DEUS
REVELA-SE NA HISTÓRIA
Se perguntarmos a
um cristão O que é a Bíblia? a resposta
imediata que obtemos é a esperada: a Bíblia é a palavra de Deus. Acontece que o
manuseamento da Bíblia não é fácil para muitos de nós. Por exemplo, a boa nova
não é apresentada, na Bíblia, de modo sistemático: ela não é um livro teológico;
não se trata de um catecismo, nem nela existem textos conciliares. Estamos, então,
perante um
conjunto de livros que narram a história de um povo, mas não como o faria um Manual de História. São relatos rés-vez os factos,
quase banais; interpretações dos acontecimentos, meditações espirituais sobre
eles; esboços biográficos, versões das pregações dos profetas e de Jesus,
reflexões teológicas. A Bíblia é um conjunto diversificado de livros. A sua
unidade é-lhe conferida pela narração da fé de um povo da qual colhemos a
certeza, a perplexidade, as fraquezas, as deficiências e as alegrias da nossa
própria fé no Deus que fez de nós o seu povo. Por tudo isto, a Bíblia é de
acesso fácil e ao mesmo tempo difícil.
Hoje em dia,
qualquer crente considera importante o contacto estreito com a Bíblia. É o
nosso livro de oração por excelência; a sua leitura e comentário permite-nos
reencontrar permanentemente o sentido profundo da nossa vida e dos nossos compromissos.
Acontece, porém, que abordamos a Bíblia com uma certa insegurança, diria que
não nos sentimos num mundo que nos seja familiar, num terreno que nos pertença.
Somos assaltados pelo temor de falarmos daquilo que não sabemos: uma leitura
séria da Bíblia – esta é a sensação generalizada – exige conhecimentos
históricos, filológicos, teológicos, geográficos que, regra geral, ninguém
possui.
A ser assim, vamos
todos à procura de um especialista em Bíblia – de um exegeta – e acabamos todos
dependentes da sua interpretação e da sua ciência.[1]
À exegese científica – o que só agudiza ainda mais a nossa insegurança no
contacto com a Bíblia – só tem acesso um grupo muito restrito de crentes,
membros (na expressão de alguém) de um clube muito caro e exclusivo. Entre os
requisitos para pertencer a esse clube está a necessidade de assimilar a
cultura ocidental, sobretudo a cultura alemã e anglo-saxónica, à qual a exegese
científica, tal como a conhecemos hoje em dia nas igrejas cristãs, está ligada.
Podemos perguntar que significado tem essa exegese para um africano, para um
asiático ou para um latino-americano, sobretudo nos seus aspectos mais
minuciosos. Com isto, não pretendo desqualificar a exegese científica, mas
evitar a sua hipertrofia, e lembrar que ela está ao serviço da boa nova aos
pobres.
Para uns, o esforço
da leitura da Bíblia deve ter como finalidade adaptar a sua mensagem e a sua
linguagem ao homem de hoje; para outros, procura-se uma reinterpretação da Bíblia a partir do nosso
próprio mundo, uma leitura bíblica a partir da nossa experiência
humana e crente. Esta segunda perspectiva é mais radical, ou seja, vai à raiz
daquilo que é a Bíblia, daquilo que é a Revelação de Deus na História.
Se a
fé bíblica é histórica, a memória é importante. Trata-se da
evocação de factos históricos passados a fim de trazer à memória a acção
libertadora de Yahvé no presente que habitamos. Um belo texto do Deuteronómio
afirma com firmeza: «Não foi com os nossos pais que o Senhor concluiu esta
aliança, mas connosco que estamos hoje aqui, todos vivos.» (Dt 5, 3) A aliança
foi feita para o hoje; a aliança não é um facto passado, acontecimento ꞋcongeladoꞋ
no passado.
Mas,
para além de memória,
a aliança é liberdade, abertura ao futuro. A evocação da gesta
libertadora de Yahvé não é nostalgia de tempos idos. Todos os grandes amores
lembram o seu momento inicial: os momentos fortes são lembrados como fonte de
alegria, os momentos difíceis como momentos de reafirmação de uma esperança. Em
ambos os casos, o olhar aponta para diante e o futuro torna-se missão. A
memória surge, então, como condição de uma liberdade criadora. Aquilo que
dissemos do Exílio é um vigoroso exemplo de memória (da saída do Egipto) e de abertura
(a novos caminhos de liberdade).
A fé
de Israel move-se nessa dialéctica de memória e liberdade. É isso que
se celebra no culto. Já o dissemos: o culto é o contexto dos «credos
históricos». Assim, essa evocação torna presente o passado em função do futuro.
Israel celebra não para aplacar iras divinas, mas para dar graças pela
libertação e pela Aliança; e para reconhecer / identificar novas intervenções
de Deus na sua história. Segundo
os profetas, a
fidelidade de Israel – fazer justiça ao pobre – é a condição de
um culto autêntico.
Gustavo Gutiérrez op — Notas da palestra proferida na
abertura de um Curso de Verão organizado pelo Departamento de Teologia da
Universidade Católica, em Lima, Peru (1975).
[1]
A «Teologia da Enxada» (org. José Comblin),
o CEBI (Carlos Mesters) e a «Divina Humanidad» (frei Marcos, op)
permitem-nos, quanto a esta questão, descobrir veios de água fresca igualmente
inspiradores. [NdT]