«Ainda que tenha sido reconhecido em todo o mundo pela sua actividade
teológica, Gutiérrez nunca esqueceu a primazia do seu trabalho pastoral entre os pobres e entre os
insignificantes, uma actividade na qual colocou bem alto as implicações políticas do autêntico compromisso espiritual.
As obras de Gutiérrez enfrentam a questão ‘como viver como cristãos quando uma grande parte do mundo vive na indigência’.
Apesar de escritas originalmente em 1984, as suas palavras adquirem hoje uma
enorme relevância, em que 19% da humanidade luta
por sobreviver com menos de um dólar por dia, 48% com menos de dois dólares por
dia e dois terços do planeta vivendo sob
diversas formas de pobreza. À luz destes números, os textos de
Gutiérrez atiram, não só os custos económicos, mas também os custos humanos, à
cara daqueles que hão-de prestar contas na hora da verificação da sua
fidelidade à mensagem evangélica, num mundo globalizado.» [D. G. Groody]
Libertação e desenvolvimento
- um desafio à teologia
O tema do nosso Seminário é «Libertação e Desenvolvimento». São pontos
capitais para a compreensão da realidade latino-americana. A relação entre
ambos já deu lugar a muitos estudos e a não poucas controvérsias.
Apresentar um ou o outro tópico ─ ou os dois ─ como saídas para a pobreza e
para a injustiça que se vive na América Latina pressupõe uma percepção dessa
mesma situação e um modo de a analisar. Não estou a falar em abstracto: o
estado em que as coisas estão condiciona a vida quotidiana do povo
latino-americano e orienta o rumo que a solidariedade para com os pobres deve
seguir, a fim de construir um mundo justo para todos. Essa situação condiciona,
também, a missão evangelizadora da Igreja. De facto, o evangelho dirige-se a
pessoas concretas: da sua situação histórica chegam-nos desafios concretos que
não podemos desprezar e que estimulam a nossa inteligência da fé. É da estreita
inter-relação entre estes diferentes elementos que surge a teologia da
libertação.
É por isso que nos interessam, sobretudo, as mudanças
que ocorrem no campo social e as
mudanças de análise
dessas realidades. Foi isso que aconteceu, entre nós, nos últimos anos.
Trata-se de realidades e perspectivas que, durante o correr dos anos, sofreram
modificações, por vezes, radicais. As nossas
categorias e os nossos pontos de referência já não podem ser os mesmos.
Impõe-se um novo ângulo de visão e, ao mesmo tempo, uma nova prospectiva. Este
nosso Seminário, que se situa no terreno das ciências sociais, quer ser uma
contribuição para essa missão. Foi por isso que decidimos convidar, quer velhos
peritos nestas lides, quer jovens investigadores.
Sem querer interferir naquilo que terá de mais específico o nosso diálogo,
cumpre-me dizer algumas palavras sobre o interesse das ciências sociais para
aqueles cristãos que nestes últimos anos encontraram na fé ─ e na reflexão sobre a fé ─ uma fonte inspiradora para o seu compromisso com os
pobres e os oprimidos do nosso continente. Solidariedade que, para ser eficaz, requer um adequado conhecimento da realidade sócio-económica da América Latina.
1.
O desafio da
pobreza
Nas últimas décadas da vida da
Igreja latino-americana surgiu um facto evidente e determinante: o modo de conceber o anúncio do evangelho muda a
partir do momento em que se adquire uma nova
consciência acerca da «miséria desumana» (Medellín, Pobreza, 1) em
que vive a imensa maioria da população. A pobreza continua a ser o grande
desafio ao testemunho cristão no nosso continente: as tentativas de, antes de
Puebla e, também, antes de Santo Domingo, de dar pouca atenção a esta realidade
e de a orientar para outras interrogações foram vãs. A realidade e as
exigências evangélicas coligaram-se a fim de cortar o passo a toda a tentativa
de escapatória.
Por conseguinte, a reflexão teológica não
poderia, também, continuar a ser como até aí. A reflexão teológica
rasga caminhos inéditos que abrem ─ não sem dificuldades e incompreensões ─ fecundas possibilidades para a proclamação do Reino de Deus, tal como
nestes últimos anos se tem visto. […]
[…]
b) Pobreza e reflexão teológica
A meados do século XX, estes acontecimentos revitalizaram e conduziram por
novos caminhos o tema da pobreza na Igreja universal. Refiro-me à reivindicação dum autêntico e radical testemunho de pobreza
que surgiu em comunidades religiosas recentemente criadas, em círculos
preocupados com o afastamento da fé ou da doutrina social da Igreja face ao
mundo operário, mas reivindicação também nascida em certas correntes
espirituais e pastorais. Esta inquietação expressou-se, de modo exigente e
profético, no célebre apelo de João XXIII ao Concílio: ser a Igreja de todos e em especial a Igreja dos pobres (11 de
Setembro de 1962).
Por razões mais do que conhecidas e até fáceis de compreender, o Vaticano II não levou suficientemente a sério a proposta do
Papa João, ainda que essa proposta tenha estado suficientemente
presente durante os trabalhos conciliares. Porém, não sem vacilações e
desconfianças iniciais, essa proposta foi ouvida no continente maioritariamente
pobre e ao mesmo tempo cristão que é a América Latina. Diante da presença do
pobre e a ela estreitamente unido, o projecto de uma Igreja dos pobres
estimulou a reflexão teológica.
É por isso que, em Julho de 1967, se distinguiram três acepções no termo
pobreza: a pobreza real (ou
material) como um mal; a pobreza espiritual
(enquanto infância espiritual), e a pobreza como
solidariedade com o pobre e
protesto contra a
situação em que vive. Esta postura pressupõe:
(1) uma certa análise da pobreza e suas
causas; mas implica também
(2) um certo fundamento bíblico, quer da
rejeição dessa desumana situação, quer do modo de entender a pobreza
espiritual; por fim, ─ para lá de qualquer idealismo ─, especifica
(3) as razões para o compromisso cristão com a
pobreza.
Este contributo é acolhido, um ano depois, em Medellín
(1968) e clarifica o tipo de compromisso que muitos cristãos haviam
começado a assumir. Desta distinção surgirá, no seio de comunidades cristãs, ─ entre Medellín e Puebla (1979) ─ a expressão «opção
(solidariedade e protesto) preferencial (pobreza
espiritual) pelos pobres (pobreza real)». Opção essa que se constituiu na
direcção orientadora da acção pastoral da Igreja e num importante guião para o
modo de ser cristão, ou seja, para aquilo que denominamos espiritualidade, a maior e mais fecunda
preocupação da teologia da libertação. Como é sabido, esta orientação entrou
pela porta larga no Magistério eclesiástico universal. […]
[…]
a.
Questões abertas
As perguntas afloram às catadupas. Que possibilidades têm os povos pobres
de se libertarem dos condicionamentos presentes no âmbito internacional e que
os impede de construir um mundo humano e justo? Quem são os novos actores
sociais, quem são actualmente os pobres? Serão, os países do Sul, capazes de
apresentar e levar por diante projectos próprios que respeitem a sua tradição e
as suas necessidades? Como assegurar que as nações pobres possam ter acesso ao
conhecimento científico e tecnológico, que, hoje, traça uma importante
fronteira entre pobreza e riqueza? Que balanço devemos fazer da discussão sobre
a teoria da dependência? Que papel desempenha a memória destes povos no seu
combate pela justiça? Que utopias e caminhos mobilizadores para os que querem
sair duma situação de marginalizados e de abandonados? Que relação
estabelecemos, hoje, entre libertação e desenvolvimento?
Nenhuma pergunta formulada deixa de conter em si o esboço da respectiva
resposta: a perplexidade não consegue fazer perguntas, não tem força para
tanto. No entanto, é evidente que o grosso do trabalho ainda está por fazer.
Quanto a isto, na América Latina existem buscas interessantes: gostaríamos de
fazer eco delas neste Seminário. Elas são decisivas para dar eficácia histórica à defesa da vida e ao
estabelecimento dum mundo humano e justo. A única maneira sadia de falar de
teorias sociais é estarmos bem conscientes de que os comportamentos, que nelas
se inspiram, afectam a existência quotidiana de seres humanos de um modo muito
concreto.
Já falamos da importância que estas questões têm para a missão
evangelizadora e para a teologia. Aquelas questões situam-se no terreno das
ciências sociais, mas elas não são ideologicamente neutras. Os temas que
abordam são demasiado delicados e complexos para que possam ser neutras. É
importante ter isto bem claro, de modo a que não deixemos passar
sub-repticiamente e acriticamente aquilo que depende de tomadas de posição
humanas e éticas que são inevitáveis.
Por outro lado, o conhecimento da realidade
socioeconómica é de capital importância para a inteligência da fé.
Porém, isso não nos deve impedir de perceber que estamos ante disciplinas que
têm o seu âmbito e o seu método próprios. Não ter isso em conta é confundir
reflexão teológica e ciências sociais e, por consequência, condenarmo-nos à
ineficácia. Estamos longe de propugnar uma atitude
asséptica da teologia face à economia ou à sociologia. Importante
é fazer com que os instrumentos de análise vão o mais longe possível de que são
capazes sem nenhum tipo de interferência e que guardemos a distância
necessária, a fim de estarmos atentos ao conjunto dos desafios que, da
realidade, nos virão.
É válido, também aqui, o princípio ‘distinguir para unir’. Que a
nossa postura seja de interesse e respeito no que concerne à interpretação
social dos factos: temos muito a aprender dela. Só assim é que poderemos
estabelecer as relações fecundas que o conhecimento e a acção transformadora
das realidades concretas, exigentes e em mudança requerem. Digamos: urge a
tarefa de unir.
Gustavo Gutiérrez, op [2003]
[pp. 8]