BIOÉTICA, SEXUALIDADE E CRENÇAS
(…) Num grupo de
estudos sobre bioética e teologia discutíamos certos documentos acerca da
dignidade humana, protecção da vida e tecnologias da reprodução: eram duas declarações
da Congregação para a Doutrina da Fé, Donum vitæ (1987) e Dignitas personæ (2008). A
tertúlia suscitou uma série apreciável de comentários e perguntas, que se
podiam agrupar em dois blocos principais: umas, provenientes daqueles que
assentiam com o conjunto de valores, princípios e critérios gerais propostos
por tais documentos; outras, as que vinham daqueles que dissentiam sobre a
maior parte dos julgamentos, soluções e respostas − respostas concretas e assertivas − para cada dilema ético.
Entre os
participantes na tertúlia, um grupo de monitores de educação moral provenientes
de colégios do ensino secundário, perguntavam: Quais
os critérios para abordar a ética das relações, da sinceridade dos sentimentos
e dos desejos? A pergunta
menciona duas palavras-chave da ética: relação e sinceridade. As questões
éticas relacionadas com a sexualidade enquadram-se no âmbito daquilo que
poderíamos chamar uma ética das relações humanas. Como já disse, nunca me
convenceram os títulos dos livros ou das disciplinas com nomes tais como «moral
sexual» ou «ética da sexualidade». Nesta ética, há três
perguntas fundamentais que cada pessoa que se relacione intimamente
com outra deve colocar a si mesmo e responder por si: a) Sou sincero comigo
mesmo, nesta relação? b) Sou sincero e leal para com a pessoa que constitui o
outro pólo da relação? c) Sou responsável pelas consequências que podem advir
do modo como esta relação se desenrola?
Respondendo de um
modo assim muito geral, era previsível que alguém, não sem antes olhar de
soslaio para o ideário das instituições confessionais, se perguntasse: Do ponto de vista do percurso educativo, será correcta a
moralização dos rapazes e das raparigas?
Não sei se quem faz
a pergunta utiliza a palavra «moralização» num sentido bom e positivo. Se
pretende dizer que devem ser ajudados e acompanhados no seu caminho de
crescimento de modo a que passem duma moral infantil à moral dos adultos, da moral aprendida
na infância (heterónoma)
a uma moral
apropriada pessoalmente (autónoma),
então a resposta é afirmativa. Mas, se por «moralização» se entende fazer
doutrinação moralista (sem deixar pensar e sem deixar crescer), ou seja, «moralismo»
no sentido pejorativo − meter, «a partir de fora» e «a partir de cima», uma moral
de mandamentos e proibições − a resposta é que não devemos fazê-lo, porque isso
equivaleria a impedir o seu crescimento racional e responsável. Há que evitar
dois extremos: a «ética de apenas travão» e a «não-ética de só acelerador».
Convém, pelo contrário, continuando com a comparação automobilística, que a pessoa
educadora maneje o volante e as mudanças, limitando-se ao papel de acompanhante
no lugar do co-piloto.
(…)
Os participantes em
debates, que querem a todo o custo respostas específicas, sobretudo quando se
trata de questões controversas no seio de instituições educativas
confessionais, costumam descer ao terreno do concreto. Nada de espantar que
alguém pergunte à queima-roupa: Porque é que a
Igreja permite os métodos anticonceptivos naturais e não outros, tais como, por
exemplo, o preservativo, quando a finalidade é a mesma?
Diante de perguntas
deste tipo, há que ser muito directo. O papel das igrejas não é permitir ou
proibir o uso de recursos profilácticos ou anticonceptivos. Quanto a este
assunto, existem muitos mal-entendidos. Quer os chamados «métodos naturais»
(usados, quiçá, com muito pouca «naturalidade»), como os chamados «métodos
artificiais» podem ser usados responsável e irresponsavelmente.
É verdade que,
habitualmente em muitas explicações, se deu a entender que a suposta posição da
moral católica era de permitir os métodos impropriamente denominados «naturais»
e de recusar os, inexactamente, qualificados de «artificiais». Sejamos mais
precisos. Os
métodos denominados, com ligeireza, «naturais» não são, frequentemente, tão
naturais assim. Existe também muita confusão acerca do uso de
expressões como «natural» ao referir-se aos métodos de regulação da concepção.
De facto, os assim chamados «métodos naturais» podem ser utilizados de um modo
muito antinatural. E, pelo contrário, os chamados «métodos artificiais» não se
entende porque devem ser considerados antinaturais. O que é decisivo não é
discutir se um determinado método é artificial ou não, mas perguntar se o seu
uso é racional e responsável, no contexto duma boa relação de amor e respeito
mútuo dentro do casal.
Também existem
mal-entendidos a propósito dos procedimentos a empregar após uma violação, ou
situações equivalentes, com a finalidade de prevenir a implantação de um óvulo
fecundado. Esses procedimentos não devem ser considerados como abortíferos, mas
como anti-traceptivos (mais correctamente, deveria falar-se de «intercepção»). O mesmo deve dizer-se do
uso dos dispositivos intra-uterinos (DIU) ou da anticoncepção pos-coital de
emergência, a chamada «pílula do dia seguinte».[1]
Ao abordar estes assuntos no contexto duma sociedade secular e pluralista, a
teologia moral católica deveria ter cuidado e não esquecer a sua situação
minoritária dentro de uma sociedade plural, tanto no âmbito cultural como no
religioso. É
imperioso oferecer argumentos com capacidade persuasiva para aqueles que não
comunguem do mesmo ponto de vista acerca da vida.
Seja como for, é
importante separar o tema dos anticonceptivos do tema do aborto. Na verdade, os
mal-entendidos provocados por colocar o problema do aborto ao mesmo nível que a
anticoncepção causou bastante dano. Numa paróquia ao sul do Japão, aconteceu-me
o seguinte. Uma mãe de família, de cerca de 30 anos, fora baptizada como
católica pouco antes da sua boda com um católico "de nascença",
educado à moda antiga. Ambos provinham de um ambiente muito tradicionalista. Na
região donde eles provinham, haviam-lhes falado da anticoncepção e do aborto
como se tratassem de realidades idênticas. Quando se mudaram para outra cidade
começaram a frequentar uma paróquia de ambiente distinto. Procurando saber mais
acerca do uso do preservativo,
receberam como resposta: «É um mal menor,
preferível ao aborto, já que é um pecado
menor.» No final da minha conferência, esta mãe de família perguntou-me o
que é que eu pensava desta resposta. Disse-lhe: «Porquê chamar mal menor ou pecado mais
pequeno ao que nem é mal nem pecado?» Quer a mulher que me fez a
pergunta, quer as restantes mulheres, mexeram-se nos seus lugares. «Será que se
pode dizer tal?», comentavam entre si. E, a partir de então, começaram a fazer
mais perguntas, tendo a reunião durado até às tantas. Por fim, uma das
assistentes à conferência disse: «Obrigado por esta oportunidade. É que, se
aquilo que aqui viemos ouvir nos fosse dito há doze anos atrás, não teria
sofrido, inutilmente, durante tanto tempo no meu matrimónio». Precisamente por
isso, para evitar este tipo de mal-entendidos, convém não colocar ao mesmo
nível o aborto, a esterilização, a anticoncepção e a intercepção. Algumas formas
de falar de alguns moralistas cristãos, as quais inclusivamente se espelharam
na redacção de alguns documentos eclesiásticos e em certas exortações papais, contribuíram,
lamentavelmente, para tais equívocos.
A quem pergunta o
que dizer acerca do uso de anticonceptivos quando um dos esposos é portador do
vírus da SIDA, dever-se-ia responder, sem sombra de dúvida, que não só é
recomendável, como é necessário e, até, obrigatório. Dizia-o taxativamente o Cardeal Martini
numa sua entrevista ao diário L’Expresso,
em Abril de 2006. Acerca desta questão, seria obrigatório, inclusivamente,
dissentir sempre que uma autoridade eclesiástica dissesse o contrário.
Perguntam os
funcionários sanitários de uma instituição hospitalar confessional, que tiveram
problemas com a hierarquia eclesiástica: «Até que ponto é
moralmente correcto informar acerca dos métodos que podem provocar a
interrupção duma vida, como por exemplo é o caso da pílula do dia
seguinte?»
Devemos esclarecer
que não só é correcto como recomendável a fim de evitar o aborto, ainda que
esta recomendação deva ir acompanhada das informações médicas e psicológicas
devidas e correctas. A pílula do dia seguinte, os dispositivos intra-uterinos e
os procedimentos (lavagens vaginais, etc.) a que, por exemplo, se recorre após
uma violação ou situação equivalente, não são abortivos, mas interceptivos. Interromper,
responsavelmente (com razões justificadas), um processo que visa a constituição
de uma vida humana individual e pessoal (mas que, entretanto, ainda não ocorreu)
não é a mesma coisa que abortar essa vida já constituída.
As afirmações,
levianas, produzidas em algum artigo pseudo-científico e pseudo-ético duma
publicação eclesiástica qualquer, unidas a outras afirmações igualmente
superficiais proferidas por parte dum porta-voz episcopal, alarmam o público (…).
Juan Masiá Clavel, sj
[42 pp.]
[1] A pílula
pos-coital administrada antes da implantação não é abortiva, mas interceptiva.
Uma vez produzida a implantação, deixa de ser efectiva e, portanto, deixa de
ter sentido a sua administração; nesse caso, não seria abortífera. «Existem
evidências suficientes para determinar que estes fármacos, com excepção da
mifepristona (RU-486), não exercem nenhum efeito sobre a gravidez, uma vez
produzida a implantação no endométrio. Por essa razão, não é necessário
proceder à realização do teste de gravidez antes de prescrever um
anti-conceptivo de emergência» (cf. «Guía para las decisiones clínicas de anticoncepción
de emergencia en los centros de la Orden hospitalaria San Juan de Dios de la
provincia de Castilla», 2005, p. 6).