teologia para leigos

14 de julho de 2013

PROPRIEDADE PRIVADA ABSOLUTA É ANTI-CRISTÃ [G. FAUS]

“Cristo e os pobres fizeram-me economista”


José Ignacio González Faus é santo e símbolo de várias gerações que se alimentaram da sua teologia. Possui uma infinidade de livros publicados, e é um teólogo sempre muito ligado à realidade. Não é um teólogo de gabinete, mas daqueles que pisam no chão, sendo muito atento ao grito dos pobres. Disto surgiu o seu livro, El amor en los tiempos de cólera... económica, o primeiro co-editado pela editora Khaf e Religión Digital.





“Muitas pessoas engoliram que essa questão da crise económica é como as inundações ou os terramotos e, por isso, em muitos a cólera é simplesmente resignação”, lamenta o autor, que por sua vez confessa que tem receio que em Espanha haja uma explosão social “como a Semana Trágica de Barcelona de 1910”.

“Quando existiu a ameaça comunista, o sistema assustou-se e foi quando, então, se vestiu um pouco como o lobo se vestiu de Capuchinho e tornou-se o Estado social”, recorda Faus. Agora, que o capitalismo mostrou “sua verdadeira cara”, esqueceu-se de que “a propriedade não é um direito absoluto” (ao contrário do que diz a Doutrina Social da Igreja): “o direito primeiro é que os bens da terra são para todos”.

[A entrevista é de José Manuel Vidal, publicada no sítio Religión Digital, 19-06-2013. A tradução é do Cepat.
Eis a entrevista.]



O amor em tempos de cólera...ECONÓMICA!_G FAUS



Vivemos tempos de cólera?

− Parece-me que sim. Cólera reprimida. O que acontece é que muitas pessoas engoliram que essa questão da crise económica é como as desgraças sociais (como as inundações, como os terramotos...). Por isso, em muitos a cólera é simplesmente resignação. Porém, na medida em que vamos despertando, vamos abrindo os olhos e tomando consciência, por exemplo, dos casos de corrupção. A mera resignação torna-se indignação. E é muito mais fácil dar o passo da indignação à cólera. Em meu livro, pus cólera para se vincular com o romance de García Márquez, mas poderia ter sido indignação. Um dos textos que aparece no livro é uma carta que escrevi ao senhor Rajoy, assim que foi eleito, na qual expressava o meu medo de que isto acabe como a Semana Trágica de Barcelona de 1910. Porque com os acontecimentos sociais acontece isso: suporta-se, suporta-se, as pessoas não se queixam, parece que nada acontece... E, de repente, há uma explosão impressionante, e queima-se o que se encontra para queimar. Eu continuo com este medo.

(…)

Existem também possibilidades de que o modelo de Igreja de Jesus ganhe impulso?

− Sim. No Vaticano II era esperada uma renovação eclesial revolucionária e não veio, porque antes talvez faltasse, dentro da Igreja, o que chamei “uma revolução cristológica”. Agora, os cinquenta anos desde o Vaticano II serviram para toda a Igreja católica, sobretudo em Espanha (que era um país que estava não já em Trento, mas antes de Trento), para que a figura de Jesus permanecesse a que sustentou a fé de muitos cristãos, e chamasse muitos outros. Como disse o amigo Pagola, Jesus é o grande tesouro que nós, os crentes, temos. Então, quem entrar no reviver de Jesus, terá que terminar na linha do Papa.

O que acontece com muitos desses membros da hierarquia, e não só, é que, possivelmente, não conhecem Jesus (…)







Por que é que falta essa capacidade profética na hierarquia espanhola? Existe algum tipo de cumplicidade? Desejam abafar ou querem conseguir outras coisas em troca de não denunciar explicitamente?

− Pode ser que existam cumplicidades, sim. Algo assim como “se eu faço uma lei do aborto que seja do seu gosto, você não denuncia nossa política económica”. Acredito também que a maioria da hierarquia, neste ponto, teve uma formação muito deficiente, porque tudo isto é um problema moral teológico e cristológico: o Deus dos pobres, Cristo que anuncia o Reino dos pobres, etc. Entretanto, na teologia e na moral que se estudava nos lugares que foram fontes para muitos destes bispos, estes assuntos não eram abordados para nada. Abordava-se o catecismo da Igreja e pouca coisa mais.

E para os que, sim, esses assuntos eram abordados, eram acusados de “horizontalistas”?

− Sim, isso e tudo mais. Contudo, Jesus de Nazaré foi o mais horizontalista que houve neste mundo, ao mesmo tempo, era o mais verticalista (porque a paternidade de Deus contém o que há de mais vertical). É daí que se chega à horizontalidade e fraternidade entre os homens. Eu gosto muito de citar uma frase de João de Ávila, quando introduzia o pai-nosso: “Quem não quer o nosso, não quer o Pai”. E o nosso somos nós todos, os seres humanos.

Essa é uma das heresias que você cita em seu outro livro, da editora Trotta, “Herejías del catolicismo actual”?

− De alguma maneira sim. Nesse livro há duas heresias que, de alguma maneira, podem tocar mais o tema social, junto à divinização do Papa, o esquecimento do Espírito Santo, a deformação da cruz e da eucaristia, e muitas outras. A primeira seria a eminente dignidade dos pobres na Igreja, e a segunda corresponderia à doutrina dos Evangelhos sobre o dinheiro. Existe um sermão, que alguns dizem que foi escrito por São Vicente de Paulo, que diz que Cristo fundou a Igreja para mais ninguém a não ser os pobres (o contrário deste mundo, que está estruturado apenas para os ricos). Então, se os ricos querem entrar na Igreja, terão que entrar pela porta dos pobres. Já faz tempo que isto foi escrito, mas se você disser isto neste momento, é chamado de comunista ou dizem que você se vendeu, que foi enganado...

No Evangelho também há frases cristalinas: “A cobiça é idolatria” (e é preciso levar em conta que o pior pecado na tradição bíblica era o falso Deus). O primeiro falso Deus é o dinheiro. E Jesus não poderia ter dito de maneira mais clara: “Não se pode servir a Deus e ao dinheiro”. Hoje, nós compreendemos mal a palavra servir, porque as pessoas mudam de partido como quem muda de empresa, mas servir naqueles tempos era um verbo muito forte. No tempo de Jesus, o escravo era para toda a vida. Além disso, Jesus utiliza em aramaico a palavra “Mammón” (também comento isto no livro ‘Herejías del catolicismo actual’),


, que vem da palavra Amém (que significa crer). Ou seja, que o dinheiro é tratado como um deus. Apesar disso, na Igreja perdeu-se a consciência de que a raiz de todos os males é a paixão pelo dinheiro. Estas duas heresias estão no “catálogo” que tentei fazer a respeito dos “desenfoques” que existem no catolicismo actual. Eu gostaria fazer outro livro, um comentário ao Credo, que seria a metade positiva da laranja para esta metade negativa. Estamos nisso.

Você apercebe-se uma mudança de ares, em Roma, com a chegada de Francisco?

− Tenho a impressão de que sim. A maneira como começou como arcebispo em Buenos Aires, deixando o palácio episcopal e indo morar no piso de cima dos escritórios, fazem pensar que sim.

Isso é opção pelos pobres ou é austeridade jesuítica?

− É um desejo de viver como os pobres. O voto de pobreza não é somente mortificar-se e privar-se das coisas porque sim, mas sabendo que neste mundo, se vivemos de determinada maneira, os bens da terra não podem chegar a todos. Nesse sentido, consiste em começar a viver como aqueles que vivem da pior forma ou, ao menos, próximo aos que vivem com menos. Em Buenos Aires, ele teve suas experiências e também parece que foi muito amigo dos padres das vilas miséria. Eu visitei as vilas miséria de Buenos Aires, e ali há padres admiráveis. Tudo isso, não sei em que momento de sua vida, nem como, mas imagino que o influenciou bastante. Também não sei o que viveu no momento da crise argentina e de tudo o que lá ocorreu, que fez com que os argentinos fossem os primeiros a se desenganarem do Fundo Monetário Internacional (porque, quando não mais se importaram com o FMI, as coisas melhoraram).

 Acredito que sim, pode haver uma mudança. Principalmente, porque uma de suas primeiras frases foi: “Como eu gostaria de uma Igreja pobre e para os pobres!”. Para isso nós podemos ajudá-lo. Veremos, porque o Vaticano também tem muitos interesses.

(…)


José Ignacio González Faus, sj

[14 pp.]