, antes de mais, delimitar
o âmbito da sua compreensão. Mais correctamente deve dizer-se «os
âmbitos da sua compreensão», já que ela pode ser encarada a partir de vários
ângulos.
Pode ser encarada a partir do âmbito das ciências sociais e históricas.
Nesse caso, o que pode ser observado são os efeitos que a crença na
ressurreição produz em determinados grupos humanos, e, para aquilo que nos
interessa, os efeitos que produz no movimento de Jesus: os discípulos
experimentam uma transformação radical, adquirem um dinamismo criativo
inacreditável. Porém, as ciências sociais não descobrem nenhuma ressurreição
como facto, como realidade fáctica, apenas se dão conta de uma crença nela.
Outro âmbito é o dos projectos revolucionários transformadores
da realidade. Os sujeitos empenhados nesses projectos lêem a sua própria
história colectiva como um sujeito que continuamente se recria. Dentro do
processo dessa recriação, aqueles que os precederam e morreram não estão
mortos, mas permanecem vivos na sua memória. Mas não se trata de um mero
lembrar factos, coisas, acontecimentos, personagens que já estão fora de jogo,
mas um rememorar interno, uma reapropriação do seu próprio passado colectivo,
tal como cada pessoa faz do seu próprio passado pessoal. Neste âmbito dá-se uma
compreensão sumamente interessante e criativa da ressurreição. Significa isso
que aqueles que morreram na realidade não morreram, mas vivem. Vivem nos projectos,
nos empreendimentos e nas lutas do presente. Desta maneira, quer Evita, quer
Che, quer os 30 mil desaparecidos vivem: ressuscitaram, venceram a morte.
Mas existe um outro âmbito, um outro nível: o da fé.
Este nível não nega o anterior, mas incorpora-o e eleva-o a uma dimensão nova.
É o que precisamente nos propõem os textos bíblicos.
Chegados aqui é necessário distinguir três
momentos distintos: o da fé
propriamente dita, o da esperança
e o da caridade ou solidariedade.
O momento da fé significa que a vida do
ressuscitado não apenas está presente na memória, como o segundo âmbito refere,
mas que acontece uma superação do espaço-tempo. O sujeito realmente existe para
lá do espaço e do tempo no qual nos encontramos todos os que vivemos esta vida mortal.
Este momento resiste a qualquer tipo de «prova», entendida esta como a exigência
colocada pelo primeiro âmbito. Ou seja, onde há «prova»
não há fé. A fé está sempre para lá das «provas».[3]
No lugar das provas, a fé propõe razões para
acreditar: símbolos, narrações,
manifestações. Aqui não há lugar para dogma. É frequente que
as pessoas confundam fé com dogma. Dogma é um decreto, uma intimação, uma ordem
imposta pela autoridade da instituição sobre os seus membros. A fé é uma adesão
crítica, uma adesão consciente, uma adesão voluntária e, sobretudo, uma adesão prático-crítica,
pratico-consciente. A firmeza da adesão provém de razões
subjectivas. Não tem nada de supersticioso ou alienante. Não só não arranca o
sujeito da sua pertença à sociedade, como contribui a enraizá-lo ainda mais
nela, já que só
à insurreição é prometida a ressurreição.
O momento da esperança significa que a
ressurreição não é uma constatação que se faz a partir de argumentos
científicos, filosóficos ou de autoridade. A esperança é subjectiva,
mas não subjectivista. É subjectiva na medida em que, diante das
mesmas circunstâncias, uma pessoa pode estar cheia de esperança em mudá-las ou
que elas venham a mudar, e outra estar abatida pela desesperança, pelo
desânimo. Onde uma pessoa encontra razões válidas para esperar, outro vê
precisamente o contrário. A espera não é passiva, mas activa, porque só à
insurreição é prometida a ressurreição. A esperança
pertence ao âmbito da utopia, a um mais além que sempre nos convoca, que sempre
questiona, que sempre "exige mais".
O momento da caridade ou da solidariedade
significa que não há ressurreição para o individualista, para o egoísta. A
insurreição, à qual está prometida a ressurreição, é a insurreição popular, é a
insurreição de um povo que se levanta colectivamente, comunitariamente. É isso
que diz o célebre capítulo 25 de Mateus.
Jesus afirma que no Juízo Final – tema apocalíptico por
excelência – Deus dirá a quem promete a ressurreição:
«O Rei dirá, então, aos da sua direita: ‘Vinde, benditos
de meu Pai! Recebei em herança o Reino que vos está preparado desde a criação
do mundo. Porque tive fome e destes-me de comer, tive sede
e destes-me de beber, era peregrino e recolhestes-me,
estava nu e destes-me que vestir, adoeci e visitastes-me, estive na prisão e
fostes ver-me.’» (Mt 25, 34-36)
Ante a pergunta destes bem-aventurados inconscientes de
terem feito tal coisa – e seguindo as palavras de Jesus – Deus continua: «‘Em verdade vos digo: Sempre que fizestes
isto a um destes meus irmãos mais pequeninos, a mim mesmo o fizestes.’» (Mt
25, 40). Só àqueles que dão de comer ao esfomeado, de beber ao sedento, de vestir
o nu, ou seja, só
aos que são solidários é prometida a ressurreição.
Isto pode dizer-se da seguinte maneira: só no âmbito da fé é que se compreende que
a ressurreição seja conferida à esperança aquando da prática da caridade.
3.5
Significado último
O significado último da ressurreição é o triunfo sobre a
morte. Trata-se da vida no sentido pleno, tal como verificamos aquando da evolução
da apresentação das «aparições», que foram caminhando desde o espiritual até ao
material, ao concreto, ao carnal. Não se trata apenas de vida humana, mas da
vida toda, do cosmos.
É o que Paulo e o Apocalipse de João, com toda a clareza,
exprimem. Diz Paulo:
«Pois até a criação se
encontra em expectativa ansiosa, aguardando a revelação dos filhos de Deus. De facto, a criação foi sujeita à destruição - não
voluntariamente, mas por disposição daquele que a sujeitou - na esperança de que também ela será libertada da escravidão da corrupção,
para alcançar a liberdade na glória dos filhos de Deus. Bem
sabemos como toda a criação geme e sofre as dores de parto até ao presente.» (Rom 8, 19-22)
A ressurreição é cósmica. É a libertação plena de uma
natureza cada vez mais oprimida, «violentamente» submetida, no dizer de Paulo.
Muitos séculos após, os pensadores da Escola de Frankfurt vão desenvolver, ampla e
profundamente, este submetimento da natureza realizado violentamente pelo ser
humano, o qual provoca, por sua vez, uma subjugação do próprio sujeito
opressor.
O
tema central do Apocalipse é também esse: «Vi,
então, um novo céu e uma nova terra, pois o primeiro céu e a primeira terra
tinham desaparecido e o mar já não existia.» (Ap 21, 1) A terra, a natureza
e a sociedade com todas as suas injustiças, desigualdades, opressões, morreram
e ressuscitaram como nova terra, nova sociedade, Reino de Deus, cidade santa na
qual «não haverá mais morte, nem luto, nem pranto, nem dor.» (Ao 21, 4). O mar,
mãe de tudo o que é bom, mas também de tudo o que é mau e monstruoso, já não
existe.
O triunfo pleno da Vida!
Isso significa que quando Jesus propunha o Reino de Deus e enfrentava as
potências opressoras, tinha razão. A princípio, os membros do seu movimento
entraram numa dúvida atroz: se Jesus tinha sido derrotado e condenado da
maneira mais infame que se possa imaginar, não era o sinal mais que evidente de
que Deus lhe havia virado as costas? Não era sinal de que os seus inimigos eram
quem tinha razão e não ele, Jesus?
Deus
tinha, de facto, dado razão aos seus inimigos. Essa dúvida atroz fora a mesma
que afligira os desterrados na Babilónia, quando, nas festividades do Ano Novo,
eles viam desfilar os cálices e outros utensílios sagrados do Templo de
Jerusalém atrás do deus Marduk e de outros deuses
igualmente submetidos[4]. Diante dessa dúvida atroz, e para vencê-la, os
sacerdotes do povo de Israel exilado decidem escrever a "teologia da
criação". Servindo-se apenas da sua Palavra, o Deus-Yahvé criou todo o
Universo, diante dum Marduk obrigado de agora em diante a lidar com deuses
opositores.
A ressurreição de Jesus é a resposta de
Deus. Ela significa o
triunfo definitivo da Vida e, com isso, deixa claro que a razão está do lado de
Jesus e não dos seus inimigos. Por seu turno, esse triunfo da Vida celebra-se já nas
comunidades onde todos os bens se repartam e partilham, onde se recriam os
gérmens de uma nova sociedade fraterna.
Rubén Dri, «El
movimiento anti-imperial de Jesús – Jesús en los conflictos de su tiempo»,
Editorial BIBLOS, Maio 2005. Professor e Investigador de
Ciências Sociais da Universidade de Buenos Aires.
[1]
Sobre esta temática, existem duas obras de Luis Maldonado que merecem ser reflectidas:
«Religiosidad popular – nostalgia del magico»
(ISBN 84-7057-193-1) e «Genesis del Catolicismo
Popular» (ISBN 84-7057-248-2), da Ed. Cristiandad. [NdT]
[2]
Elaborei uma crítica do conceito de racionalidade reduzido à racionalidade
científico-matemática próprio da Ilustração, e desenvolvi um conceito mais
abrangente em Rúben Dri, «Racionalidad,
sujeto y poder». Cf. também artigo de R.D., «Religión y racionalidad en la Fenomenología del espíritu», in Rubén Dri (editor), «Los
caminos de la racionalidad», Editorial BIBLOS, Argentina 2001
[NdT].
[3]
Desde há inúmeras décadas que a sociedade mediática burocratizada uniformiza o
pensamento, excluindo (para submeter) o diferente. O mesmo fenómeno existiu
desde sempre na Humanidade, mas na Era Pós-Moderna atingiu um nível esmagador,
absoluto, imperial e, ao mesmo tempo, subtil, ocupando o lugar deixado vago
pela religião. Para isso contribuíram as tecnologias de comunicação virtual
electrónicas, que se procura que sejam acessíveis até aos mais pobres. A
estratégia é muito evidente: em vez de submeter os povos pela violência física,
"apanham-nos" pelos sentimentos mais
primários, como por exemplo, a insaciabilidade voyeurista do olhar,
a atracção irresistível pelos escândalos, a sêde de bodes expiatórios (sede de
"vingança" marrando contra pseudo-sacos-de-areia, como desforra pelo
excesso de horas de trabalho stressante a troco de baixos salários) e a
"fome" (de Sentido para a sua existência) por secretismos. A SOCIEDADE
PÓS-MODERNA fabrica escândalos, segredos e teorias da
conspiração e, depois, VIVE DE ESCÂNDALOS
& ALIMENTA-SE DE SOCIEDADES SECRETAS, enriquecendo aqueles que
produzem revistas cor-de-rosa, canais de TV e jornais diários especializados em
escândalos, produções cinematográficas ou aqueles que escrevem obras como Dan
Brown e José Rodrigues dos Santos. Quanto a este tema, o da Ressurreição
de Jesus, há quem esteja a ganhar muito dinheiro à custa desta
era digital virtual computacional, espalhando simplificações que, porque
escandalizam ou criam suspense e
secretismo (p. ex., «Maria Madalena foi
para a cama com Jesus?»), aprisionam os apetites na casa da Razão e desviam
do objectivo sério que importa aquilo – é o caso deste tema − que exige três
coisas: estudo académico, partilha de vida em "grupo comprometido com os
pobres" [«Grupos de Jesus»] e lentidão,
pausas, silêncio [escuta da Palavra em Comunidade de Fé]. É o
caso do seguinte sítio, do qual deixo duas ligações web para confronto com este
texto de Rúben Dri. Fazem mais mal que bem aos crentes que sinceramente buscam
Jesus. "Sites" como este só atrasam esse encontro com Jesus. [NdT]
[4] Cf. Robert Michaud, ‘Los patriarcas’,
Verbo Divino, Estella (Navarra) 52000, pp. 122. (R. Michaud, «Les
Patriarches – histoire et théologie», Cerf-Lire la Bible/42, p. 135) [NdT]:
«A estátua de
Marduk era transportada pela rua principal (manifestação de honra a favor de
Marduk), a via sacra. Mas, ao mesmo tempo e como maneira de deixar
bem vincada a vergonha e a humilhação de Tiamat e dos deuses dos povos
vencidos, as estátuas destes seguiam atrás a encerrar o cortejo. Cristoph
Goldman assinala, e com razão, que nesse desfile ficava sempre um lugar vago por
ocupar: faltava a estátua de Yahvé, o Deus dos exilados de Jerusalém. Em 587,
durante a destruição de Jerusalém e do incêndio do templo, os soldados
babilónios não encontraram nenhuma representação de Yahvé, e então levaram uma
grande quantidade de utensílios e de objectos destinados ao culto (2Rs 25, 13ss).
Não é exagerado pensar que, durante a
procissão em honra de Marduk, alguns sacerdotes babilónios levassem aos ombros
ostensivamente os vasos sagrados trazidos de Jerusalém. Que humilhação para os
exilados israelitas ali espalhados por entre a multidão de curiosos vindos de
todas as partes para admirar o espectáculo daquela procissão! Não era difícil
concluir que Yahvé nada era quando comparado com Marduk.»
Cf.
O SAGRADO NA BABILÓNIA ANTIGA: