Natal: um mito cristão verdadeiro
Há poucas semanas, com pompa e circunstância, o actual Papa (Bento XVI) mostrou-se
novamente teólogo ao lançar um livro: “A Infância de Jesus”. Apresentou a versão
clássica e tradicional que vê naqueles relatos idílicos uma narrativa
histórica. O livro deixou os teólogos perplexos [http://servicioskoinonia.org/relat/428.htm
Link de: Recensión bibliográfica sobre la obra de Benedicto XVI La infancia de
Jesús Carlos ESCUDERO FREIRE], pois a exegese bíblica, sobre estes textos, já há pelos menos 50 anos,
que mostrou que não se trata propriamente de um relato histórico, mas de alta e refinada
teologia, elaborada pelos evangelistas Mateus e Lucas (Marcos e João
nada dizem da infância de Jesus), para provar que Jesus era de facto o Messias,
o filho de David e o Filho de Deus.
Para esse fim, recorrem a géneros literários a fim de apresentar uma
mensagem, transmitida como se fossem histórias, mas que de fato não passam de
recursos literários; como, por exemplo, os magos do Oriente (representando os pagãos e os sábios), os pastores (os mais
pobres, considerados pecadores por lidarem com animais que os tornavam
impuros), a Estrela e o anjos (mostrando o carácter divino de Jesus), Belém, que não seria uma referência geográfica, mas teria um significado
teológico: o lugar onde, segundo as profecias, nasceria o Messias (diferente de
Nazaré, totalmente desconhecida na Bíblia, onde Jesus provavelmente teria
nascido de facto). E, assim, igualmente outros tópicos, como detalhadamente
analisei no meu livro «Jesus Cristo
Libertador» (capítulo VIII). Mas nada disso é muito importante,
porque exige conhecimentos muito especializados.
Importante mesmo é compreender que, face aos relatos tão comovedores do
Natal, estamos diante de um grandioso mito, entendido positivamente como os
antropólogos o fazem: o mito como a transmissão de uma verdade tão
profunda que somente a linguagem mítica, figurada e simbólica é adequada para
expressá-la. É exactamente o que o mito pretende. O mito é
verdadeiro quando o sentido que quer transmitir é verdadeiro e ilumina toda a
comunidade. Assim, o Natal é um mito cristão cheio de verdade, cheio
da proximidade de Deus e de familiaridade.
Nós hoje usamos outros mitos para mostrar a relevância de Jesus. Para mim é
de grande significação um mito antigo, que a Igreja aproveitou na liturgia do
Natal para revelar a comoção
cósmica face ao nascimento de Cristo. Aí se lê:
”Quando a noite estava no meio de seu curso e se fazia
profundo silêncio: então as folhas que farfalhavam pararam como mortas; então o
vento que sussurrava, ficou parado no ar; então o galo que cantava parou no
meio de seu canto; então as águas do riacho que corriam, paralisaram-se; então
as ovelhas que pastavam, ficaram imóveis; então o pastor que erguia o cajado
para golpeá-las, ficou petrificado; então nesse momento tudo parou, tudo
silenciou, tudo se suspendeu, porque nasceu Jesus, o salvador da humanidade e
do universo”.
O Natal quer comunicar-nos que Deus não é aquela figura severa e de olhos
penetrantes para perscrutar nossas vidas. Não. Ele surge como uma criança. Ela não julga;
só quer receber carinho e brincar.
Eis que do presépio
veio uma voz que me sussurrou: ”Oh,
criatura humana, por que tens medo de Deus? Ele não se fez criança? Não vês que
sua mãe enfaixou seus bracinhos e seu corpinho frágil? Não percebes que ela não
ameaça ninguém? Nem condena ninguém? Não escutas o seu chorinho doce? Mais que
ajudar, essa criança precisa ser ajudada e coberta de carinho, porque sozinha
não pode fazer nada; não sabes que ela é o Deus-conosco-como nós?”
E, aí, já não pensamos mais, mas damos lugar ao coração que sente, se
compadece e ama. Poderíamos fazer outra coisa diante desta Criança, sabendo que
é o Deus humanizado?
Talvez poucos escreveram tão bem sobre o Natal, sobre Jesus Criança, como o
poeta português Fernando Pessoa: ”Ele é a eterna criança, o Deus que faltava. Ele é o
divino que sorri e que brinca. É a criança tão humana que é divina”.
Mais tarde transformaram o Menino Jesus no São
Nicolau, no Santa Claus e, por fim, no Papai Noel. Pouco importam os
nomes, porque no fundo, o espírito de bondade, de proximidade e de Presente
divino está, de alguma forma, lá.
Acertado foi o editorialista Francis Church do jornal The New York Sun de 1897 respondendo a uma menina de 8 anos,
Virgínia, que lhe escreveu: “Prezado Editor: diga-me de verdade: o Papai Noel
existe?” E ele, sabiamente, respondeu:
“Sim, Virgínia, Papai Noel existe. Isto é tão certo
quanto a existência do amor, da generosidade e da devoção. E você sabe que tudo
isto existe de verdade, trazendo mais beleza e alegria à nossa vida. Como seria
triste o mundo se não houvesse o Papai Noel! Seria tão triste quanto não existir
Virgínias como você. Não haveria
fé das crianças, nem a poesia e a fantasia que tornam nossa existência leve e
bonita. Mas para isso temos que aprender a ver com os olhos do coração e do
amor. Então percebemos que não há nenhum sinal de que o Papai Noel não exista.
Se existe o Papai Noel? Graças a Deus ele vive e viverá sempre que houver
crianças grandes e pequenas que aprenderam a ver com os olhos do coração.”
Nesta festa, procuremos olhar com os olhos do
coração, pois todos fomos educados a olhar com os
olhos da razão. Por isso somos frios. Hoje vamos resgatar os direitos do coração caloroso: deixar-nos comover com as nossas crianças, permitir que sonhem, e encher-nos
de estremecimento diante da Divina Criança, que sentiu prazer e alegria ao
decidir ser um
de nós pela encarnação.
PS. Desejo aos leitores e leitoras de meu blog um Natal de esperança, pois
precisamos dela no meio de um mundo em voo cego rumo a um futuro incerto. Mas
uma Estrela como a de Belém nos mostrará um caminho salvador. Chamaram a Jesus
o Emanuel, o Deus que caminho connosco.
LEONARDO BOFF
24/12/2012