«Antes do século
XIII, quando a distinção entre a ordem natural e a ordem sobrenatural não
estava claramente elaborada, a lei natural
era geralmente assimilada pela moral cristã. Assim, o decreto de Graciano, que
forneceu a norma canónica básica no século XII, inicia-se assim: “A lei natural
é o que está contido na Lei e no Evangelho”. Depois, ele identifica
o conteúdo da lei natural com a “regra de ouro” e precisa que as leis
divinas correspondem à natureza.
Os Padres da Igreja
recorreram, portanto, à lei natural e à Sagrada Escritura para fundamentar o
comportamento moral dos cristãos; mas o Magistério da Igreja, nos primeiros
tempos, teve pouco a intervir para resolver as disputas sobre o conteúdo da lei
moral.
Quando o Magistério
da Igreja foi impelido não somente a resolver discussões morais particulares,
mas também a justificar sua posição ante um mundo secularizado, ele apelou mais
explicitamente à noção de lei natural.
É no século XIX, especialmente sob o pontificado de Leão XIII, que o recurso à
lei natural se impõe nos actos do Magistério. A apresentação mais clara encontra-se
na Encíclica Libertas
praestantissimum,
de 1888. Leão XIII refere-se à lei natural para identificar a fonte da
autoridade civil e fixar seus limites. Ele recorda com veemência que é
necessário obedecer antes a Deus do que aos homens, quando as autoridades civis mandam ou
reconhecem alguma coisa que é contrária à lei
divina ou à lei natural. Mas ele também
recorre à lei natural para proteger a propriedade privada contra o socialismo
ou, ainda, para defender o direito dos trabalhadores de buscar, através do
trabalho, o que é necessário para o sustento da própria vida. Nessa mesma
linha, João XXIII, na Encíclica Pacem in terris, de 1963, se
refere à lei natural para fundamentar
os direitos e deveres do homem. Com Pio XI, na Encíclica Casti connubii, de 1930, e Paulo
VI, na Encíclica Humanae vitae, de 1968, a lei natural revela-se como um
critério decisivo nas questões relativas à moral conjugal. (…).» [Comissão Teológica Internacional, Dez.
2008]
«Existem, em todas
as culturas, singulares e variadas convergências éticas, expressão de uma mesma
natureza humana querida pelo Criador e que a sabedoria ética da humanidade
chama lei natural. Esta lei moral
universal é um fundamento firme de todo o diálogo cultural,
religioso e político e permite que o multiforme pluralismo das várias culturas
não se desvie da busca comum da verdade, do bem e de Deus. Por isso, a adesão a esta lei escrita
nos corações é o pressuposto de qualquer colaboração social
construtiva.» [Caritas
in Veritate, Bento XVI, nº 59[1]]
Esta «lei moral e
universal» inscrita, por Deus, nos corações dos seres humanos serviu muitas
estratégias (morais, políticas, etc.). No que diz respeito à moralidade do acto
conjugal, extensamente se tornou numa moral católica casuística e «constituiu
uma questão, na qual, de forma detalhadíssima e até quase mórbida, se
determinaram, nos mais mínimos detalhes, os critérios (em relação às pessoas,
circunstâncias de modo, de tempo e de lugar) a fim de que a intimidade conjugal fosse
moralmente aceite»[2].
Um dos momentos ilustrativos do uso do conceito de «lei natural» para defesa de
uma teologia desumana foi a publicação, a 31 de Dezembro de 1930, da encíclica Casti Connubbii,
pelo papa Pio XI [entre 1922-1939]. Diz-se nela: «Porém, nenhuma razão, nem a
mais grave poderá fazer com que algo que vai intrinsecamente contra a natureza
se torne conforme à natureza e seja moralmente boa. Tendo em conta, portanto,
que o acto conjugal se orienta, pela sua própria natureza, à procriação da
prole, aquele que, ao realizá-lo, o prive deliberadamente da sua força e
capacidade natural, actua contra a natureza e comete algo vergonhoso
e intrinsecamente imoral (…). A nossa voz proclama mais uma vez:
qualquer uso do matrimónio, em cujo exercício o acto fica privado da sua
capacidade natural de procriar vida, viola a lei
divina e natural, e aqueles que cometam um qualquer acto desta espécie ficam contaminados pela mancha do pecado
grave»[3].
Era a reacção, «enérgica», à posição dos Bispos Anglicanos, na Conferência de
Lambeth (1930), «em que pela primeira vez um importante grupo cristão decide
publicamente pronunciar-se a favor da distinção entre o fim procriativo e o fim da união dos esposos no matrimónio».
Dentro do contexto da abordagem do sacramento do matrimónio, e no âmbito do
próximo Sínodo sobre a família, convém deixar no ar a questão deste conceito - a Lei Natural
– aspecto que nunca foi bafejado pelo pendor “personalista” do Concílio
Vaticano II (veja-se o caso Humanæ Vitæ), e que foi e ainda é um bastião
obsessivo de vastos sectores católicos tradicionalistas, que aguardam pela sua
vez para apontar baterias ao Papa Francisco. Diante da imensa bibliografia
sobre o assunto, seria muita pretensão querer ir além duma simples nota de
roda-pé…
A “Lei Natural”
Os comentários
que os visitantes deste blogue fazem (“Teología
sin censura”[4]) recorrem frequentemente à
“Lei Natural”. Dado ser um assunto a que alguns dão muita importância,
pareceu-me que podia ajudar os leitores se se esclarecessem algumas questões
relacionadas com essa lei.
Antes de mais, o
elementar: em todos os Manuais de filosofia e de ética (nos manuais que abordam
esta questão), o que eles começam por deixar bem claro é que lei “natural”
não é a mesma coisa que lei “positiva”. A lei “natural” (se é que
existe lei natural) é aquela que está
inscrita na natureza do ser humano, de tal modo que todo o ser humano, pelo
simples facto de ser um “ser humano”, carrega consigo tudo aquilo que é
“natural” num ser humano, por exemplo, respirar, ter fome, sofrer, morrer, etc.
A lei “positiva” é aquela que brota, não da
natureza humana, mas da “autoridade” (religiosa, civil, militar,
etc). Se a autoridade é religiosa, a lei não é alcançável pela “natureza”, mas
pela “fé” (pelo “acreditar”). O acto religioso nunca é (nem nunca poderá ser)
uma “necessidade natural”: será sempre uma “crença livre”. Se deixa de ser
livre deixa de ser meritório e, nesse caso, deixa de ser religioso. Portanto,
não se pode afirmar que os “Dez Mandamentos” pertencem à lei natural. Os Dez
Mandamentos pertencem à Lei de Moisés e sempre assim o sentiram os israelitas,
e de nada vale dizer que foi Deus que ditou essa lei a Moisés. Para além de
essa afirmação necessitar de ser explicada, aqueles que acreditam que esses
Mandamentos foram ditados por Deus a Moisés, acreditam através dum “acto de fé”
e não através duma “necessidade da natureza”, a qual, por definição, é idêntica
para todos, quer para os crentes israelitas, quer para os habitantes da
Austrália ou da Patagónia.
Não vou
explanar as numerosas e complicadas definições que foram dadas da “lei
natural”, desde Aristóteles passando por S. Tomás de Aquino até aos incontáveis
comentários que se escreveram à volta do Concílio Vaticano II a propósito da Humanæ Vitæ,
de Paulo VI. Aquilo que quero deixar bem claro é que a própria ideia de “Lei Natural” acarreta
consigo, como pressuposto, que existe uma natureza comum e essencial que é
igual em todos os seres humanos, independentemente das condições históricas e
culturais. Quando se trata de questões “naturais”, como por exemplo,
as questões biológicas básicas, isso é mais que evidente. Porém, será possível
dizer o mesmo das exigências da moral católica, quando esta se refere, por exemplo,
ao matrimónio monogâmico, indissolúvel e sempre aberto à vida, a proibição
taxativa de abortar seja em que circunstância for, à pecaminosidade da
masturbação ou a uma eventual possibilidade de uma união homossexual?
Como forma de
resposta, coloco apenas esta questão. Quer a antropologia, quer a paleontologia
ou a biologia demonstraram que a espécie humana, a qual «alcançou o tipo de inteligência necessária
para estabelecer uma civilização», existe desde há mais ou menos cem
mil anos (E. Mayr, in Bioastronomy News,
7, nº3, 1995). Destes cem mil anos, apenas conhecemos, através da História, uns
cinco mil anos. Isto quer dizer que os seres humanos viveram neste mundo
seguramente 95.000 anos sem que saibamos o que quer que seja acerca do modo
como viveram e menos ainda quais as ideias morais que esses nossos antepassados
longínquos e desconhecidos tiveram.
Ora, se existe
a chamada “lei natural” – e essa lei inclui tudo aquilo que os livros de moral
ensinam, tal como não poucos catecismos – então, há que supor que todas as
pessoas que habitaram este planeta Terra desde há cem mil anos achavam e
pensavam que era má e perversa a fornicação fora do matrimónio –
matrimónio que, aliás, não se restringia à união entre um homem e uma mulher, matrimónio
como compromisso indissolúvel e sempre aberto à procriação de vida – que a
masturbação era uma coisa antinatural, tal como as relações homossexuais,
isto já para não falar de proibições da moral católica mais subtis, tais como os maus
pensamentos, os olhares concupiscentes e os desejos pecaminosos.
Caso levemos a
sério a existência da lei natural, então, temos que levar a sério também as
suas consequências. Porém, será possível levar a sério que, os homens e as
mulheres de há 50.000 ou 70.000 anos, quando copulavam ou se acasalavam para
procriar ou simplesmente para satisfazer um instinto natural, tinham em mente
tudo aquilo que os moralistas católicos dizem e que, “segundo a lei natural”, é
mandatório? “Natural”
é comer e dormir. Por isso, as pessoas de há milhares de anos comiam
e dormiam, como o fazem hoje em dia os indivíduos das tribos amazónicas,
africanas e o fazemos nós, os da Europa ou os da Ásia. O mesmo acontece quando
nos pomos a discorrer acerca das propostas éticas de Sófocles ou Aristóteles,
de Cícero ou Lactâncio, de Tomás de Aquino e F. Suarez, dos manuais de Arregui
e Zalba, dos catecismos de antes e depois do Concílio…
Eu aconselharia,
tão só, que, quando falamos de temas que têm uma longa e complicada história,
pelo menos, que nos informemos como deve ser antes de falar.
José M. Castillo
Será possível, a Lei Natural, ser uma só
em todas as partes do mundo?
Por Juan Ramón Corpas,
Universidad de Navarra
A Lei Natural,
antes de mais nada, é abstracta:
não é possível definir os seus preceitos de um modo concreto na medida em que,
então, perderia todo e qualquer valor. Aceito que digam que isto que acabo de
afirmar é uma barbaridade. Porém, desafio quem quer que seja a tentar pôr por
escrito um a um os elementos categóricos dessa lei. Não chegaria à conclusão de
que teria, afinal, redigido apenas um Código Moral? Código, afinal de contas,
sem valor universal, na medida em que não seria aceite a não ser por uns
quantos, e mesmo entre esses, geraria discussão em virtude da multiplicidade de
pontos de vista interpretativos da dita Lei?
Diz-se que a Lei Natural é
universal e imutável. A Lei Natural consiste num conjunto de
preceitos, filhos da razão, que nos dizem como devemos agir em cada situação.
Antes de mais nada, convém dizer que não estamos perante questões de física ou
química, e que não é o mundo material que define a Lei Natural ou lhe confere a
razão de ser. Isso seria cair na falácia naturalista. Também se dirá (…).
[2] Marciano Vidal, «El Matrimonio – entre el ideal cristiano y la fragilidad
humana», Desclée De Brouwer 2003, p. 67. Por exemplo, da
teologia de Pedro Lombardo [séc. XII] rapidamente se concluiu que quase em
nenhum dia da semana se poderia ter relações sexuais, mesmo que com fins
meramente reprodutores. Proibidas «ao domingo, por se comemorar a ressurreição
do Senhor; às segundas-feiras, por ser dia consagrado aos defuntos; às quintas,
por se comemorar a Paixão de Jesus; às sextas, por causa da sua morte; aos
sábados, para honrar a Virgem». Ibid., p.55.
[3] AAS 22 (1930) 559-560.