«mas eles venceram
(…) pelo
testemunho da sua palavra
e porque o amor que tinham à sua vida não
era superior ao medo da morte» [Ap 12:11]
«Que se ordene [cheirotonein] como bispo aquele que,
sendo irrepreensível,
tenha sido eleito por todo o povo. Quando se pronuncie o seu nome e tenha sido aceite,
que se reúnam num domingo o povo com o presbitério e os bispos presentes.
Com o consentimento
de todos, os bispos imponham-lhe as mãos, ao mesmo tempo que o povo
permanece de pé. E todos guardem silêncio rezando no seu coração para que desça
o Espírito. Na sequência disto, a pedido de todos, um dos bispos lhe imporá as
mãos, dizendo: … (segue-se uma oração)», in Tradição
Apostólica, Hipólito, séc. III.
Duas condições para
a "eleição": ser «irrepreensível» e ter a unanimidade dos eleitores.
Na Igreja, ninguém deve
ser imposto a ninguém…
[JI González Faus]
A
«estrutura»
da Igreja fundamenta-se no episcopado, o qual tem, como cabeça, o bispo de
Roma. Mas a «organização»
da Igreja tem que recuperar aquilo que ela foi nos primeiros séculos. As
vocações de então – tal como diziam os concílios locais – eram vocações invitus
e coactus
(cf. Y. Congar, «Ordinations invitus,
coactus, de l’Eglise antique au c. a
non 214», Rev. Sc. Phil. Théol., 50 [1966]
pp. 169-197), ou seja, eram ordenados sacerdotes e bispos que tudo faziam para
não o serem. E cada comunidade era quem os elegia. [JM Castillo, La Religión de Jesús, 2014-2015, p.
423]
Obstáculos pessoais e
estruturais que dificultam uma integração plena de todos os fiéis
I.
A
divisão em classes dentro da igreja contradiz o próprio projecto de Jesus
Cristo [cf. Bernard Cooke, Concilium 200, 1985/4]
Baseado nas
reflexões dos capítulos anteriores, devemos lembrar que o grande projecto de
Jesus Cristo era uma comunidade de irmãos e irmãs. O Concílio Vaticano II
expressou essa ideia no seu modelo de uma Igreja de comunhão e de participação. Tal
Igreja, porém, não se realiza hoje sem uma drástica mudança de estruturas.
Aqui está o
problema e a razão última pela qual o grande advento do Concílio corre o risco,
hoje, de se perder em discussões sobre questões de poder, de ortodoxia e de
obediência. A palavra de ordem, em vez de abrir novos horizontes, chama-se
«regresso à velha disciplina», as reformas esgotam-se em questões periféricas e
a geração jovem vai-se embora: emigração silenciosa!
Contra todas estas
tendências, devemos acentuar que a Igreja é capaz de mudar. Porém, a mudança vai
para lá da aceitação do protagonismo do leigo. Quando se compara o
programa de um protagonismo com o modelo proposto pelo Concílio, fica cada vez
mais claro que o
programa do Concílio vai muito mais além. Protagonismo ainda
pressupõe relações
de poder, perigo de divisão, não comunhão, e sugere a existência de
classes em que alguns mandam e outros, apesar de protagonistas,
desempenham o papel que foi escrito para que eles o desempenhassem.
Em vez de nos
ficarmos apenas por aquilo que já conseguimos – o protagonismo dos leigos –
devemos ter a coragem de dar um passo além deste protagonismo. Devemos
consciencializarmo-nos do protagonismo dos baptizados, do protagonismo dos
cristãos, do protagonismo dos seguidores de Jesus Cristo.
Eis o verdadeiro
protagonismo em que cada um tenta ser protagonista no âmbito dum programa "escrito"
e formulado pelo próprio Jesus Cristo, coordenando e entrelaçando as suas
acções dentro de um espírito de comunhão e participação, agindo conforme o paradigma do
corpo humano, enfatizado por Paulo.
Em tal protagonismo,
ninguém vai reclamar direitos superiores, nenhum membro terá poderes ou
prestígio maiores, cada um age conforme os seus carismas e submete esses
carismas ao grande projecto de transformação
do mundo conforme os parâmetros do Reino de Deus: eis o único modelo que realmente
pode corresponder aos planos de Jesus.
Toda e qualquer
divisão entre grupos e classes é estranha à natureza de uma comunidade que se
compreende como o único corpo de Cristo. Reconhecer a Igreja como COMUNIDADE significa AFASTAR TODAS AS BARREIRAS QUE PODERIAM CRIAR SEPARAÇÕES!
Reconhecer a Igreja como comunidade significa agir conforme os critérios do SERVIR e não conforme os do poder.
É evidente que, em
tal maneira de ver uma Igreja de
Comunhão e de Participação, não reinará o caos e a desordem, bem pelo
contrário. Da mesma maneira como dentro do corpo cada órgão tem a sua tarefa
bem definida, também numa Igreja de comunhão haverá funções especializadas e
tarefas específicas de cada um. Aquilo que nunca poderá haver são privilégios e poder.
O que nunca poderá existir é a dominação de uns quantos sobre os outros. O que
não é tolerável é o espírito de dominação, por um lado, e o espírito de
subordinação e de medo, por outro. O que, ao contrário, deve haver é a acção
conjunta de servidores de Deus, onde cada um age em comunhão com os seus irmãos
e as suas irmãs, consoante os seus carismas especiais, pondo esses carismas ao
serviço do colectivo, sem, por causa disso, esquecer que o carisma – para
realmente poder agir em nome de Deus – também precisa do quadro da instituição.[1]
«O dom que cada um recebeu, ponha-o ao
serviço dos outros, como bons administradores da tão diversificada graça de
Deus». (1Pe 4,10)
Numa Igreja assim,
o servidor dos servidores de Deus lavará, realmente, os pés dos irmãos e não
haverá entre nós os mesmos mecanismos que podemos observar na corte dos reis
das nações, como denunciou Jesus de maneira tão clara (cf. Lc 22:24-27). Numa
Igreja assim, substitui-se
o pretexto de que se precisa de poder para servir por aquela atitude
que realmente é capaz de servir: o amor. O amor, para servir. Numa Igreja assim
redescobre-se de novo o grande e escandaloso desafio presente numa das mais
chocantes revelações de Deus transmitida por Jesus Cristo: o
lava-pés. O Deus encarnado lava os pés dos seus seguidores. Se ele
que é Deus age desta maneira, então, como deverão agir de maneira diversa
aqueles que se dizem ser seus seguidores, seja lá a posição que ocupam?
O lava-pés torna-se o grande modelo e desafio para todos os que se dizem seguidores de Jesus.
(…)
Por causa de
séculos de história, os «leigos» aprenderam que:
− as pessoas
ordenadas convertem-se, automaticamente, nos líderes escolhidos por Deus;
− nunca se pode
questionar o modo como esses líderes interpretam a fé;
− não se pode, a
respeito da actividade ministerial, questionar as decisões desses ordenados.
Os «ordenados», por
sua vez, consideram:
− que a ordenação lhes dá poder e sabedoria para
eles serem os
únicos a pronunciarem-se sobre as verdades doutrinais;
− que são
obedecidos e honrados pelo povo;
− que são eles os únicos
responsáveis pelas paróquias e respectivas actividades.
Consequência desta
mentalidade: uma
séria barreira à plena comunhão e participação de todos os
baptizados na vida eclesial.
(…)
Contra o peso dessa
tradição milenar, devemos de novo, em nome de Jesus Cristo e do seu projecto,
chamar todos para superar as velhas estruturas com entusiasmo e coragem.
Devemos lembrar o chamamento de Jesus à conversão que não se dirigia apenas aos
indivíduos e ao seu comportamento moral, mas, também com a mesma urgência, à
instituição religiosa e às estruturas contrárias à vontade de Deus.
Convertam-se!
Mudem de mentalidade!
Mudem as estruturas e não apenas as
aparências!
Ponham o vinho novo em odres novos!
Não pintem apenas os odres velhos
com cores novas, deixando, por dentro, o vinho velho que já se tornou vinagre!
Algumas de tais
tentações em pintar
os odres velhos com uma nova cor podem ser detectadas. Mencionamos,
de seguida, alguns exemplos, não como acusações, mas muito mais como estímulos
à reflexão.
− Existe o perigo
de simplesmente caminhar na direcção de um «alargamento do clero», incluindo nesse
clero pessoas com graus diferentes de ordenação.
− Existe o perigo
de querer simplesmente criar um novo tipo de clero, incentivando o diaconato
como única solução.
− Existe o perigo
de ver, nos assim chamados leigos, ferramentas de emergência para quando faltam
padres.
− Existe o perigo
de ver nesses leigos e leigas mão-de-obra gratuita que pode ser usada de graça,
ao mesmo tempo que todo o dinheiro é investido apenas na sustentação e na
formação do clero.
A Igreja é capaz de
superar todos estes tipos de perigos e muitos mais. Para que isso aconteça é
preciso, porém, a conversão. (…)
Renold Blank
Teólogo,
professor de "Escatologia, Teologia da Revelação e Antropologia" na
Pontifícia Faculdade de Teologia Nossa Senhora da Assunção, no Instituto
Teológico de São Paulo (ITESP) e na Pontifícia Universidade Católica de
Campinas (PUCCAMP).
[1] Sobre o
duplo perigo da "iconoclastia" ou rejeição de todo o tipo de
organização dos carismas, e de "idolatria" da organização que quer
regulamentar e disciplinar todos os carismas, vale a pena ler: Agenor
Brighenti, «A Igreja perplexa», São
Paulo, Paulinas 2005, p. 133-136.