teologia para leigos

20 de dezembro de 2013

CREIO NA IGREJA CATÓLICA? [J. A. ESTRADA]

O mistério da Igreja





«O relatório final do último Sínodo extraordinário dos bispos celebrado em 1985 [2ª Assembleia Geral Extraordinária por altura do 20º Aniversário do Concílio Vaticano II, destinado a revi­ver e reavivar o espírito conciliar[1]] dedica um capítulo inteiro a falar do mistério da Igreja. Nesse capítulo fala-se de secularismo, distinguindo-o de secularização, e diz que há «sinais de um regresso ao sagrado»: hoje em dia, existem «sinais de uma nova fome e de uma nova sede pelas coisas transcendentes e divinas. Cooperemos, então, com esta volta atrás ao sagrado. Para cooperar com ela e para superar o secularismo, temos de abrir vias de acesso à dimensão do «divino», ao mistério, e oferecer aos homens do nosso tempo os preâmbulos da fé».[2]

«Este regresso a uma terminologia do mistério e esta insistência na dimensão sagrada da vida, suscitou desconfianças e reacções as mais díspares. No já, então, conhecido relatório denominado «Relatório sobre a fé», do cardeal Ratzinger, se falava, com alguma reserva, do conceito de «povo de Deus» como título eclesiológico, e louvava-se um outro conceito, o conceito de «corpo de Cristo» e o conceito de «mistério»[3]. Diante desta postura, surge a desconfiança que, hoje em dia em muitos ambientes, suscita quando se fala da Igreja como um mistério. Teme-se, uma vez mais, a linguagem espiritualista e evasiva, que é muito pouco apta para o diálogo entre a fé e a cultura moderna. Além do mais, a ambiguidade do conceito de mistério permite o uso do mesmo num sentido vago e genérico, prestando-se à confusão por causa da diversidade de conteúdos e de significados que lhe podem ser dados.

«Na verdade, o próprio Concílio Vaticano II, na Constituição sobre a Igreja, dedicou todo o primeiro capítulo a falar sobre «O mistério da Igreja». Curiosamente, esse capítulo, suscitou adesões e elogios por parte precisamente da maioria dos teólogos e de muitos daqueles que hoje desconfiam da renovação da linguagem dos «mistérios» em eclesiologia e na vida cristã. Donde se conclui que o problema radica no significado e no uso que se faz da ideia de mistério (e de sagrado), quer na eclesiologia, quer na vida cristã.

«Neste capítulo, vou centrar-me na relação que existe entre Igreja e mistério, procurando clarificar ambos os conceitos. Procurarei mostrar o que é que queremos dizer quando falamos da Igreja como mistério, que implicações eclesiológicas advêm desse uso e que potenciais perigos e desvios podem ocorrer quando se fala do mistério da Igreja.


1. A complexidade da Igreja: evolução histórica

«O próprio conceito de Igreja é ambíguo e paradoxal. Com esse conceito, quer a comunidade dos cristãos, quer a hierarquia, podem expressar realidades muito diversas. O mesmo acontece quando nos referirmos à sua dimensão humana e divina, pois, frequentemente, não sabemos se nos estamos a referir à comunidade humana, susceptível duma análise empírica e imanente, ou à obra de Deus, a qual apenas pode ser captada e assumida a partir da fé. Poderá ser clarificador fazer uma reflexão sobre a Igreja, tendo presente a sua evolução histórica, nem que seja apenas de forma sumária e genérica. […]

(…)

«Cremos em Deus e apenas em Deus, n’Ele confiamos incondicionalmente e n’Ele colocamos as nossas esperanças.

«Tais afirmações não podem ser dirigidas à Igreja. Ainda que na Igreja exista uma dimensão divina (a presença do Espírito na vida da Igreja, a memória de Jesus Cristo) e que esta se transmita segundo estruturas que tornam possível a fidelidade às origens (o cânone das escrituras, a estrutura sacramental e apostólico-ministerial que configuram a sua «constituição divina»)[4], a Igreja em si não é divina. A Igreja é a congregação dos fiéis, humanidade eleita por Deus, grupo humano que provém da vida e da obra de Jesus de Nazaré e que se sabe dependente do Espírito. A Igreja é humana, não é objecto da nossa fé, tal como, por exemplo, o é Deus. Crer, só podemos crer em Deus; só de uma forma derivada não incondicional (limitada e relativa), analógica podemos crer no Homem e na Igreja. […]

(…)


«Na verdade, este carácter cristológico dos sacramentos, que se pretende ressaltar através da teologia da eficácia e da graça sacramental, está ameaçado por compreensões defeituosas do «ex opera operatum», ou seja, depende da atitude de fé e da disposição espiritual daquele que recebe os sacramentos. Os sacramentos não são acções mágicas, segundo as quais, de uma forma mecânica, a graça de Cristo se torna presente sempre que há um ministro ordenado, sem que a postura dos cristãos que celebram e recebem tenha alguma importância. Bem pelo contrário, enquanto não existir uma postura de fé, bem como atitudes e disposições coerentes com aquilo que se celebra, a oferta da graça dos sacramentos não pode ser actualizada. Cristo faz-se presente na celebração sacramental da Igreja, mas a comunicação real com Cristo, a experiência da graça, só acontece quando o homem se abre, a partir da fé, à comunicação de Deus. Isto obriga a que os sacramentos não devam ser dados indiscriminadamente, como às vezes ocorre na praxis pastoral hoje em dia. Quando, por parte dos cristãos, não acontecem as disposições requeridas (seja por falta de fé, seja por se encontrarem em condições éticas e morais que não correspondam à identificação com Cristo, ou porque falta o uso da razão e da maturidade necessárias para captar, compreender e assimilar o significado dos sacramentos), os sacramentos não devem ser administrados[5]. Não é suficiente referir a eficácia do sacramento para o administrar indiscriminadamente. A praxis duma administração massiva dos sacramentos está, em parte, determinada por uma concepção mágica, objectivante e coisificada que descura o seu carácter relacional e interpessoal.[6]

O mesmo se passa com o «in persona Christi», quando este tende a ser visto como uma qualidade independente da pessoa do ministro e não como uma função que ele exerce em nome da Igreja e dentro da comunidade eclesial. A presidência dos sacramentos não é um poder pessoal ou um privilégio que se outorga a algumas pessoas, mas uma capacitação para uma função pública da Igreja, através da qual o ministro representa a dimensão apostólico-ministerial da Igreja. O sacerdote não é mais cristão do que os outros, já que todos os baptizados actuam «in persona Christi» a partir do momento em que são identificados com Cristo e ungidos no baptismo e na confirmação. Todos os cristãos são «outro Cristo» (alter Christus) e a função do ministro é cristológica na medida em que é eclesial (actua «in persona Christi» apenas e na medida em que actua «in persona ecclesiæ», representando-a nas funções para as quais foi ordenado).

[…]

Prof. Juan Antonio Estrada, sj [1945-]
Professor de Teologia Dogmática na Faculdade de Teologia de Granada.







[1] Cf. «ENCICLOPÉDIA CATÓLICA POPULAR», Fonte (cons. a 20:12:2013): http://www.portal.ecclesia.pt/catolicopedia/artigo.asp?id_entrada=1810
[2] «Vida Nueva»: 1507 (1985) 2560.
[3] Card. J. Ratzinger-V. Messori, «Informe sobre la fe», Madrid 61985, 55-56. As diversas reacções a esta tomada de posição e as afirmações do Sínodo podem ser encontradas num número monográfico de Pastoral Misionera: 145 (1986) intitulado «Sínodo extraordinario y Vaticano II: ¿Marcha atrás o pasos adelante?».
[4] O significado da «constituição divina» da Igreja, desenvolvi-o no meu estudo «La Iglesia: ¿instituición o carisma?», Salamanca 1984, 141-68.
[5] A teologia da Igreja antiga dava tanta importância às atitudes das pessoas que recebiam os sacramentos (ao «opus operantis») como ao «opus operatum». Vejam-se os excelentes estudos de Víctor Codina, José Maria Castillo e Josep Vives no volume colectivo «Fe y justicia», Salamanca 1981. No segundo milénio, a tónica muda e passa a ter uma perspectiva mais jurídica que pneumática. Cf. R. Hotz, «Los sacramentos en nuevas perspectivas», Salamanca 1986, 79-130.
[6] Este carácter mágico da praxis sacramental foi denunciado por J. M. Castillo, «Símbolos de libertad», Salamanca 41985, 141-64.