A frequência da Eucaristia ao longo da história
Jesus disse: «Fazei isto em memória de mim», mas não disse com
que frequência. A
questão que nos vai ocupar é a resposta que esta pergunta recebeu ao longo da
história. Por questões de limitação de espaço, não nos é possível mais do que
um breve esboço da evolução geral, ainda que deva reconhecer que existam
excepções a este quadro geral.
Antes de avançar, importam algumas especificações.
Por exemplo, existem eucaristias comunitárias e eucaristias de natureza mais
privada. Existe a liturgia eucarística ou missa
e a comunhão eucarística, dentro ou fora da missa - podemos elaborar acerca da
frequência de ambas. Finalmente, cada uma dessas «eucaristias» tem o seu
próprio ritmo e exige uma resposta particular no que diz respeito à sua
frequência.
[…]
I.
Conclusão
A partir do século II observa-se uma
evolução que vai da missa comunitária dominical e da comunhão diária em casa
até à missa
em alguns dias da semana. É evidente que o motivo desta evolução não
é a «devoção eucarística», mas o desenvolvimento do ciclo litúrgico. Quando num
dia particular se procede a uma solenidade litúrgica, a missa é celebrada como
parte da festividade. É isso que acontece com os sábados, e depois com as estações
das quartas e sextas-feiras, com os aniversários dos mártires, etc. Com a evolução,
chega-se à possibilidade de, pelo menos, uma missa comunitária diária, excepto
em certos tempos penitenciais, ainda que esta oportunidade só seja aproveitada
em algumas tradições. Ironicamente, este engrandecimento da celebração é
seguido de um decréscimo da frequência da "comunhão".
Será possível elaborar alguns juízos
de valor sobre uma base tão movediça? Quanto a mim, constato alguns pontos
constantes:
1. A frequência eucarística variou muito ao longo do tempo, mas, nos tempos mais antigos, o ideal
parece que foi a comunhão diária, sendo a missa diária conhecida em algumas
igrejas já no século IV.
2. A Eucaristia era um assunto eclesial
sujeito a regulação da Igreja e, portanto, nunca deixado à mercê da «devoção» de cada um.
A expressão da vida eclesial comunitária era um todo que não se limitava à Eucaristia. O seu ritmo não se determinou de modo independente, mas dependeu de
outros factores, como por exemplo, do desenvolvimento do ciclo litúrgico.
3. Dentro deste ciclo existiam tempos
nos quais não celebrar a missa era considerado preferível do que celebrá-la, tempos
em que se podia impor – e impunha-se mesmo – o abster-se dela. O excesso eucarístico foi condenado, o que
significa que a Eucaristia tem valor
relativo. Pode haver Eucaristia em demasia: às vezes, é melhor que não exista de
maneira nenhuma.
4. A tabela daquilo que é excessivo ou manifestamente
insuficiente nunca foi sempre a mesma. Os extremos são indiscutíveis: menos de
um domingo (em média por semana) é costume alheio à tradição; mais do que uma
vez por dia é excessivo, excepto em circunstâncias particulares.
5. A variedade existente entre estes
dois extremos deve-se a factores diversos: necessidades pastorais, oscilações da teologia eucarística,
diferentes sistemas simbólicos empregados nos distintos tempos e lugares, etc.
6. Estes sistemas podem ser mutuamente
contraditórios: os coptas celebram a Eucaristia diariamente apenas na Quaresma,
ao passo que os bizantinos consideram as festividades eucarísticas
incompatíveis com a Quaresma. Isto não significa que um sistema seja
«verdadeiro» e o outro «falso». Significa, antes, que nenhum sistema pode ser absolutizado.
Diga-se o mesmo das tentativas contemporâneas de construir sistemas simbólicos
com vistas a serem usados como instrumento regulador do costume litúrgico.
Estou a pensar no tópico actual de que somente o domingo é «escatológico» e,
portanto, só o domingo é adequado para a celebração «escatológica» da Eucaristia, enquanto os dias da semana,
dedicados à «santificação do tempo», deveriam destinar-se a celebrar a liturgia
das Horas. Isto é ideologia e não teologia; ora, todos sabemos que a
mente humana é capaz de construir uma ideologia que justifique até o
injustificável…
Com isto, quero dizer que tudo é
relativo? Não, porque por trás de tudo existe uma tradição comum. É claro que,
para mim, só
o sacrifício de Cristo tem valor absoluto. São inúteis as tentativas
de conferir o mesmo valor ao sacramento de Cristo. Para além do mais, este
sacramento tem carácter eclesial não privado, e a celebração da comunhão eclesial não se
reduz à Eucaristia, a qual nunca poderá ser considerada
isoladamente. As normas puramente individuais ou devocionais que não tenham em
conta este contexto global carecem de legitimidade.
Quanto à questão da frequência, se a
tradição é quod
semper, quod ubique, quod ab omnibus, então a norma mais antiga para
a comunhão
é a recepção diária. E, para a missa, entre os dois extremos − «diária»
ou «só aos domingos e dias festivos» − a única norma geral é, dentro de cada
tradição, a adaptação às necessidades pastorais de tempo e lugar. Todas as
tentativas de construir ideologias que absolutizem um determinado costume
– p. ex., dizer que os «bons sacerdotes» são os que dizem missa diariamente,
ou, que apenas o «domingo» é o dia adequado para celebrar a eucaristia por ser
dia «escatológico» − são meros tópicos, produto de uma mente a-histórica.
Pessoalmente, também rejeito a ideia
de que um sacerdote deve celebrar missa sempre que o assalte um pressentimento
de aumento da fé e da devoção, uma presumível necessidade de participação
existencial na cruz de Cristo. Tomado isoladamente, isto é demasiado individualista
para encaixar com a minha ideia de relação que deve existir entre Igreja, Eucaristia e Ciclo Litúrgico. O mesmo deve dizer-se do presumível
«direito» dos presbíteros a concelebrar seja lá em que missa for. Os critérios
para decidir acerca destas questões são as necessidades pastorais da comunidade
celebrante e a natureza
da celebração em concreto, e não a devoção individual dos clérigos,
os quais não possuem «direito» especial algum que tenha precedência sobre
exigências eclesiais e pastorais mais amplas[1].
A Eucaristia não é apenas participação na cruz de Cristo, mas também Epifania da
Igreja no contexto duma tradição litúrgica total, que requer, para a
sua celebração, um juízo pastoral muito mais matizado do que qualquer «devoção»
do indivíduo.
Dizer qual deverá ser, hoje, esse
juízo pastoral é algo que não compete ao historiador. A História apresenta o passado sempre como
algo instrutivo e nunca como normativo. Normativa é a tradição, mas
a tradição, ao contrário do passado, é uma força viva, cujas expressões
contingentes – na liturgia e em tudo o mais – são susceptíveis de mudança.
Robert Taft,
jesuíta, USA.
[1] Pode
ver-se um estudo mais amplo deste tema no meu artigo citado na nota 91, em
Robert Taft, «Ex Oriente lux? Some Reflections on
Eucharistic Concelebration»: «Worship» 54 (1980) 308-325.