teologia para leigos

24 de maio de 2012

ENTÃO SAIREMOS!


Se ficar no euro significar a destruição da Grécia, sairemos. 

Sofia Sakorafa [ex-Pasok], no Partido Syriza



Sofia Sakorafa, uma popular deputada do Syriza que veio do Pasok.

A questão da saída/fim do euro está cada vez mais presente no debate, até porque a realidade imparável de mais de 20% de desemprego e de colapso económico causados pela austeridade tem muita força, acelerando a erosão de duas décadas de propaganda ideológica e de complacência intelectual por todas as periferias. Antes de revisitar alguns dos seus termos, gostaria de dizer que do ponto de vista político me parece haver convergências fundamentais e mobilizadoras a montante em partidos e movimentos transformadores e plurais – a necessidade de uma profunda reestruturação da dívida, usando-a também como instrumento negocial de periferias que recusam a austeridade imposta de fora e aceite pelas elites de dentro; a necessidade de não anatematizar nenhuma posição a jusante, descrevendo-a como “nacionalista” ou como “euro-idiota”, por exemplo.

A jusante há então muito que só o debate e a aceleração da história clarificarão, quer sobre a possibilidade de usar esta arma negocial e ficar dentro do euro, quer sobre as vantagens de ficar no euro mesmo que algumas das reformas propostas sejam aceites – penso na emissão de um arremedo de euro-obrigações, a tal metáfora de um Plano Marshall que até num PSD desmemoriado faz o seu tardio caminho, assim se reconhecendo implicitamente o fracasso da austeridade.

O problema é que neste contexto político e nestas estruturas europeias, no quadro de um tipo de federalismo que já é o nosso desde que aderimos ao euro e transferimos soberania para instituições supranacionais anti-democráticas, estamos mais perto do projecto de um Trichet para reforçar os mecanismos de governo directo, dito de excepção, das periferias pelo centro europeu do que qualquer outra coisa. De resto, como se conseguirá tocar num BCE pirómano ou resolver o problema dos desequilíbrios estruturais nas relações económicas, o que exigiria, por exemplo, quebrar as sacrossantas e liberais regras do mercado interno, por forma a permitir políticas de discriminação fiscal e outras políticas industriais?

Encarar o fim de um euro que se revela irreformável de cima a baixo é encarar um processo complexo, tantas são as variáveis em jogo e as modalidades de saída e de reconstrução de um princípio de coordenação monetária entre nações soberanas: taxas de câmbio fixas, mas ajustáveis, em função dos desequilíbrios, o que exige controlo de capitais e coordenação entre bancos centrais e entre estes e um qualquer fundo monetário europeu, por exemplo.

Entretanto, podemos considerar alguns exercícios comparativos que têm sido apresentados, usando sobretudo a Grécia, a Argentina e a Islândia. Já sabemos que estes dois últimos países, muito diferentes entre si, até em dimensão, recuperaram de uma crise brutal porque enfrentaram os credores internacionais, usaram a desvalorização cambial e reinstituíram controlos de capitais. Um tripé com várias declinações institucionais potenciais.

São exemplos que nos dizem algo que já tínhamos obrigação de saber pela experiência portuguesa na democracia até à década de noventa: a desvalorização cambial pode ser um instrumento muito útil de ajustamento, no quadro do controlo de capitais, para corrigir desequilíbrios externos, aumentando exportações e diminuindo importações e gerando crescimento e emprego, lembrando que o pico do desemprego foi inferior a 8% nesse país distante.

Assim se protegem muito mais os trabalhadores e a recuperação do seu poder de compra do que com a alternativa da desvalorização pela austeridade, do desemprego de um milhão de pessoas no nosso país, da desregulamentação laboral ou do sacrifício dos funcionários públicos portugueses, que no euro já perderam 30% do seu poder de compra, com os privados a copiar sem que o desemprego dê sinais de abrandar, claro.

A comparação da Grécia com a Argentina, em termos de capacidade exportadora, ou com a Islândia, em termos de recuperação económica e de quebra do poder de compra dos salários, é esclarecedora. Três gráficos ilustrativos:





Note-se que a recuperação da capacidade exportadora argentina foi só uma parte, e não a mais importante, de uma recuperação que dependeu essencialmente do mercado interno.






Aconselha-se então a leitura das análises comparativas dos economistas Bill MitchellMike Weisbrot, versões heterodoxas com convergências com as análises mais convencionais de Krugman ou de Roubini (em português). É claro que a Argentina e a Islândia tinham e têm moeda própria. A Argentina tinha e tem um sistema financeiro relativamente pouco integrado, mas a Islândia não.
Os custos de transição para a nova moeda são certamente elevados no curto prazo, muito dependendo da capacidade política interna e externa revelada numa situação em que não há saídas fáceis.

O fim do euro nas periferias poderá facilitar uma ruptura com o processo de financeirização, com o comando de bancos ditos privados, com a “liberdade” irrestrita de capitais e com todo o cortejo de desequilíbrios económicos assim gerados, colocando a banca pública e o Banco Central de novo no centro de uma acção monetária e financeira mais funcionais.

Sem combater a maldição do financiamento por poupança externa, associada a uma moeda demasiado forte num quadro de liberalização financeira, continuar-se-á numa trajectória de dependência que acabará com qualquer vestígio de soberania democrática e de possibilidade de desenvolvimento.

Encarar a possibilidade desta experiência monetária ter um fim nacional criará outra margem de manobra política para forçar a renegociação de tudo o que conta com coragem, dignidade e esperança.

20 Maio 2012

16 de maio de 2012

A REALIDADE É QUE ESTÁ ERRADA...

entregues à bicharada...

 


A realidade é que falha, não a teoria


Taxa de Desemprego[vermelho], Subsd. de Desemprego[azul] e RSI[verde]



De acordo com um estudo recente do Observatório das Desigualdades, é cada vez maior a percentagem de desempregados que não beneficia de nenhum tipo de subsídio de desemprego. De facto, em apenas dois anos, o número de desempregados com acesso a esta prestação diminuiu de 64% para 54%, o que significa que quase metade não dispõe hoje de qualquer apoio.

No mesmo período, o número de beneficiários do Rendimento Social de Inserção [RSI] foi reduzido cerca de 20% (430 mil para 340 mil), em resultado das restrições sucessivas que foram sendo introduzidas nesta prestação.

Tudo isto enquanto o desemprego galopou para níveis históricos (de 10,6% em Março de 2010 para os 14,0% registados em Dezembro de 2011) e se apertou vigorosamente a tripla tenaz da austeridade (aumento de impostos, corte nos salários e contracção do Estado social).

O objectivo político desta estratégia é claro: constituir um volumoso exército de mão-de-obra completamente desprotegida, capaz de pressionar eficazmente o mercado de trabalho e assim comprimir os salários, aumentando por essa via os níveis de produtividade e competitividade da economia portuguesa.

É este o modelo em que Vítor Gaspar e Santos Pereira religiosamente acreditam e é com ele que o governo espera relançar a economia e ultrapassar a crise. Não lhes ocorre, evidentemente, que a procura e o consumo interno são factores cruciais e que deles depende, de forma decisiva, a sobrevivência de um tecido empresarial que é composto essencialmente por pequenas e médias empresas e que se vai esboroando às mãos da via austeritária, gerando um desemprego cada vez maior e a consequente perda de receitas fiscais e aumento de despesas (que comprometem, em última instância, o próprio cumprimento do memorando assinado com a troika).[1]

Mas a estratégia de empobrecimento subjacente a esta doutrina constitui, além do mais, um fracasso anunciado: não só Portugal tem já dos mais (clicar aqui) baixos salários da União Europeia como não seremos, duradouramente, capazes de competir com as economias emergentes (nem com a compressão salarial a que estão a ser igualmente sujeitos países mais próximos). Nada que trave, porém, as convicções dos ministros da Economia e Finanças, que nos garantiram – respectivamente – que 2012 (clicar aqui) «marcaria o fim da crise», depois do famoso (clicar aqui) «ponto de viragem», que deveria ter ocorrido há cerca de quatro meses atrás.

Nuno Serra
Ladrões de Bicicletas, 10:V:2012




[1] A surpresa de Vítor Gaspar e do Secretário de Estado do Orçamento, Luís Morais Sarmento, perante o (clicar AQUI)  «inesperado» comportamento do (clicar AQUI) desemprego, só se explica pela incapacidade que revelam em questionar a doutrina que os cega. Tal como também só desse modo é possível entender que continuem a insistir na tecla da «rigidez» do mercado de trabalho, por mais pressionada que esta já tenha sido.

ABDICAR OU DESOBEDECER?

As escolhas da Grécia





Os gregos votaram contra a austeridade que lhes foi imposta. Mas, ao que tudo indica, não votaram pela saída da zona euro. Será possível satisfazer a vontade dos gregos?

É, se admitirmos que há uma alternativa à saída e à submissão, a desobediência. Albert Hirschman pode ser uma inspiração. Mas não me parece que, após novas eleições, as esquerdas da Grécia tenham inteligência e maturidade política para, com base nesta alternativa, constituir um governo de coligação. No entanto, é esse o caminho defendido pelo economista Jacques Généreux, do Parti de Gauche, nesta entrevista de que traduzo um excerto:

Regards.fr: É preciso sair agora do euro?
Jacques Généreux: Tudo o que digo não parece possível no quadro europeu e um número importante de pessoas sérias defende a saída do euro. Há outras vias para além do nacionalismo, frequentemente neo-fascista, ou da abdicação frente ao neoliberalismo. Nós desejamos manter-nos no quadro europeu a partir do qual vieram contributos importantes em termos de ambiente, de segurança, de desenvolvimento económico, de progresso social, de bens públicos. Somos internacionalistas e portanto pelo reforço da cooperação entre os povos. Há uma via para fazer mudar as coisas na União Europeia: a subversão a partir de dentro. Permanecemos dentro e desobedecemos de maneira muito educada e diplomática: prevenimos os outros governos que, em conformidade com o mandato do povo francês, nós não vamos respeitar um certo número de tratados e de directivas europeias.

Arriscamo-nos a medidas de retaliação? Não, existem muitas condições para entrar na União Europeia mas nenhuma para dela ser excluído. Se um único país decide retomar em parte o controlo do seu banco central, se proíbe alguns produtos financeiros, e se retoma o controlo parcial dos movimentos de capitais, em síntese, se decide proteger-se da especulação, isso muda tudo para a França e para a Europa. Os países vizinhos verão que, sem sair do euro, sem drama, podemos proceder de outra forma para resolver a crise. Os gregos, os portugueses, os irlandeses deixarão de aceitar a austeridade e despedirão os actuais governos. A partir desse momento teremos uma revolução através do voto que desembocará numa verdadeira renegociação dos tratados europeus e das directivas.

Jorge Bateira, economista
Ladrões de Bicicletas, blog
05:V:2012




15 de maio de 2012

A PÁTRIA DO CAPITAL

O capital não tem pátria, excepto quando é estrangeiro

Sorefame_made in Portugal


Na Irlanda, estranhou-se  a rapidez com que o Governo Português despachou as suas participações na EDP e na REN. É que, embora a mesma exigência tenha sido colocada pela troika ao Governo irlandês, ele limitou-se a privatizar uma fracção minoritária da empresa eléctrica nacional. Além disso, prolongando o seu braço-de-ferro com a União Europeia, negou-se a separar a produção da distribuição. Os irlandeses temem a privatização do sector eléctrico, mas, principalmente, o seu controlo por estrangeiros. Terão razão?

À primeira vista, a aquisição de uma empresa por outra é uma operação inocente de troca de capital corpóreo por incorpóreo em que ambas as partes julgam ficar a ganhar. Que pode interessar a nacionalidade dos compradores, se o que os move é sempre o desígnio de tornar a operação mais eficiente e rentável? O capital não tem pátria, e é assim mesmo que deve ser.

Mas poderemos ignorar, por exemplo, que a Sorefame, uma das nossas principais metalomecânicas pesadas, foi adquirida por concorrentes multinacionais apenas para ser encerrada anos depois? O resultado final foi a aniquilação de um centro nacional de competências laboriosamente edificado ao longo de décadas, com a consequência de que o País tem hoje que importar as carruagens ferroviárias de que necessita. Será muito ingénuo ver nisto um mero efeito da lei das vantagens comparativas.

A crença de que a nacionalidade da propriedade não conta ignora a importância do poder e, em geral, das considerações extra-económicas na condução dos negócios. A nacionalidade conta, e conta muito. Ainda assim, não é aceitável a protecção a todo o custo dos centros de decisão nacionais, a menos que se pretenda premiar a incompetência. As indignações nacionalistas são, em geral, absurdas, dado que, as mais das vezes, nenhum interesse respeitável é ferido quando uma empresa de um país compra uma empresa de outro.

Que critérios deveremos então ter em conta para avaliar o previsível impacto da mudança de propriedade de uma empresa nacional?

Primeiro, se uma empresa não exporta, gera escasso valor acrescentado, emprega poucos trabalhadores qualificados e não possui tecnologia própria, a sua venda a estrangeiros é assunto que só interessará aos próprios. Inversamente, se ela desempenha uma missão relevante para o país avaliada pelas externalidades positivas que gera, todo o cuidado será pouco.

Segundo, são perigosos compradores sem real interesse pelo negócio, unicamente empenhados na obtenção de ganhos financeiros de curto prazo, entre os quais se incluem fundos de investimento sem rosto e "private equities". O mais natural é que, antes de revenderem, liquidem actividades relevantes, mas dispendiosas, cujo valor só se revela plenamente no longo prazo.

Terceiro, importa perscrutar a intenção estratégica do comprador. Quanto maior for a relação de complementaridade entre as duas empresas, mais proveitosa a associação para aquela que é adquirida. Pelo contrário, quanto maior o grau de sobreposição, maior o risco de a compra ser motivada pelo desejo de matar um concorrente.

Quarto e último, interessa saber se os centros de competência da empresa se encontram protegidos contra a eventualidade da sua transferência para o exterior. Ninguém na Suécia parece preocupado com a eventualidade de a Volvo ser esvaziada pela chinesa Geely que a comprou, dado que os engenheiros suecos detêm elevadas qualificações dificilmente replicáveis.

Todavia, não podemos esquecer que a Catalunha perdeu rapidamente a Danone e a Hispano-Suiza quando elas foram absorvidas por grupos empresariais franceses. A aplicação destes critérios de avaliação conduz a resultados diametralmente opostos quando consideramos os riscos que decorrem para a economia nacional da venda a estrangeiros de empresas tão diversas como a Cimpor e TAP. No primeiro caso, muito pouco ou nada de relevante parece estar em causa; no segundo, ao invés, uma opção errada poderá afectar muito negativamente o nosso futuro por muitos e amargos anos.

João Pinto e Castro
Jornal de Negócios
09 Abril 2012
Director Geral da Ology e docente universitário



EMPRESAS ESTÁVEIS E QUALIDADE DE TRABALHO

O direito ao orgulho no trabalho bem feito



Imagine que não havia maternidades e que, ao romperem-lhe as águas, uma grávida que não confiasse em curiosas telefonaria ao seu médico assistente a anunciar-lhe que a coisa estava para breve. Por sua vez, ele convocaria um a um os enfermeiros e restante pessoal auxiliar indispensável para ajudar no parto. Seguir-se-iam o aluguer, pelo período considerado necessário, de uma sala conveniente e do equipamento indispensável. Por último, seriam contratados os medicamentos e materiais clínicos necessários.

Em teoria, não fazem falta maternidades para assistir partos. Basta que um grupo de profissionais qualificados se associe no momento certo, contratando com o médico que chefia a equipa as condições de prestação do serviço. Sucede, porém, que o método se adapta mal à emergência da situação. Tendo em conta o carácter ocasional da cooperação, é natural que os envolvidos aproveitem a ocasião para negociar os respectivos honorários e restantes condições de trabalho. Se não se apressam – e porque haveriam de apressar-se? – é muito possível que, entretanto, nasça a criança. Todavia, considerando a regularidade da ocorrência de partos, o líder da equipa poderia estabelecer contratos estáveis de prestação de serviços, sem necessidade de entabular negociações de cada vez que fosse chamado por uma parturiente. Continuaria, porém, a não haver maternidades: os profissionais envolvidos contratariam directamente entre si o serviço em vez de se vincularem por contratos de trabalho com uma instituição responsável por coordenar a sua actividade. A coordenação dos seus esforços far-se-ia através do mercado, e não de uma empresa.

Poder-se-ia confiar num tal arranjo para garantir partos seguros a mães e crianças, por um preço razoável?

Ronald Coase, hoje com 101 anos de idade, ganhou, em 1991, o Nobel por explicar porque são necessárias organizações estáveis (eventualmente empresas) em situações deste tipo. A ineficiência dos arranjos ad hoc resulta de premiarem comportamentos oportunistas cujas consequências se tornam mais evidentes com a passagem do tempo. Uma óbvia dificuldade reside na ausência de incentivos para providenciar formação e actualização de conhecimentos. O médico não gostaria, por exemplo, de ensinar aos seus colaboradores ocasionais novas técnicas que reduzissem a mortalidade infantil, com receio de que eles fossem ensiná-las aos seus concorrentes.

Sem instituições coesas, ficam bloqueados os processos de aprendizagem colaborativa. É, por isso, absurdo encarar-se uma maternidade como um mero aglomerado de recursos humanos e materiais intermutáveis, de que se pode pôr e dispor ao sabor dos caprichos de momento. Na prática, necessitamos para assegurar partos seguros e eficientes de instituições, como a Maternidade Alfredo da Costa, dotadas de uma forte identidade assente em valores sólidos, crenças partilhadas, procedimentos e métodos de trabalho consolidados ao longo de décadas.

Um amigo em tempos recrutado para uma multinacional petrolífera foi no seu primeiro dia de trabalho questionado pela pessoa encarregada da sua integração: "Sabe o que fazemos aqui?". "Sei, pesquisamos, extraímos e refinamos petróleo". "Errado", troçou o outro, "nós aqui fazemos dinheiro." Existem muitas empresas que, implícita ou explicitamente, educam os seus colaboradores nessa ideia, exortando-os a colaborar nas malfeitorias eventualmente exigidas por esse propósito.

Deixada à solta, esta variante de "ética empresarial" ajudou a desencadear a crise financeira internacional de que há cinco anos o mundo padece.

Para cúmulo, algumas pessoas que, no mínimo, conviveram pacificamente com esses princípios de gestão no sector financeiro privado, acham-se agora no direito de implantá-los no sector público. Instituições confiáveis, como a Maternidade Alfredo Costa, demoram décadas a construir.

Não se pode permitir que uma facção de bárbaros engravatados destrua de uma penada a dedicação e o esforço de gerações de profissionais justamente orgulhosos da qualidade do seu trabalho.

João Pinto e Castro
Director-geral da Ology e docente universitário
Jornal de Negócios, 23 Abril 2012



EMPREENDEDORISMO?

Histórias da carochinha para graúdos


acordar nesta terra real...



Os portugueses estão habituados a esperar que alguém, de preferência o Estado, lhes arranje emprego. Falta-lhes capacidade de ir à luta, criar o seu próprio posto de trabalho e produzir riqueza. Vivem demasiado acomodados à sombra de direitos adquiridos. Esperam que alguém lhes resolva os problemas, enfronhados numa atitude resignada e fatalista.

Alguém se atreve a duvidar da justeza deste diagnóstico quotidianamente repetido "ad nauseam" por empresários, professores universitários, consultores e jornalistas? Ora vamos, por um instante, fazer de conta que a realidade existe – pode ser?

Consultando as estatísticas, constata-se que temos já uma brutalidade de gente a trabalhar por conta própria ou em empresas familiares – nada menos que 42% de activos empregados em empresas com 9 ou menos trabalhadores. Por comparação, apenas 19% dos trabalhadores alemães e 11% dos americanos laboram em empresas dessa dimensão. Aparentemente, atitude empreendedora é coisa que não falta por cá.

Nada há de estranho, note-se, neste fenómeno, dado que, ao contrário do que se diz, os níveis mais elevados de iniciativa empresarial são registados nos países mais atrasados. O auto-emprego abrange 67% dos activos no Gana e 75% no Bangladesh, mas apenas 7% na Noruega, 8% nos EUA e 9% na França. Mesmo excluindo os camponeses, a probabilidade de alguém ser empresário é duas vezes maior nos países atrasados do que nos desenvolvidos.

A esmagadora maioria das pessoas dos países ricos emprega-se em organizações que agrupam centenas ou milhares de trabalhadores e jamais sonha criar a sua própria empresa. Isso é excelente, porque pouquíssimos dispõem de vocação ou competência para fazê-lo. Em contrapartida, nos países pobres muitos são forçados a criar o seu próprio negócio para fugirem ao desemprego. O facto indesmentível é que, entre nós, o sector propriamente capitalista da economia jamais conseguiu criar postos de trabalho em quantidade (e, já agora, em qualidade) capaz de dar ocupação a uma parte substancial da força de trabalho nacional. Seja qual for a explicação, podemos estar certos de que esta proliferação de empresas anãs – que, espantosamente, se acentuou nas últimas décadas e, ainda mais espantosamente, alguns querem consolidar – é uma receita infalível para a improdutividade e a pobreza.

A promoção do empreendedorismo heróico individual é um anacronismo, que serve apenas para culpar os desempregados da sua própria infelicidade.

O empreendedorismo relevante, que gera inovações úteis e desenvolvimento, é, no mundo contemporâneo, um fenómeno essencialmente colectivo. Steve Jobs nunca passaria de um amável biscateiro se não beneficiasse das invenções do Centro de Palo Alto da Xerox, se não dispusesse de uma plêiade de engenheiros formados por grandes universidades, se não houvesse um mercado de milhões de pessoas cultas e qualificadas ansiosas por utilizar os seus produtos e se não tivesse acesso a fontes de financiamento adequadas às necessidades de uma "start-up".

Por outras palavras, o que distingue as sociedades progressivas é a sua capacidade de orientar os instintos criativos dos cidadãos para actividades socialmente úteis e economicamente valiosas, pondo ao seu alcance um acervo de recursos humanos, tecnológicos e financeiros de grande nível.

Acresce que o empreendedorismo de maior sucesso tem origem em grandes empresas, usualmente em cooperação com outras. O sistema operativo da Microsoft foi um subproduto de um projecto da IBM. Em Portugal, as mais marcantes inovações das últimas décadas – o telemóvel pré-pago e a portagem electrónica – resultaram de iniciativas de grandes empresas (ainda por cima, públicas).

Não precisamos de exortações ao espírito empreendedor da população, meras histórias da carochinha para adultos. Não precisamos de mais empresas sem escala nem competências. Precisamos de melhores empresas e, sobretudo, de melhor empreendedorismo orientado para o desenvolvimento de actividades inovadoras e geradoras de emprego qualificado. Padecemos de um excesso de empreendedorismo do tipo errado. Em contrapartida, o empreendedorismo do tipo certo não floresce em Portugal porque as empresas que dispõem dos indispensáveis recursos se dedicam a actividades de extracção de rendas económicas, enquanto as restantes não têm acesso ao financiamento de que necessitam para poderem expandir-se com a necessária rapidez. Cuide-se dessa deformidade, que o empreendedorismo cuidará de si próprio.

João Pinto e Castro
Jornal de Negócios, 07:V:2012
Director Geral da Ology e docente universitário


13 de maio de 2012

A CULPABILIZAÇÃO DAS VÍTIMAS

Mantras da economia

R. Campo dos Mártires da Pátria [Teatro Carlos Alberto]


Um mantra, diz a Wikipédia, pode ser qualquer som, sílaba, palavra, frase ou texto, que detenha um poder específico. Acrescenta a enciclopédia da Internet que “existem mantras para facilitar a concentração e meditação, mantras para energizar, para adormecer ou despertar, para desenvolver chakras ou vibrar canais energéticos a fim de desobstruí-los”. Um mantra, em síntese, usando o dicionário da Porto Editora, é uma fórmula sagrada que tem o poder de materializar a divindade invocada.

Não são apenas as religiões orientais que têm mantras. Entre nós, há também frases (ou textos) que se recitam, repetidamente, tal e qual fórmulas sagradas que encarnam a divindade omnipotente deste tempo, a economia. Afirma uma delas que nós andámos a viver acima das nossas possibilidades. Este mantra foi recitado, no início da semana, no último programa “Prós & Contras”, por Rui Machete. Pode, evidentemente, haver quem tenha vivido acima das suas possibilidades e não se negará a Rui Machete a autoridade para sobre essa gente falar, uma vez que ele foi o presidente do Conselho Superior da Sociedade Lusa de Negócios, a dona do Banco Português de Negócios (BPN).

Mas o “nós” do mantra de Rui Machete não se refere, apenas ou sobretudo, aos amigos do BPN, ele implica a generalidade dos portugueses no tal viver acima das possibilidades, mesmo os que viveram sempre e apenas com o que receberam por um trabalho honestamente realizado. O deus da economia que Rui Machete convoca com o seu mantra é, todavia, injusto. Enquanto, para proveito dos bancos, foi conveniente que os portugueses vivessem acima das suas possibilidades, não faltava o crédito para acelerar e multiplicar o consumo. Casas, automóveis, viagens de férias, o que se quisesse, tudo era facilitado para imenso lucro dos que agora peroram sobre o ter-se vivido acima das possibilidades. O deus da economia vinga-se hoje dos que ontem o veneraram.

Outro mantra em uso é o que garante que a crise gera oportunidades. A afirmação pode ter sentido para quem vende livros de auto-ajuda ou faz negócios à custa do Estado. Dirigida à generalidade dos cidadãos, é uma palermice. “É um cliché e é um cliché perigoso”, garantiu Telmo Mourinho Baptista, bastonário da Ordem dos Psicólogos, numa entrevista concedida ao jornal i de 19 de Abril de 2012. Explicou ele que, “na prática, oportunidades temos sempre, não precisamos de crises”. Para o psicólogo, “é bom que se separe, até porque as crises, se são oportunidades, também são uma oportunidade para se desorganizar e ficar pior, o que não é uma oportunidade positiva”. É que “qualquer crise tem um carácter desorganizador”.

O bastonário da Ordem dos Psicólogos avisou que “temos de ter muito cuidado com esse cliché: parece que estamos à espera da crise para ter oportunidades”, notando ainda que “resolver problemas complexos em crise é muito mais difícil”. Telmo Mourinho Baptista sabe bem do que fala, mas não seria preciso ter um diploma de psicologia para se perceber que há cada vez mais pessoas, e cada vez mais famílias inteiras, a quem o desemprego está a destruir. Se um governante se revela incapaz de as ajudar, promovendo políticas que estimulem o emprego, mandaria se não algum conhecimento rudimentar de psicologia, pelo menos o sentido não invertido das coisas que não se culpabilizasse quem é vítima, dizendo, como anteontem disse o primeiro-ministro, “que o desemprego não tem de ser encarado como negativo e pode ser ‘uma oportunidade para mudar de vida’”, uma afirmação que, aliás, no mesmo dia, o ministro das Finanças contrariaria, afirmando o inverso: as pessoas adaptam-se “surpreendentemente bem” a um diversas mudanças trágicas nas suas vidas, mas “a satisfação de vida de um desempregado não se recupera”.

Eduardo Jorge Madureira Lopes‘OS DIAS DA SEMANA’12:V:2012

10 de maio de 2012

«REVOLUÇÃO DAS PAPOILAS»

Manifesto para uma esquerda livre

Grafitti_Trav. de Cedofeita, Porto



«PARA UMA ESQUERDA LIVRE»



Portugal afunda-se, a Europa divide-se e a Esquerda assiste, atónita.

As raízes desta crise estão no desprezo do que é público, no desperdício de recursos, no desfazer do contrato social, na desregulação dos mercados, na desorientação dos governos, na desunião europeia e na degradação da democracia.

Em Portugal e na Europa, a direita domina os governos, as instituições e boa parte do debate público. A direita concerta-se com facilidade, tem uma agenda ideológica e um programa para aplicar. A direita proclama que o estado social morreu e que os direitos, a que chamam adquiridos, são para abater.

Em Portugal e na Europa, a esquerda está dividida entre a moleza e a inconsequência. Esta esquerda, às vezes tão inflexível entre si, acaba por deixar aberto o caminho à ofensiva reaccionária em que agora vivemos, e à qual resistimos como podemos. Resistir, contudo, não basta.

É necessário reconstruir uma República Portuguesa digna da palavra República e construir uma União Europeia digna da palavra União.

É preciso propor aos portugueses, como aos outros europeus, um horizonte mais humano de desenvolvimento, um novo caminho para a economia e um novo pacto de justiça social.

É possível fazê-lo. Uma esquerda corajosa deve apresentar alternativas concretas e decisivas para romper com a austeridade e sair da crise, debatidas de forma aberta e em plataformas inovadoras.

A democracia pode vencer a crise. Mas a democracia precisa de nós.

Apelamos a todos aqueles e aquelas que se cansaram de esperar – que não esperem mais.

É a nós todos que cabe construir:

UMA ESQUERDA MAIS LIVRE, com práticas democráticas efectivas, sem dogmas nem cedências sistemáticas à direita, liberta das suas rivalidades, do sectarismo e do feudalismo político que a paralisa. Uma esquerda de cidadãos dispostos a trabalhar em conjunto para que o país recupere a esperança de viver numa sociedade próspera e solidária.

UM PORTUGAL MAIS IGUAL, socialmente mais justo, que respeite o direito ao trabalho condigno e combata as injustiças e desigualdades que o tornam insustentável. Um país decidido a superar a crise com uma estratégia de desenvolvimento económico e social, com uma economia que respeite as pessoas e o ambiente, numa democracia mais representativa e mais participada, com um Estado liberto dos interesses particulares que o parasitam.

UMA EUROPA MAIS FRATERNA, à altura dos ideais que a fundaram, transformada pelos seus cidadãos numa verdadeira democracia. Uma Europa apoiada na solidariedade e na coesão dos países que a formam. Uma Europa que ambicione um alto nível de desenvolvimento económico, social e ambiental. Uma União que faça do pleno emprego um objectivo central da sua política económica, que dê um presente digno aos seus cidadãos e um futuro promissor às suas gerações jovens.

*

Próximo passo: Encontros para uma esquerda livre. Ver site: