teologia para leigos

23 de junho de 2015

UMA MOEDA COMUM SEM A ALEMANHA [F. LORDON]

 

«Se tivesse de resumir o século XX, diria que ele despertou as maiores esperanças que alguma vez a humanidade concebeu e, ao mesmo tempo, destruiu todas as ilusões e ideais

Yehudi Menuhin (músico, Grã Bretanha).


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O derrubamento,
- um futuro para a Humanidade

«Sabemos que, para lá da opaca nuvem da nossa ignorância e da incerteza dos resultados, as forças históricas que configuraram o século [XX] continuam a actuar. Vivemos num mundo cativo, desenraizado e transformado pelo colossal processo económico e técnico-científico do desenvolvimento do capitalismo que dominou os últimos dois a três séculos. Sabemos — ou pelo menos é razoável supor — que este processo não se prolongará ad infinitum.

«O futuro, não só não poderá ser um prolongamento do passado, como há sintomas externos e internos que mostram que atingimos um ponto de crise histórica.

«As forças geradas pela economia técnico-científica são suficientemente poderosas para destruir o meio ambiente, ou seja, o fundamento da vida humana. As próprias estruturas das sociedades humanas, incluindo alguns dos fundamentos sociais da economia capitalista, estão à mercê de serem destruídas pela erosão da herança que o passado nos legou. O nosso mundo corre o risco de explodir e de implodir, e urge ser mudado.

«Não sabemos para onde vamos (…). No entanto, uma coisa é clara: se existe um futuro para a humanidade, ele não virá do prolongamento do passado ou do presente. Se procurarmos erguer o terceiro milénio sobre essas bases, fracassaremos. O preço desse fracasso, ou seja, a alternativa a uma sociedade virada do avesso, é a obscuridade.»

Eric Hobsbawm, «Historia del Siglo XX – 1914-1991», Crítica, Barcelona, Marzo de 2015, p. 576.


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«Nos países democráticos não é nítido o carácter violento da economia; nos países autoritários ocorre o mesmo com o carácter económico da violência».

Bertolt Brecht, [finais dos anos 40], in Eduardo Galeano, «Las venas abiertas de América Latina», Siglo XXI, p. 349.


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«"Pensar é transcender", disse E. Bloch. Transcender tensões, desconfianças, auto-afirmações exageradas. Pensar é caminhar em direcção a uma humanidade nova, rumo a esse homo absconditus, que se entrega a nós em comunhão e solidariedade para com os seus irmãos rumo a uma nova forma de vida, rumo a projectos generosos de convivência, algo semelhantes à convivência dos primeiros cristãos: "A multidão dos que haviam abraçado a fé tinha um só coração e uma só alma. Ninguém chamava seu ao que lhe pertencia, mas entre eles tudo era comum." (Act 4,32) E um versículo mais adiante, diz: "Entre eles não havia ninguém necessitado, pois todos os que possuíam terras ou casas vendiam-nas, traziam o produto da venda … e distribuía-se, então, a cada um conforme a necessidade que tivesse." (Act 4,34s) […]

«Esta igualdade e solidariedade só aconteceu na história do cristianismo e da humanidade em alturas esporádicas, quase anedóticas. Apetece, então, perguntar, que sentido faz evocar tais visões. Não será que estamos a elaborar poesia teológica? Não seria preferível – com Camus – dizer, antes, "pensar com claridade e abandonar a esperança"? Sinceramente, caros amigos, entraria em pânico se me visse diante de um mundo sem teologia e sem poesia. Sentiria medo diante de uma sociedade que não quisesse saber nada  daquela extensio animi ad magna (abertura de espírito a horizontes mais vastos), de que falava a Idade Média.

«Um mundo que não aspire a metas mais elevadas que os resultados do presente, que não sinta «ganas pelo totalmente outro» (Horkheimer), converter-se-ia num mundo enfadonho e estéril. […]

«Eis porque Th. Adorno e Horkheimer escreveram na Dialéctica da Ilustração: "A política que não contenha teologia, ainda que inconscientemente, ao cabo e ao resto, não passará de um negócio, por mais hábil que  seja".

«Falemos, então, do "impossível-necessário".»

Manuel Fraijó, «Jesus y los Marginados», Cristiandad, p. 108.




Cimeira "D"… de mais Austeridade para a Grécia.
Há rostos para todos os gostos… [22 Junho 2015]

PARA UMA MOEDA COMUM SEM A ALEMANHA
(OU COM, MAS NÃO DITADA POR FRANKFURT)

Frédéric Lordon©



A obsessão germanómana

É preciso olhar as coisas com lucidez: a Alemanha actual nunca entrará num regime de moeda comum, cuja validade não está apenas nas suas propriedades cambiais, mas sobretudo na possibilidade de reinstalar princípios de política económica que estão nos antípodas daqueles em que a Alemanha se barricou, e que tornou substanciais ao euro. Regresse-se às ilusões «conjunturais» ou federais de Bernard Guetta: bem pode esperar-se pelo carrossel da alternância eleitoral alemã, SPD ou CDU, que a posição alemã não se alterará um milímetro — a médio e talvez até a longo prazo — no que se refere às missões fundamentais do banco central ou às orientações da política orçamental; bem pode esperar-se, também, pelas mudanças de um «salto federal», mas só se não souber, ou não se quiser ver, que a Alemanha nunca se prestará a isso sem assegurar que pode transportar da mesma maneira para qualquer nova configuração as (suas) disposições económicas e monetárias dos presentes Tratados.

O convite que é feito para se embarcar nos mais loucos sonhos federalistas tem implícito que coisas como devolver a democraticidade ao banco central, a reflação, o relançamento orçamental contracíclico ou o não pagamento das dívidas públicas ilegítimas continuarão a estar, todas elas, constitucionalmente excluídas do campo da deliberação política. E esta constatação é válida, como é evidente, para todas as formas «intermédias» de federalização, tal como o irrisório «governo económico», esse outro vazio, miragem de soberania restaurada que as elites francesas perseguem como se fosse um fantasma, apesar de ser um «governo» destinado a não ter nada para governar, porque todas as escolhas importantes já terão sido feitas. Finalmente investido do poder, o europeísmo germanómano não deixa de permitir que se queira «mais democracia» mas, a germanomania a isso obriga, desde que não se diga que as questões da política económica e monetária – as mais decisivas para a vida material dos povos – continuarão afastadas deste «suplemento».


Deixar de ter medo do «quente»

A presente construção monetária está viciada no seu âmago. Está viciada pela neutralização democrática que, por causa do ultimato alemão, erigiu em seu princípio. Que não se possa perguntar:

.se o Banco Central deve ser independente ou não 
.se os orçamentos devem ser deficitários ou não 
.se as dívidas contraídas na sequência dos desastres da finança privada devem ser pagas ou não

é uma monstruosidade política que só o europeísmo elitista pode não compreender, mas que está a agitar profundamente todos os corpos sociais europeus. Menos a Alemanha… Só a Alemanha não vê estas proibições como insuportáveis negações da democracia porque, por agora e ainda por algum tempo, o corpo social alemão adere às coisas santificadas como a valores superiores, metapolíticos, isto é, para lá da política e subtraídos à política.

É preciso perseverança europeísta na cegueira para não ver este elemento do «problema europeu» enquanto algo que torna impossível fazer uma Europa monetária com a Alemanha e sem necessariamente violentar os outros corpos sociais, tanto em termos económicos como políticos. E também para não ver o ridículo, ou melhor a indigência, dos argumentos de germanofobia, quando se pode muito bem reconhecer à Alemanha a plena realidade dos seus traumas colectivos, a inteira legitimidade da narrativa que ela conta a si própria (certa ou errada) e, apesar disso, não querer entrar na sua mitologia monetária nem submeter-se às suas obsessões. A ordem monetária alemã imposta à Europa convém à Alemanha — que surpresa! Mas não convém aos outros Estados-membros. Seja como for, não a todos. O europeísmo, incapaz de fazer qualquer análise positiva das condições objectivas de compatibilidade, isto é, de compreender que não se constrói uma entidade política viável com componentes cujas formas de vida está em desacordo para lá de um certo ponto, tornou-se o mais evidente inimigo da Europa.

Na situação de destruição económica e social em que nos encontramos, e sobretudo no estado de paralisação generalizada dos governos de direita — descomplexada ou complexada — já não existe de forma verosímil qualquer solução disponível para uma reconstrução europeia a frio.  Não haverá, portanto, outra alternativa à estagnação mortal que não seja o quente de uma crise terminal. Podemos inventar todas as histórias do mundo: que se vai reformar o euro a 17, que eventualmente haverá uma prova de força para vergar a Alemanha e levá-la ao arrependimento… A Alemanha não se vergará. Não vai sacrificar os seus princípios fundamentais em benefício da Europa e só insistirá na Europa na medida em que esta se mostrar compatível com o que considera serem os seus interesses vitais — sem isso, não hesitará em pôr-se a andar. Numa ironia devastadora, nessa altura vê-la-emos usar o argumento de que os europeístas (franceses) de hoje nem sequer querem ouvir falar, mas que nessa altura não terão outro remédio senão suportar: sair da moeda única europeia não significa de modo algum encerrar-se por trás de muros altos nem hipoteca minimamente as ligações económicas — e extra-económicas — estabelecidas por outras vias com os outros Estados-membros. Mesmo o argumento de que uma fuga de regresso ao marco lhe traria uma violenta revalorização, e a evaporação de uma boa parte dos seus excedentes comerciais, não a reteria. É que, entre uma estatística momentânea e os seus princípios, a Alemanha não hesitará.

De nada valerá também inventar as histórias simétricas: a 16 ou a menos, não se prepara de repente uma «Europa monetária alternativa» com facilidade, sob o olhar complacente dos mercados financeiros. E também não se faz surgir uma nova arquitectura institucional robusta num fim-de-semana de encerramento dos mercados. Terá de se começar, portanto, pelo regresso, sem dúvida ligeiramente agitado, às moedas nacionais, etapa dificilmente evitável antes de eventualmente se avançar de novo. É altura de saber o que se quer: no sistema actual não há rigorosamente qualquer força de mudança endógena, mas apenas a possível reapresentação, sob formas um pouco diferentes (euro-obrigações, governo económico, «federalismo» à Hollande-Merkel ou outro), dos mesmos princípios monetários, invariantes, constitucionalizados e catastróficos: alemães.

Nestas condições, ou se abandona qualquer esperança de transformação e se aceita a submissão à Europa «à alemã», ou se espera que a própria crise se encarregue de fazer tábua rasa da situação. Seria um grande erro subestimar as possibilidades de isto acontecer. Esta tábua rasa pode vir do lado político se um dos países, por exemplo a Itália, se encontrar num estado de bloqueio institucional e se vir incapaz de avançar mais na purga austeritária, podendo gerar rivais e grande pânico nos mercados financeiros. E pode vir também do lado do sistema bancário, sempre podre por dentro, e mesmo cada vez mais, à medida que cresce o fluxo de créditos duvidosos canalizados pela recessão.


Uma proposta à Europa

Ou, então, toma-se a dianteira e abre-se o jogo, endereçando uma proposta a todos os povos da Europa:

«Queremos fazer uma moeda comum europeia que restitua à política económica todas as suas possibilidades? Antes de podermos fazer, vai ser preciso desfazer. A construção institucional de uma moeda comum não será feita nas costas dos povos; só pode ser legitimada por aprovação referendária, o que significa que não acontecerá num fim-de-semana obscuro, mas às claras e demorando o tempo que for necessário. Em consequência, devemos sair do euro e regressar às moedas nacionais, como base de um novo avanço europeu. É de imaginar que, de imediato, nem todos sigam esta proposta. Mas podemos muito bem viver com a moeda nacional, e provavelmente melhor do que os desgraçados que continuarem a padecer sob a tutela euro-alemã. Aliás, pode até muito bem acontecer que, a partir do momento em que os mercados financeiros ouvirem falar deste projecto, cuja intenção é precisamente acabar com o seu reinado sobre a política económica, eles coloquem a zona euro a ferro e fogo e provoquem, eles próprios, a explosão de regresso forçado às moedas nacionais. De qualquer forma, estamos preparados para avançar, porque só se faz caminho caminhando e porque estamos convencidos de que o espectáculo desse movimento pode muito bem dar ideias aos que o observarem. Não sabemos quantos seremos, mas partindo da ideia de que podemos muito bem ser só um, afirmamos que a partir de dois já será alguma coisa… Afirmamos também que mais vale sermos quatro ou cinco reunidos por princípios autenticamente comuns e progressistas do que dezassete dilacerados por princípios regressivos. Irá a Alemanha, por seu lado, partir com o seu neo-deutschemark e com alguns aliados parecidos com ela? É muito possível e não é drama nenhum. Alguém imagina por um só momento que, mesmo não partilhando a moeda de alguns países europeus, a Alemanha deixe de ter com eles trocas comerciais? De investir nesses países? De fazer circular os seus estudantes, investigadores, artistas, turistas e de receber os nossos? Podemos mesmo imaginar que, se um dia ela acabar por liquidar os seus mitos e terrores nocturnos, e se a sua população acabar por se cansar da deflação salarial e das desigualdades, — realidades de que em breve terá dolorosa consciência — e desejar juntar-se a nós, será um prazer recebê-la. Seja como for, fazemos esta proposta a todos, com validade agora e mais tarde. Que a oiça e se junte a nós quem quiser.»

Frédéric Lordon
Economista, autor de «La crise de trop. Reconstruction d’un monde failli», Fayard, Paris, 2009.

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