teologia para leigos

19 de janeiro de 2017

DEVOLVER JESUS AO POVO 5/5





(…) 3.4 Âmbito da compreensão

Tal como já vimos, a ressurreição não é um facto histórico, ou seja, algo que se possa constatar usando uma metodologia. As «aparições» não são provas, no sentido científico ou histórico, mas maneiras de mostrar como é o corpo ressuscitado. As aparições pertencem ao género literário «epifania», manifestação da divindade[1], que apenas tem valor para quem a experimenta e para todos aqueles que a ela aderem.

Isso não significa de nenhuma maneira que a ressurreição pertence intrinsecamente ao âmbito do irracional. Quando alguém diz isso é sinal que sustenta um conceito estreito e unilateral de racionalidade herdado da Ilustração.[2] Para entender o significado da ressurreição é preciso, antes de mais, delimitar o âmbito da sua compreensão. Mais correctamente deve dizer-se «os âmbitos da sua compreensão», já que ela pode ser encarada a partir de vários ângulos.

Pode ser encarada a partir do âmbito das ciências sociais e históricas. Nesse caso, o que pode ser observado são os efeitos que a crença na ressurreição produz em determinados grupos humanos, e, para aquilo que nos interessa, os efeitos que produz no movimento de Jesus: os discípulos experimentam uma transformação radical, adquirem um dinamismo criativo inacreditável. Porém, as ciências sociais não descobrem nenhuma ressurreição como facto, como realidade fáctica, apenas se dão conta de uma crença nela.

Outro âmbito é o dos projectos revolucionários transformadores da realidade. Os sujeitos empenhados nesses projectos lêem a sua própria história colectiva como um sujeito que continuamente se recria. Dentro do processo dessa recriação, aqueles que os precederam e morreram não estão mortos, mas permanecem vivos na sua memória. Mas não se trata de um mero lembrar factos, coisas, acontecimentos, personagens que já estão fora de jogo, mas um rememorar interno, uma reapropriação do seu próprio passado colectivo, tal como cada pessoa faz do seu próprio passado pessoal. Neste âmbito dá-se uma compreensão sumamente interessante e criativa da ressurreição. Significa isso que aqueles que morreram na realidade não morreram, mas vivem. Vivem nos projectos, nos empreendimentos e nas lutas do presente. Desta maneira, quer Evita, quer Che, quer os 30 mil desaparecidos vivem: ressuscitaram, venceram a morte.

Mas existe um outro âmbito, um outro nível: o da fé. Este nível não nega o anterior, mas incorpora-o e eleva-o a uma dimensão nova. É o que precisamente nos propõem os textos bíblicos.

Chegados aqui é necessário distinguir três momentos distintos: o da propriamente dita, o da esperança e o da caridade ou solidariedade.

O momento da fé significa que a vida do ressuscitado não apenas está presente na memória, como o segundo âmbito refere, mas que acontece uma superação do espaço-tempo. O sujeito realmente existe para lá do espaço e do tempo no qual nos encontramos todos os que vivemos esta vida mortal. Este momento resiste a qualquer tipo de «prova», entendida esta como a exigência colocada pelo primeiro âmbito. Ou seja, onde há «prova» não há fé. A fé está sempre para lá das «provas».[3] No lugar das provas, a fé propõe razões para acreditar: símbolos, narrações, manifestações. Aqui não há lugar para dogma. É frequente que as pessoas confundam fé com dogma. Dogma é um decreto, uma intimação, uma ordem imposta pela autoridade da instituição sobre os seus membros. A fé é uma adesão crítica, uma adesão consciente, uma adesão voluntária e, sobretudo, uma adesão prático-crítica, pratico-consciente. A firmeza da adesão provém de razões subjectivas. Não tem nada de supersticioso ou alienante. Não só não arranca o sujeito da sua pertença à sociedade, como contribui a enraizá-lo ainda mais nela, já que só à insurreição é prometida a ressurreição.

O momento da esperança significa que a ressurreição não é uma constatação que se faz a partir de argumentos científicos, filosóficos ou de autoridade. A esperança é subjectiva, mas não subjectivista. É subjectiva na medida em que, diante das mesmas circunstâncias, uma pessoa pode estar cheia de esperança em mudá-las ou que elas venham a mudar, e outra estar abatida pela desesperança, pelo desânimo. Onde uma pessoa encontra razões válidas para esperar, outro vê precisamente o contrário. A espera não é passiva, mas activa, porque só à insurreição é prometida a ressurreição. A esperança pertence ao âmbito da utopia, a um mais além que sempre nos convoca, que sempre questiona, que sempre "exige mais".

O momento da caridade ou da solidariedade significa que não há ressurreição para o individualista, para o egoísta. A insurreição, à qual está prometida a ressurreição, é a insurreição popular, é a insurreição de um povo que se levanta colectivamente, comunitariamente. É isso que diz o célebre capítulo 25 de Mateus.

Jesus afirma que no Juízo Final – tema apocalíptico por excelência – Deus dirá a quem promete a ressurreição:

«O Rei dirá, então, aos da sua direita: ‘Vinde, benditos de meu Pai! Recebei em herança o Reino que vos está preparado desde a criação do mundo. Porque tive fome e destes-me de comer, tive sede e destes-me de beber, era peregrino e recolhestes-me, estava nu e destes-me que vestir, adoeci e visitastes-me, estive na prisão e fostes ver-me.’» (Mt 25, 34-36)

Ante a pergunta destes bem-aventurados inconscientes de terem feito tal coisa – e seguindo as palavras de Jesus – Deus continua: «‘Em verdade vos digo: Sempre que fizestes isto a um destes meus irmãos mais pequeninos, a mim mesmo o fizestes.’» (Mt 25, 40). Só àqueles que dão de comer ao esfomeado, de beber ao sedento, de vestir o nu, ou seja, só aos que são solidários é prometida a ressurreição.

Isto pode dizer-se da seguinte maneira: só no âmbito da fé é que se compreende que a ressurreição seja conferida à esperança aquando da prática da caridade.


3.5 Significado último

O significado último da ressurreição é o triunfo sobre a morte. Trata-se da vida no sentido pleno, tal como verificamos aquando da evolução da apresentação das «aparições», que foram caminhando desde o espiritual até ao material, ao concreto, ao carnal. Não se trata apenas de vida humana, mas da vida toda, do cosmos.

É o que Paulo e o Apocalipse de João, com toda a clareza, exprimem. Diz Paulo:

«Pois até a criação se encontra em expectativa ansiosa, aguardando a revelação dos filhos de Deus. De facto, a criação foi sujeita à destruição - não voluntariamente, mas por disposição daquele que a sujeitou - na esperança de que também ela será libertada da escravidão da corrupção, para alcançar a liberdade na glória dos filhos de Deus. Bem sabemos como toda a criação geme e sofre as dores de parto até ao presente.» (Rom 8, 19-22)

A ressurreição é cósmica. É a libertação plena de uma natureza cada vez mais oprimida, «violentamente» submetida, no dizer de Paulo. Muitos séculos após, os pensadores da Escola de Frankfurt vão desenvolver, ampla e profundamente, este submetimento da natureza realizado violentamente pelo ser humano, o qual provoca, por sua vez, uma subjugação do próprio sujeito opressor.

O tema central do Apocalipse é também esse: «Vi, então, um novo céu e uma nova terra, pois o primeiro céu e a primeira terra tinham desaparecido e o mar já não existia.» (Ap 21, 1) A terra, a natureza e a sociedade com todas as suas injustiças, desigualdades, opressões, morreram e ressuscitaram como nova terra, nova sociedade, Reino de Deus, cidade santa na qual «não haverá mais morte, nem luto, nem pranto, nem dor.» (Ao 21, 4). O mar, mãe de tudo o que é bom, mas também de tudo o que é mau e monstruoso, já não existe.

O triunfo pleno da Vida! Isso significa que quando Jesus propunha o Reino de Deus e enfrentava as potências opressoras, tinha razão. A princípio, os membros do seu movimento entraram numa dúvida atroz: se Jesus tinha sido derrotado e condenado da maneira mais infame que se possa imaginar, não era o sinal mais que evidente de que Deus lhe havia virado as costas? Não era sinal de que os seus inimigos eram quem tinha razão e não ele, Jesus?

Deus tinha, de facto, dado razão aos seus inimigos. Essa dúvida atroz fora a mesma que afligira os desterrados na Babilónia, quando, nas festividades do Ano Novo, eles viam desfilar os cálices e outros utensílios sagrados do Templo de Jerusalém atrás do deus Marduk e de outros deuses igualmente submetidos[4]. Diante dessa dúvida atroz, e para vencê-la, os sacerdotes do povo de Israel exilado decidem escrever a "teologia da criação". Servindo-se apenas da sua Palavra, o Deus-Yahvé criou todo o Universo, diante dum Marduk obrigado de agora em diante a lidar com deuses opositores.

A ressurreição de Jesus é a resposta de Deus. Ela significa o triunfo definitivo da Vida e, com isso, deixa claro que a razão está do lado de Jesus e não dos seus inimigos. Por seu turno, esse triunfo da Vida celebra-se já nas comunidades onde todos os bens se repartam e partilham, onde se recriam os gérmens de uma nova sociedade fraterna.






Rubén Dri, «El movimiento anti-imperial de Jesús – Jesús en los conflictos de su tiempo», Editorial BIBLOS, Maio 2005. Professor e Investigador de Ciências Sociais da Universidade de Buenos Aires.







[1] Sobre esta temática, existem duas obras de Luis Maldonado que merecem ser reflectidas: «Religiosidad popular – nostalgia del magico» (ISBN 84-7057-193-1) e «Genesis del Catolicismo Popular» (ISBN 84-7057-248-2), da Ed. Cristiandad. [NdT]

[2] Elaborei uma crítica do conceito de racionalidade reduzido à racionalidade científico-matemática próprio da Ilustração, e desenvolvi um conceito mais abrangente em Rúben Dri, «Racionalidad, sujeto y poder». Cf. também artigo de R.D.,  «Religión y racionalidad en la Fenomenología del espíritu», in Rubén Dri (editor), «Los caminos de la racionalidad», Editorial BIBLOS, Argentina 2001 [NdT].

[3] Desde há inúmeras décadas que a sociedade mediática burocratizada uniformiza o pensamento, excluindo (para submeter) o diferente. O mesmo fenómeno existiu desde sempre na Humanidade, mas na Era Pós-Moderna atingiu um nível esmagador, absoluto, imperial e, ao mesmo tempo, subtil, ocupando o lugar deixado vago pela religião. Para isso contribuíram as tecnologias de comunicação virtual electrónicas, que se procura que sejam acessíveis até aos mais pobres. A estratégia é muito evidente: em vez de submeter os povos pela violência física, "apanham-nos" pelos sentimentos mais primários, como por exemplo, a insaciabilidade voyeurista do olhar, a atracção irresistível pelos escândalos, a sêde de bodes expiatórios (sede de "vingança" marrando contra pseudo-sacos-de-areia, como desforra pelo excesso de horas de trabalho stressante a troco de baixos salários) e a "fome" (de Sentido para a sua existência) por secretismos. A SOCIEDADE PÓS-MODERNA fabrica escândalos, segredos e teorias da conspiração e, depois, VIVE DE ESCÂNDALOS & ALIMENTA-SE DE SOCIEDADES SECRETAS, enriquecendo aqueles que produzem revistas cor-de-rosa, canais de TV e jornais diários especializados em escândalos, produções cinematográficas ou aqueles que escrevem obras como Dan Brown e José Rodrigues dos Santos. Quanto a este tema, o da Ressurreição de Jesus, há quem esteja a ganhar muito dinheiro à custa desta era digital virtual computacional, espalhando simplificações que, porque escandalizam ou criam suspense e secretismo (p. ex., «Maria Madalena foi para a cama com Jesus?»), aprisionam os apetites na casa da Razão e desviam do objectivo sério que importa aquilo – é o caso deste tema − que exige três coisas: estudo académico, partilha de vida em "grupo comprometido com os pobres" [«Grupos de Jesus»] e lentidão, pausas, silêncio [escuta da Palavra em Comunidade de Fé]. É o caso do seguinte sítio, do qual deixo duas ligações web para confronto com este texto de Rúben Dri. Fazem mais mal que bem aos crentes que sinceramente buscam Jesus. "Sites" como este só atrasam esse encontro com Jesus. [NdT]

[4] Cf. Robert Michaud, Los patriarcas, Verbo Divino, Estella (Navarra) 52000, pp. 122. (R. Michaud, «Les Patriarches – histoire et théologie», Cerf-Lire la Bible/42, p. 135) [NdT]:
«A estátua de Marduk era transportada pela rua principal (manifestação de honra a favor de Marduk), a via sacra. Mas, ao mesmo tempo e como maneira de deixar bem vincada a vergonha e a humilhação de Tiamat e dos deuses dos povos vencidos, as estátuas destes seguiam atrás a encerrar o cortejo. Cristoph Goldman assinala, e com razão, que nesse desfile ficava sempre um lugar vago por ocupar: faltava a estátua de Yahvé, o Deus dos exilados de Jerusalém. Em 587, durante a destruição de Jerusalém e do incêndio do templo, os soldados babilónios não encontraram nenhuma representação de Yahvé, e então levaram uma grande quantidade de utensílios e de objectos destinados ao culto (2Rs 25, 13ss). Não é exagerado pensar que, durante  a procissão em honra de Marduk, alguns sacerdotes babilónios levassem aos ombros ostensivamente os vasos sagrados trazidos de Jerusalém. Que humilhação para os exilados israelitas ali espalhados por entre a multidão de curiosos vindos de todas as partes para admirar o espectáculo daquela procissão! Não era difícil concluir que Yahvé nada era quando comparado com Marduk
Cf. O SAGRADO NA BABILÓNIA ANTIGA: