Uma Igreja desafiada
por
leigos que deixaram de
ser leigos
I.
Sociedade
urbana, ambiente onde as ovelhas rejeitam ser ovelhas
A sociedade urbana
tornou-se o novo ambiente de vida da maior parte do nosso povo. Nesse ambiente
movimenta-se mais de 70% da população e, quando olhamos para o mundo inteiro, nele
movem-se vários milhares de milhões de pessoas.
Todas essas pessoas
vivem marcadas pelo ritmo desse ambiente, pessoas acossadas, destruídas,
formatadas. Elas amam-no, detestam-no ou nem chegam a entendê-lo e, por causa
disso, sentem-se activas e livres ou oprimidas e isoladas, consoante o enfoque
ou o ponto de vista.
(…)
É com essa
realidade que somos confrontados.
É dentro dessa
realidade que se deveria realizar a nova evangelização.
É dentro dessa
realidade que somos chamados a falar de Deus. Falar de um Deus que muitos já
não conhecem, de que ouviram falar, mas que se encontra tão longe da sua vida quotidiana,
tão longe que muitos já o esqueceram.
É dentro de tal
realidade que se deveria projectar a Pastoral Urbana do futuro. Mas os
destinatários dessa pastoral há quanto tempo já esqueceram o que é um pastor. E,
de ovelhas, só ouviram falar em contos de fadas.
Um pastor vigia o
rebanho das suas ovelhas. Mas a grande maioria dos homens urbanos de hoje e do
futuro não
querem mais ser vigiados como um rebanho. E isso pelo simples facto
de eles já não quererem ser mais ovelhas.
O homem urbano de
hoje, e mais ainda o do futuro, já não aceita mais a ideia de fazer parte de um rebanho de gado que corre na direcção indicada
por um pastor.
Eles rejeitam tal
imagem e com toda a razão!
(…)
II.
Porém,
a nova autonomia também produz mais insegurança
A época
pós-industrial apresenta-se, assim, impregnada, por um lado, daquele novo
espírito de autonomia e de auto-confiança, mas, por outro, de inseguranças e
dúvidas profundas. Essa época está também marcada por um desesperado vazio de
sentido e por tentativas frenéticas de substituir o vazio espiritual por
substitutos artificiais.
Numa época assim,
as nossas Igrejas deveriam estar cheias, mas elas não estão. Ou melhor, estão,
mas quando fazemos a comparação com o total da população, constatamos que,
desse total, são apenas 7% a 10% deles que frequentam as nossas missas. E os
outros, onde estão? Além disso, quem são esses 10% que ainda participam nas
celebrações? Será que eles representam o novo tipo de homem autónomo,
do qual falávamos nas páginas precedentes? Ou será que eles na sua maioria são
os outros, aqueles que não querem ser autónomos[1],
aqueles que têm medo da autonomia e que, por causa disso, querem ficar ovelhas?
Perguntas e mais
perguntas. Como responder? Como reagir? Como evangelizar estes leigos, que não
correspondem já à imagem uniforme e transparente do leigo dos tempos antigos?
E, para além de tudo, como é que, com estes novos leigos, podemos realizar
aquilo que os nossos bispos em Santo Domingo chamaram «Protagonismo
do Leigo»? Onde é que este leigo protagonista está nas nossas
Igrejas? Será que ele quer ser protagonista? E protagonista de quê?
E será que aqueles
que até agora tinham todo o poder e todo o protagonismo querem verdadeiramente
o protagonismo do leigo? Quando querem o leigo protagonista, que tipo de leigo é
que eles preferem? Perguntas atrás de perguntas. Como responder?
(…)
É a partir deste
facto que surgem indagações muito sérias
para nós:
− será que, de
facto, queremos que os nossos fiéis ajam assim: críticos, inovadores,
questionadores?
− será que, na
maior parte das vezes, não preferiríamos o homem dócil e humilde da época
rural, sobretudo, face às nossas próprias estruturas eclesiais?
− será que queremos
fiéis anónimos e críticos que exijam verdadeira participação e
co-responsabilidade, participação que vá para além do direito de poder
organizar uma quermesse?
− será que queremos
mulheres que assumam o seu direito como pessoa, também dentro das estruturas
eclesiais?
− será que queremos pessoas que, a partir do seu status
de baptizados e baseados numa atitude de autonomia e de responsabilidade,
questionem até ordens dadas emanadas do poder eclesiástico?
Pessoas autónomas
fazem isso e muito mais!
Tais pessoas exigem
todos esses direitos e muito mais!
− será que essas
pessoas são vistas sempre com bons olhos dentro da Igreja?
− será que a nossa
pastoral quer, de facto, formar tais pessoas autónomas, responsáveis, críticas?
Em muitos casos,
sim, mas também existem outras tendências, que, por causa de um medo
inconsciente, preferem pessoas dóceis e submissas como outrora. Nestes casos,
mantém-se uma pastoral que, no fundo, não promove a autonomia das pessoas, ou que promove
essa autonomia só em certos sectores restritos, enquanto em outros
sectores tenta manter um estado de submissão. Com tal atitude não se consegue
evangelizar o homem do século XXI.
Percebemos, assim, como
a reflexão sobre as verdadeiramente novas características do homem urbano nos
confronta com perguntas muito sérias.
A resposta que a elas for dada decidirá do sucesso ou do fracasso do nosso
trabalho evangelizador. E isto é assim, porque na sua grande maioria o homem
urbano instintivamente rejeita uma religião que o quer manter numa situação de
dependência. Consequentemente, o homem urbano rejeita atitudes, por parte da Igreja, que
ele considera de tutela.
Quando um homem
urbano pós-moderno suspeita de tentativas que o querem tutelar, ele reage. E,
na maioria dos casos, a sua reacção é esta: vai embora, busca outros espaços
e outros campos de acção.
Eis uma das razões
mais profundas da problemática da assim chamada «emigração silenciosa», fenómeno
tão acentuado dentro do contexto eclesial urbano: as pessoas vão embora, porque
têm a impressão de ser tuteladas. Tal impressão, falsa ou verdadeira, pode
formar-se a qualquer nível da vida religiosa, em paróquias, em comunidades, na
Igreja.
Assim perdemos milhares e milhares de pessoas. A geração jovem
vai-se embora e, nas nossas celebrações, encontramos cada vez mais apenas
pessoas com mais de 50 anos de idade. (…)
Esta é a situação. Este é o desafio.
Um desafio que toca, em primeiro lugar, aqueles níveis que tradicionalmente
ofereceram respostas ao tal vazio: deles faz parte a Igreja estruturada, fruto
de uma história de séculos. Aquilo que nestes séculos foi construído e propagandeado
como o
grande ideal do futuro: uma instituição religiosa uniformizada e unida está hoje
a ser rejeitada pela grande maioria dos adeptos das sociedades
urbanas.
O
que devemos fazer?
Como
reagir diante de uma situação que desafia também as estruturas tradicionais da
Igreja?
Renold Blank
Teólogo,
professor de "Escatologia, Teologia da Revelação e Antropologia" na
Pontifícia Faculdade de Teologia Nossa Senhora da Assunção; no Instituto
Teológico de São Paulo (ITESP) e na Pontifícia Universidade Católica de
Campinas (PUCCAMP).
[1] «A máquina gira, gira e deve continuar a girar
eternamente. Se ela pára, é a morte.»; movimento donde resultam
aqueles que preferem ser uma «rocha escarlate
totalmente incrustada de lacre liquido»; Cf. Aldous Huxley, «Admirável
mundo novo», Ed. Antígona Nov. 2013, p. 76.62. [NdE]