teologia para leigos

20 de setembro de 2014

IGREJA: SOCIEDADE DE CLASSES [R.BLANK]

«mas eles venceram (…) pelo testemunho da sua palavra
e porque o amor que tinham à sua vida não era superior ao medo da morte» [Ap 12:11]

«Que se ordene [cheirotonein] como bispo aquele que, sendo irrepreensível, tenha sido eleito por todo o povo. Quando se pronuncie o seu nome e tenha sido aceite, que se reúnam num domingo o povo com o presbitério e os bispos presentes.
Com o consentimento de todos, os bispos imponham-lhe as mãos, ao mesmo tempo que o povo permanece de pé. E todos guardem silêncio rezando no seu coração para que desça o Espírito. Na sequência disto, a pedido de todos, um dos bispos lhe imporá as mãos, dizendo: … (segue-se uma oração)», in Tradição Apostólica, Hipólito, séc. III.

Duas condições para a "eleição": ser «irrepreensível» e ter a unanimidade dos eleitores.

Na Igreja, ninguém deve ser imposto a ninguém…
[JI González Faus]



A «estrutura» da Igreja fundamenta-se no episcopado, o qual tem, como cabeça, o bispo de Roma. Mas a «organização» da Igreja tem que recuperar aquilo que ela foi nos primeiros séculos. As vocações de então – tal como diziam os concílios locais – eram vocações invitus e coactus (cf. Y. Congar, «Ordinations invitus, coactus, de l’Eglise antique au c. a non 214», Rev. Sc. Phil. Théol., 50 [1966] pp. 169-197), ou seja, eram ordenados sacerdotes e bispos que tudo faziam para não o serem. E cada comunidade era quem os elegia. [JM Castillo, La Religión de Jesús, 2014-2015, p. 423]


Obstáculos pessoais e estruturais que dificultam uma integração plena de todos os fiéis




I.           A divisão em classes dentro da igreja contradiz o próprio projecto de Jesus Cristo [cf. Bernard Cooke, Concilium 200, 1985/4]

Baseado nas reflexões dos capítulos anteriores, devemos lembrar que o grande projecto de Jesus Cristo era uma comunidade de irmãos e irmãs. O Concílio Vaticano II expressou essa ideia no seu modelo de uma Igreja de comunhão e de participação. Tal Igreja, porém, não se realiza hoje sem uma drástica mudança de estruturas.

Aqui está o problema e a razão última pela qual o grande advento do Concílio corre o risco, hoje, de se perder em discussões sobre questões de poder, de ortodoxia e de obediência. A palavra de ordem, em vez de abrir novos horizontes, chama-se «regresso à velha disciplina», as reformas esgotam-se em questões periféricas e a geração jovem vai-se embora: emigração silenciosa!

Contra todas estas tendências, devemos acentuar que a Igreja é capaz de mudar. Porém, a mudança vai para lá da aceitação do protagonismo do leigo. Quando se compara o programa de um protagonismo com o modelo proposto pelo Concílio, fica cada vez mais claro que o programa do Concílio vai muito mais além. Protagonismo ainda pressupõe relações de poder, perigo de divisão, não comunhão, e sugere a existência de classes em que alguns mandam e outros, apesar de protagonistas, desempenham o papel que foi escrito para que eles o desempenhassem.

Em vez de nos ficarmos apenas por aquilo que já conseguimos – o protagonismo dos leigos – devemos ter a coragem de dar um passo além deste protagonismo. Devemos consciencializarmo-nos do protagonismo dos baptizados, do protagonismo dos cristãos, do protagonismo dos seguidores de Jesus Cristo.

Eis o verdadeiro protagonismo em que cada um tenta ser protagonista no âmbito dum programa "escrito" e formulado pelo próprio Jesus Cristo, coordenando e entrelaçando as suas acções dentro de um espírito de comunhão e participação, agindo conforme o paradigma do corpo humano, enfatizado por Paulo.

Em tal protagonismo, ninguém vai reclamar direitos superiores, nenhum membro terá poderes ou prestígio maiores, cada um age conforme os seus carismas e submete esses carismas ao grande projecto de transformação do mundo conforme os parâmetros do Reino de Deus: eis o único modelo que realmente pode corresponder aos planos de Jesus.

Toda e qualquer divisão entre grupos e classes é estranha à natureza de uma comunidade que se compreende como o único corpo de Cristo. Reconhecer a Igreja como COMUNIDADE significa AFASTAR TODAS AS BARREIRAS QUE PODERIAM CRIAR SEPARAÇÕES! Reconhecer a Igreja como comunidade significa agir conforme os critérios do SERVIR e não conforme os do poder.

É evidente que, em tal maneira de ver uma Igreja de Comunhão e de Participação, não reinará o caos e a desordem, bem pelo contrário. Da mesma maneira como dentro do corpo cada órgão tem a sua tarefa bem definida, também numa Igreja de comunhão haverá funções especializadas e tarefas específicas de cada um. Aquilo que nunca poderá haver são privilégios e poder. O que nunca poderá existir é a dominação de uns quantos sobre os outros. O que não é tolerável é o espírito de dominação, por um lado, e o espírito de subordinação e de medo, por outro. O que, ao contrário, deve haver é a acção conjunta de servidores de Deus, onde cada um age em comunhão com os seus irmãos e as suas irmãs, consoante os seus carismas especiais, pondo esses carismas ao serviço do colectivo, sem, por causa disso, esquecer que o carisma – para realmente poder agir em nome de Deus – também precisa do quadro da instituição.[1]

«O dom que cada um recebeu, ponha-o ao serviço dos outros, como bons administradores da tão diversificada graça de Deus». (1Pe 4,10)

Numa Igreja assim, o servidor dos servidores de Deus lavará, realmente, os pés dos irmãos e não haverá entre nós os mesmos mecanismos que podemos observar na corte dos reis das nações, como denunciou Jesus de maneira tão clara (cf. Lc 22:24-27). Numa Igreja assim, substitui-se o pretexto de que se precisa de poder para servir por aquela atitude que realmente é capaz de servir: o amor. O amor, para servir. Numa Igreja assim redescobre-se de novo o grande e escandaloso desafio presente numa das mais chocantes revelações de Deus transmitida por Jesus Cristo: o lava-pés. O Deus encarnado lava os pés dos seus seguidores. Se ele que é Deus age desta maneira, então, como deverão agir de maneira diversa aqueles que se dizem ser seus seguidores, seja lá a posição que ocupam?

O lava-pés torna-se o grande modelo e desafio para todos os que se dizem seguidores de Jesus.

(…)

Por causa de séculos de história, os «leigos» aprenderam que:

as pessoas ordenadas convertem-se, automaticamente, nos líderes escolhidos por Deus;

nunca se pode questionar o modo como esses líderes interpretam a fé;

− não se pode, a respeito da actividade ministerial, questionar as decisões desses ordenados.


Os «ordenados», por sua vez, consideram:

− que  a ordenação lhes dá poder e sabedoria para eles serem os únicos a pronunciarem-se sobre as verdades doutrinais;

− que são obedecidos e honrados pelo povo;

− que são eles os únicos responsáveis pelas paróquias e respectivas actividades.

Consequência desta mentalidade: uma séria barreira à plena comunhão e participação de todos os baptizados na vida eclesial.

(…)

Contra o peso dessa tradição milenar, devemos de novo, em nome de Jesus Cristo e do seu projecto, chamar todos para superar as velhas estruturas com entusiasmo e coragem. Devemos lembrar o chamamento de Jesus à conversão que não se dirigia apenas aos indivíduos e ao seu comportamento moral, mas, também com a mesma urgência, à instituição religiosa e às estruturas contrárias à vontade de Deus.


Convertam-se!

Mudem de mentalidade!

Mudem as estruturas e não apenas as aparências!

Ponham o vinho novo em odres novos!

Não pintem apenas os odres velhos com cores novas, deixando, por dentro, o vinho velho que já se tornou vinagre!


Algumas de tais tentações em pintar os odres velhos com uma nova cor podem ser detectadas. Mencionamos, de seguida, alguns exemplos, não como acusações, mas muito mais como estímulos à reflexão.

− Existe o perigo de simplesmente caminhar na direcção de um «alargamento do clero», incluindo nesse clero pessoas com graus diferentes de ordenação.

− Existe o perigo de querer simplesmente criar um novo tipo de clero, incentivando o diaconato como única solução.

− Existe o perigo de ver, nos assim chamados leigos, ferramentas de emergência para quando faltam padres.

− Existe o perigo de ver nesses leigos e leigas mão-de-obra gratuita que pode ser usada de graça, ao mesmo tempo que todo o dinheiro é investido apenas na sustentação e na formação do clero.


A Igreja é capaz de superar todos estes tipos de perigos e muitos mais. Para que isso aconteça é preciso, porém, a conversão. (…)


Renold Blank
Teólogo, professor de "Escatologia, Teologia da Revelação e Antropologia" na Pontifícia Faculdade de Teologia Nossa Senhora da Assunção, no Instituto Teológico de São Paulo (ITESP) e na Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUCCAMP).












[1] Sobre o duplo perigo da "iconoclastia" ou rejeição de todo o tipo de organização dos carismas, e de "idolatria" da organização que quer regulamentar e disciplinar todos os carismas, vale a pena ler: Agenor Brighenti, «A Igreja perplexa», São Paulo, Paulinas 2005, p. 133-136.