O
mistério da Igreja
«O relatório final do último Sínodo
extraordinário dos bispos celebrado em 1985 [2ª Assembleia Geral Extraordinária por
altura do 20º Aniversário do Concílio Vaticano II, destinado a reviver e reavivar o espírito conciliar[1]]
dedica um capítulo inteiro a falar do mistério da Igreja. Nesse capítulo
fala-se de secularismo, distinguindo-o de secularização, e diz que há «sinais de
um regresso ao sagrado»: hoje em dia, existem «sinais de uma nova fome e de uma nova sede pelas coisas
transcendentes e divinas. Cooperemos, então, com esta volta atrás ao
sagrado. Para cooperar com ela e para superar o secularismo, temos de abrir
vias de acesso à dimensão do «divino», ao mistério, e oferecer aos homens do
nosso tempo os preâmbulos da fé».[2]
«Este regresso
a uma terminologia do mistério e esta insistência na dimensão
sagrada da vida, suscitou desconfianças e reacções as mais díspares. No já,
então, conhecido relatório denominado «Relatório sobre a fé», do cardeal Ratzinger, se falava, com
alguma reserva, do conceito de «povo de Deus» como título eclesiológico, e
louvava-se um outro conceito, o conceito de «corpo de Cristo» e o conceito de
«mistério»[3].
Diante desta postura, surge a desconfiança
que, hoje em dia em muitos ambientes, suscita quando se fala da Igreja como um
mistério. Teme-se, uma vez mais, a linguagem espiritualista e evasiva, que é
muito pouco apta para o diálogo entre a fé e a cultura moderna. Além do mais, a
ambiguidade do conceito de mistério permite o uso do mesmo num sentido vago e
genérico, prestando-se à confusão por causa da diversidade de conteúdos e de
significados que lhe podem ser dados.
«Na verdade, o próprio Concílio
Vaticano II, na Constituição sobre a Igreja, dedicou todo o primeiro capítulo a
falar sobre «O mistério da Igreja».
Curiosamente, esse capítulo, suscitou adesões e elogios por parte precisamente
da maioria dos teólogos e de muitos daqueles que hoje desconfiam da renovação
da linguagem dos «mistérios» em eclesiologia e na vida cristã. Donde se conclui
que o problema radica no significado e no uso que se faz da ideia de mistério
(e de sagrado), quer na eclesiologia, quer na vida cristã.
«Neste capítulo, vou centrar-me na
relação que existe entre Igreja e mistério, procurando clarificar ambos os
conceitos. Procurarei mostrar o que é que queremos dizer quando falamos da
Igreja como mistério, que implicações eclesiológicas advêm desse uso e que
potenciais perigos e desvios podem ocorrer quando se fala do mistério da
Igreja.
1. A complexidade da
Igreja: evolução histórica
«O próprio conceito de
Igreja é ambíguo e paradoxal.
Com esse conceito, quer a comunidade dos cristãos, quer a hierarquia, podem
expressar realidades muito diversas. O mesmo acontece quando nos referirmos à
sua dimensão humana e divina, pois, frequentemente, não sabemos se nos estamos
a referir à comunidade
humana, susceptível duma análise empírica e imanente, ou à obra de Deus, a qual apenas pode ser
captada e assumida a partir da fé. Poderá ser clarificador fazer uma reflexão
sobre a Igreja, tendo presente a sua evolução histórica, nem que seja apenas de
forma sumária e genérica. […]
(…)
«Cremos em Deus e
apenas em Deus, n’Ele confiamos incondicionalmente e n’Ele colocamos as nossas esperanças.
«Tais afirmações não podem ser
dirigidas à Igreja. Ainda que na Igreja exista uma dimensão divina (a presença
do Espírito na vida da Igreja, a memória de Jesus Cristo) e que esta se
transmita segundo estruturas que tornam possível a fidelidade às origens (o
cânone das escrituras, a estrutura sacramental e apostólico-ministerial que
configuram a sua «constituição divina»)[4],
a Igreja em si não é divina. A Igreja é
a congregação dos fiéis, humanidade eleita por Deus, grupo humano que provém da
vida e da obra de Jesus de Nazaré e que se sabe dependente do Espírito. A Igreja é
humana, não é objecto da nossa fé, tal como, por exemplo, o é Deus.
Crer, só podemos crer em Deus; só de uma forma
derivada ─
não incondicional (limitada e relativa), analógica ─ podemos
crer no Homem e na Igreja. […]
(…)
«Na verdade, este carácter
cristológico dos sacramentos, que se pretende ressaltar através da
teologia da eficácia e da graça sacramental, está ameaçado por compreensões defeituosas do «ex opera operatum»,
ou seja, depende da atitude de fé e da disposição espiritual daquele que recebe
os sacramentos. Os
sacramentos não são acções mágicas, segundo as quais, de uma forma
mecânica, a graça de Cristo se torna presente sempre que há um ministro
ordenado, sem que a postura dos cristãos que celebram e recebem tenha alguma
importância. Bem pelo contrário, enquanto não existir uma postura de fé, bem
como atitudes e disposições coerentes com aquilo que se celebra, a oferta da
graça dos sacramentos não pode ser actualizada. Cristo faz-se presente na
celebração sacramental da Igreja, mas a comunicação real com Cristo, a experiência
da graça, só acontece quando o homem se abre, a partir da fé, à comunicação de
Deus. Isto obriga a que os sacramentos não devam ser dados indiscriminadamente,
como às vezes ocorre na praxis pastoral hoje em dia. Quando, por parte dos cristãos, não acontecem as disposições requeridas
(seja por falta de fé, seja por se encontrarem em condições éticas e morais que
não correspondam à identificação com Cristo, ou porque falta o uso da razão e
da maturidade necessárias para captar, compreender e assimilar o significado
dos sacramentos), os sacramentos não devem ser administrados[5].
Não é suficiente referir a eficácia do sacramento para o administrar
indiscriminadamente. A praxis duma administração massiva dos sacramentos está,
em parte, determinada por uma concepção mágica,
objectivante e coisificada que descura o seu carácter relacional e interpessoal.[6]
O mesmo se passa com o «in
persona Christi», quando este tende a ser visto como uma qualidade
independente da pessoa do ministro e não como uma função que ele exerce em nome
da Igreja e dentro da comunidade eclesial. A
presidência dos sacramentos não é um poder pessoal ou um privilégio
que se outorga a algumas pessoas, mas uma capacitação para uma função pública
da Igreja, através da qual o ministro representa a dimensão
apostólico-ministerial da Igreja. O sacerdote não
é mais cristão do que os outros, já que todos os baptizados actuam «in persona
Christi» a partir do momento em que são identificados com Cristo
e ungidos no baptismo e na confirmação. Todos os cristãos são «outro Cristo»
(alter
Christus) e a função do ministro é cristológica na medida em que é
eclesial (actua «in persona Christi» apenas e na
medida em que actua «in persona ecclesiæ»,
representando-a nas funções para as quais foi ordenado).
[…]
Prof. Juan Antonio Estrada, sj
[1945-]
Professor
de Teologia Dogmática na Faculdade de Teologia de Granada.
[1]
Cf. «ENCICLOPÉDIA
CATÓLICA POPULAR», Fonte (cons. a 20:12:2013): http://www.portal.ecclesia.pt/catolicopedia/artigo.asp?id_entrada=1810
[2] «Vida
Nueva»: 1507 (1985) 2560.
[3] Card. J. Ratzinger-V. Messori, «Informe sobre la fe», Madrid 61985,
55-56. As diversas reacções a esta tomada de posição e as afirmações do
Sínodo podem ser encontradas num número monográfico de Pastoral Misionera: 145 (1986) intitulado «Sínodo extraordinario y Vaticano II: ¿Marcha atrás o pasos
adelante?».
[4]
O significado da «constituição divina» da Igreja, desenvolvi-o no meu estudo «La Iglesia:
¿instituición o carisma?», Salamanca 1984, 141-68.
[5]
A teologia da Igreja antiga dava tanta importância às atitudes das pessoas que
recebiam os sacramentos (ao «opus operantis») como ao «opus operatum». Vejam-se
os excelentes estudos de Víctor Codina, José Maria
Castillo e Josep Vives no volume colectivo «Fe y justicia»,
Salamanca 1981. No segundo milénio, a tónica muda e passa a ter uma perspectiva
mais jurídica que pneumática. Cf. R. Hotz, «Los
sacramentos en nuevas perspectivas», Salamanca 1986, 79-130.
[6]
Este carácter mágico da praxis sacramental foi denunciado por J. M. Castillo, «Símbolos de libertad», Salamanca 41985,
141-64.