“Cristo e os pobres fizeram-me economista”
José Ignacio González Faus é santo e
símbolo de várias gerações que se alimentaram da sua teologia. Possui uma infinidade
de livros publicados, e é um teólogo sempre muito ligado à realidade. Não é um
teólogo de gabinete, mas daqueles que pisam no chão,
sendo muito atento ao grito dos pobres. Disto surgiu o seu livro, “El amor en
los tiempos de cólera... económica”, o primeiro co-editado pela
editora Khaf e Religión Digital.
“Muitas pessoas engoliram que essa questão da crise económica é como as
inundações ou os terramotos e, por isso, em muitos a cólera é simplesmente
resignação”, lamenta o autor, que por sua vez confessa que tem receio que em
Espanha haja uma explosão social “como a Semana Trágica de Barcelona de 1910”.
“Quando existiu a ameaça comunista, o sistema assustou-se e foi quando, então,
se vestiu um pouco como o lobo se vestiu de Capuchinho e tornou-se o Estado social”, recorda Faus. Agora, que o capitalismo mostrou “sua verdadeira
cara”, esqueceu-se de que “a propriedade não é um direito absoluto” (ao
contrário do que diz a Doutrina Social da Igreja): “o
direito primeiro é que os bens da terra são para todos”.
[A entrevista é de José Manuel Vidal, publicada
no sítio Religión Digital, 19-06-2013. A tradução é do Cepat.
Eis a entrevista.]
O amor em tempos de cólera...ECONÓMICA!_G FAUS |
Vivemos tempos de cólera?
− Parece-me que sim. Cólera reprimida. O que acontece é que muitas pessoas
engoliram que essa questão da crise económica é como as desgraças sociais (como
as inundações, como os terramotos...). Por isso, em
muitos a cólera é simplesmente resignação. Porém, na medida em que vamos
despertando, vamos abrindo os olhos e tomando consciência, por exemplo, dos
casos de corrupção. A mera resignação torna-se indignação. E é muito mais fácil
dar o passo da indignação à cólera. Em meu livro, pus cólera para se vincular
com o romance de García Márquez, mas poderia ter sido indignação.
Um dos textos que aparece no livro é uma carta que escrevi ao senhor Rajoy, assim que foi
eleito, na qual expressava o meu medo de que isto acabe como a Semana Trágica
de Barcelona de 1910. Porque com os acontecimentos sociais acontece isso: suporta-se,
suporta-se, as pessoas não se queixam, parece que nada acontece... E, de
repente, há uma explosão impressionante, e queima-se o que se
encontra para queimar. Eu continuo com este medo.
(…)
Existem também possibilidades de que o modelo de
Igreja de Jesus ganhe impulso?
− Sim. No Vaticano II era esperada uma renovação eclesial revolucionária
e não veio, porque antes talvez faltasse, dentro da Igreja, o que chamei “uma revolução cristológica”. Agora, os
cinquenta anos desde o Vaticano II
serviram para toda a Igreja católica,
sobretudo em Espanha (que era um país que estava não já em Trento, mas antes de Trento), para que a figura de Jesus permanecesse a que sustentou a
fé de muitos cristãos, e chamasse muitos outros. Como
disse o amigo Pagola, Jesus é o grande tesouro que nós, os crentes, temos. Então, quem entrar no
reviver de Jesus, terá que
terminar na linha do Papa.
O que acontece com muitos desses membros da hierarquia,
e não só, é que, possivelmente, não conhecem Jesus (…)
Por que é que falta essa capacidade
profética na hierarquia espanhola? Existe algum
tipo de cumplicidade? Desejam abafar ou querem conseguir outras coisas em troca
de não denunciar explicitamente?
− Pode ser que existam cumplicidades, sim. Algo assim como “se eu faço uma
lei do aborto que seja do seu gosto, você não denuncia nossa política económica”.
Acredito também que a maioria da hierarquia, neste ponto, teve uma formação
muito deficiente, porque tudo isto é um problema moral teológico e cristológico: o Deus dos pobres, Cristo que anuncia o Reino dos pobres,
etc. Entretanto, na teologia e na moral que se estudava nos lugares que foram
fontes para muitos destes bispos, estes assuntos não eram abordados para nada.
Abordava-se o catecismo da Igreja
e pouca coisa mais.
E para os que, sim, esses assuntos eram abordados,
eram acusados de “horizontalistas”?
− Sim, isso e tudo mais. Contudo, Jesus de
Nazaré foi o mais horizontalista que houve neste mundo, ao mesmo tempo, era o mais verticalista (porque
a paternidade de Deus contém o
que há de mais vertical). É daí que se chega à horizontalidade e fraternidade entre
os homens. Eu gosto muito de citar uma frase de João de Ávila, quando
introduzia o pai-nosso: “Quem não quer o nosso, não quer o Pai”. E o nosso
somos nós todos, os seres humanos.
Essa é uma das heresias que você cita em seu outro
livro, da editora Trotta, “Herejías del
catolicismo actual”?
− De alguma maneira sim. Nesse livro há duas heresias que, de alguma
maneira, podem tocar mais o tema social, junto à divinização do Papa, o esquecimento do Espírito Santo, a deformação da cruz e da eucaristia, e muitas
outras. A primeira seria a eminente dignidade dos pobres na Igreja, e a segunda corresponderia à
doutrina dos Evangelhos sobre o
dinheiro. Existe um sermão, que alguns dizem que foi escrito por São Vicente de
Paulo, que diz que Cristo
fundou a Igreja para mais
ninguém a não ser os pobres (o contrário deste mundo, que está estruturado
apenas para os ricos). Então, se os ricos querem entrar na Igreja, terão que entrar pela porta dos pobres. Já faz
tempo que isto foi escrito, mas se você disser isto neste momento, é chamado de
comunista ou dizem que você se vendeu, que foi enganado...
No Evangelho também há
frases cristalinas: “A cobiça é idolatria”
(e é preciso levar em conta que o pior pecado na tradição bíblica era o falso Deus). O primeiro falso Deus é o dinheiro. E Jesus não poderia ter dito de maneira
mais clara: “Não se pode servir a Deus
e ao dinheiro”. Hoje, nós compreendemos mal a palavra servir, porque as pessoas
mudam de partido como quem muda de empresa, mas servir naqueles tempos era um
verbo muito forte. No tempo de Jesus, o escravo era para toda a vida.
Além disso, Jesus utiliza em
aramaico a palavra “Mammón” (também
comento isto no livro ‘Herejías del
catolicismo actual’),
, que vem da palavra Amém (que significa crer).
Ou seja, que o dinheiro é tratado como um deus. Apesar disso, na Igreja perdeu-se a consciência de que a raiz de todos
os males é a paixão pelo dinheiro. Estas duas heresias estão no
“catálogo” que tentei fazer a respeito dos “desenfoques” que existem no
catolicismo actual. Eu gostaria fazer outro livro, um comentário ao Credo, que seria a metade positiva da laranja para esta metade
negativa. Estamos nisso.
Você apercebe-se uma mudança de ares, em Roma, com a
chegada de Francisco?
− Tenho a impressão de que sim. A maneira como começou como arcebispo em
Buenos Aires, deixando o palácio episcopal e indo morar no piso de cima dos
escritórios, fazem pensar que sim.
Isso é opção pelos pobres ou é austeridade jesuítica?
− É um desejo de viver como os pobres. O voto de pobreza não é somente mortificar-se
e privar-se das coisas porque sim,
mas sabendo que neste mundo, se vivemos de determinada maneira, os bens da
terra não podem chegar a todos. Nesse sentido, consiste em começar a viver como aqueles que vivem da
pior forma ou, ao menos, próximo aos que vivem com menos. Em Buenos
Aires, ele teve suas experiências e também parece que foi muito amigo dos
padres das vilas miséria. Eu visitei
as vilas miséria de Buenos Aires, e
ali há padres admiráveis. Tudo isso, não sei em que momento de sua vida, nem
como, mas imagino que o influenciou bastante. Também não sei o que viveu no
momento da crise
argentina e de tudo o que lá ocorreu, que fez com que os argentinos
fossem os primeiros a se desenganarem do Fundo Monetário Internacional
(porque, quando não mais se importaram com o FMI, as coisas melhoraram).
Acredito que
sim, pode haver uma mudança. Principalmente, porque uma de suas primeiras
frases foi: “Como
eu gostaria de uma Igreja pobre
e para os pobres!”. Para isso nós podemos ajudá-lo. Veremos, porque
o Vaticano também tem muitos interesses.
(…)
José Ignacio
González Faus, sj
[14 pp.]