teologia para leigos

21 de março de 2023

Os destinatários da Boa Nova de Jesus

 


Os destinatários da boa nova de Jesus

os desmiolados, a escumalha, os ladrões e as prostitutas

Lucas 5,31-32

“Na mesma região encontravam-se uns pastores que pernoitavam nos campos fazendo turnos a vigiar os seus rebanhos durante a noite”.

 

Como acabamos de ver, os pastores monopolizaram as atenções desta cena. «Olhai que vos anuncio uma grande alegria, … Hoje, na cidade de David, nasceu-vos um Salvador, que é o Messias Senhor.» (Lc 2,10-11)

Que significado têm aqui, os pastores, neste momento da cena? Que representam eles na narração? A perícopa inicia-se afirmando que «naquela região (Belém) havia uns pastores que passavam a noite sob a intempérie velando o rebanho por turnos». No tempo de Jesus, os pastores eram gente menosprezada e marginalizada pela sociedade[1]. Eram normalmente considerados delinquentes, ladrões obstinados que se dedicavam à pilhagem contínua, pelo que constituíam um grupo que não merecia a mínima confiança. Esse era um dos motivos por que eram proibidos de testemunhar em julgamentos. Quanto a isto, eles eram comparáveis aos cobradores de impostos, que, igualmente, estavam excluídos de comparecer em juízo enquanto testemunhas[2].

Também é verdade que existe uma tradição bíblica favorável aos pastores[3]. No entanto, o contexto próximo e o horizonte da obra lucana favorece a interpretação pejorativa: os pastores eram gente marginalizada e perigosa e, por isso mesmo, menosprezada. Para Lucas, são precisamente estas pessoas pobres, simples e depreciadas pelos poderosos as escolhidas por Deus para receber, antes de mais ninguém e como autênticos destinatários, a revelação celeste de Jesus. Como disse C. Stuhlmüller, «é típico de Lucas serem os pobres os primeiros a receber a mensagem da salvação»[4]. Os pastores pertencem à categoria dos pobres de Yahvé de que os fariseus se enojavam e que depreciavam porque, por causa da vida nómada que tinham de levar [e por, apesar de ser “impuro”, serem obrigados a contactar com vísceras ensanguentadas aquando da degola], não podiam observar todas as prescrições da Lei»[5].

Fica bem patente o contraste entre o modelo de sociedade judaica defendido pelo poder religioso no tempo de Jesus e o projecto de Deus. Os pastores, protótipo das pessoas marginalizadas, menosprezadas e descartadas são precisamente os eleitos por Deus a fim de lhes comunicar a boa notícia, a grande alegria: o nascimento, a eles dirigido, do Salvador, que é o Messias, o Senhor. O paralelismo com Lucas 4,18 é manifesto. Na perícopa de Belém (2,10-11), o evangelho identifica-se com o nascimento do Salvador. É o próprio Deus quem anuncia a boa notícia aos pastores, protótipo de gente pobre e protótipo dos destinatários do evangelho. Na cena de Nazaré (4,18-19.21) o evangelho identifica-se com a actividade libertadora de Jesus. Aqui, é o próprio homem Jesus quem anuncia essa boa notícia aos pobres e oprimidos, os verdadeiros destinatários da sua mensagem e da sua actividade salvífica.

O evangelho fica, por um lado, definitivamente identificado com a pessoa, a mensagem e a actividade de Jesus e, por outro, não deixa a mais pequena dúvida de que os primeiros e verdadeiros destinatários desse evangelho são os pobres, os marginalizados, os descartados, os explorados, os menosprezados. Foi Deus que o decretou deste modo (e não de outro) e foi Deus que o revelou sem intermediários em Lucas 2,10-11 – na primeira pessoa (Anjo) e directamente; também, através de Jesus, em Lucas 4,14-19.21.

Estas duas cenas da escritura não fazem mais do que antecipar, como programa, e ratificar enquanto compêndio, a actividade libertadora de Jesus, através do seu ministério terrestre. De facto, os cobradores de impostos e as prostitutas (gente odiada, excluída e depreciada por serem ‘pecadores públicos’) são colocados nos lugares da frente, em lugares de destaque, muito à frente dos chefes do povo no que diz respeito ao acolhimento no Reino de Deus[6]. O motivo para tal tem a ver com o facto de terem sido esses os que em primeiro lugar acreditaram na mensagem de João (e por conseguinte em Jesus), ao passo que estes últimos não creram em João. O evangelho é de facto desconcertante; no entanto, nós continuamos a insistir em não o levar a sério. Jesus desprestigia a classe dominante, desmascarando-a e denuncia-a enquanto “classe”, já que o respeito aos dirigentes e às instituições judaicas constitui «o grande obstáculo para aceitar a mensagem de Jesus»[7].

Por parte de Jesus há, portanto, uma opção de classe: pelos marginalizados, desprezados e pecadores. Lucas é cristalino, quanto a isto. Tendo como cenário o baptismo de João, Jesus contrapõe duas classes sociais: por um lado, o povo (laos) e os cobradores de impostos e, por outro, os fariseus e os juristas:

 

«E todo o povo que o escutou, bem como os cobradores de impostos, reconheceram a justiça de Deus, recebendo o baptismo de João. Mas, não se deixando baptizar por ele, os fariseus e os doutores da Lei anularam os desígnios de Deus a seu respeito (Lucas 7,29-30)

 

Nesta contraposição existe uma verdadeira “opção de classe”. O povo-escória e os cobradores (pecadores) são a classe que aceita o desígnio de Deus: serem libertados da opressão que os esmaga e enlouquece[8].

O convite feito a Levi (Mateus 9,9, Lucas 5,27-32) e a conversão de Zaqueu (Lc 19,1-10) são igualmente significativos. Levi é cobrador de impostos. Jesus escolhe-o para ser ‘um dos Doze’ e de seguida entram em casa para tomar uma refeição juntos. A reacção dos fariseus e dos doutores da lei é fulminante: «Porque é que o vosso Mestre come com os cobradores de impostos e os pecadores?» A resposta de Jesus não se fez esperar. «Não são os que têm saúde que precisam de médico, mas sim os doentes. Ide aprender o que significa: “Prefiro a misericórdia ao sacrifício”(Oseias 6,6; 12,7; Amós 5,21-27). Porque … Eu não vim chamar os ‘justos’ [os zelosos], mas os pecadores.» (Lc 5,32) Este versículo expõe a opção de Jesus pelos doentes e pelos pecadores como sendo o cerne da sua missão. Jesus quer dizer-nos que, para Ele, a grande questão é a existência de miseráveis e que os responsáveis por essa miséria são os ‘religiosos’… (a pobreza é ‘sinal’ de que eles não merecem viver; até Yahvé os amaldiçoa não permitindo que enriqueçam: eles são pobres porque querem… se quisessem ser ricos, bastava-lhes rezar muito e darem gordas esmolas no Templo…). Há aqui, mais uma vez, uma opção pela classe débil, necessitada; a leitura da realidade social por parte de Jesus é antissistema, anti-preconceituosa, é includente, é misericordiosa! Enquanto os eclesiásticos apontam o dedo e dizem: ‘Vão trabalhar malandros!’, Jesus diz: ‘Baixem os impostos, perdoai as dívidas e cumpram a Lei do Ano do Jubileu!’

A perícopa de Zaqueu é muito semelhante. Também Zaqueu era cobrador de impostos (chefe de cobradores e muito rico; Lc 19,2). As pessoas que estão a observar protestam e murmuram porque Jesus vai hospedar-se na casa de Zaqueu (19,5-7). A conclusão de Jesus é clara: «Este homem veio procurar e salvar o que estava perdido» (Lc 19,10). Jesus opta pelo que anda perdido e desprezado e isso surge aqui, mais uma vez, como algo habitual no seu ministério[9].

Por existir uma enorme semelhança com Lucas 2,10-11, no que diz respeito à revelação, deixei Lucas 10,21-22 para o final deste breve excurso sobre os pobres, os pecadores e os escorraçados como os autênticos destinatários do evangelho:

«Bendigo-te, ó Pai, Senhor do Céu e da Terra, porque escondeste estas coisas aos sábios e aos inteligentes e as revelaste aos simples. (…) quem é o Filho só o Pai o sabe, quem é o Pai só o conhece o Filho e aquele a quem o Filho houver por bem revelar-lho

Jesus bendiz a seu Pai por ter querido revelar-se a gente simples, por oposição aos sábios e entendidos. A opção de Deus é manifesta e gratuita. Esta passagem faz-nos pensar nos pastores como os primeiros destinatários da revelação divina.

Os pastores, primeiros e autênticos destinatários da mensagem evangélica, representam o povo (laos), essa gente que sofre, que não tem importância social alguma, mas que afectiva e vitalmente está do lado de Jesus: «O povo inteiro estava suspenso dos seus lábios» (Lucas 19,48b).

O texto evangélico é explícito a este respeito: «Hoje trago-vos uma boa notícia, uma grande alegria para todo o povo» (2,10).

 

Carlos Escudero Freire, «Devolver el evangelio a los pobres», Sígueme 1977, 291-294.

 

 

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[1] [141] Josef Schmid, «El evangelio según san Marcos» Herder Barcelona, 1967, 101-103.

[2] [142] H. L. Strack-P. Billerbeck, «Kommentar zum Nueuen Testament IV» , II, 113-114.

[3] [143] Quer os Patriarcas, quer David foram pastores. Ao próprio Deus se chama pastor de Israel (Salmo 23,1; 80,2), na medida em que ele governa o seu povo. Pastorear chega a ter, com efeito, o significado de governar (2 Samuel 7,7; Jeremias 2,8); cf. C. Stuhlmüller, o. c., 319.

[4] [144] Ibid, 318. Até porque, em Lucas, «evangelizar» é sinónimo de «libertar da opressão socio-económica»; cf. J. Dupont, «Les beatitudes II», Paris 1969, 19-51: “pobres são todos aqueles que se encontram numa situação de total incapacidade de se defenderem de todo o tipo de violência.”

[5] [145] G. Leonardi, «L’infanzia di Gesù nei vangeli di Matteo e di Luca», Padova 1975, 211. Os fariseus, abusando da enorme autoridade que tinham sobre o povo «faziam crer às pessoas que, para estarem de bem com Deus, tinham de fazer tudo como eles faziam, inculcando-lhes um sentimento de culpa e de inferioridade o que os tornava sem valor, escória. Para além da observância das regras religiosas, os fariseus eram amigos do dinheiro [avarentos] e extorquiam dinheiro de gente simplória pressionando-as com argumentos de natureza piedosa (Mateus 23,25-28; Marcos 12,40; Lucas 11,39; Lc.16,14)»: Juan Mateos, Luís Alonso Schökel, «Nuevo testamento», Madrid 1987, p. 15.

[6] [146] Cf. Mateus 21,31-32. Os interlocutores, a quem Jesus se dirige quando quer comparar com cobradores de impostos e prostitutas, são os sacerdotes e os senadores do povo [anciãos], a fina flor, ‘la crème de la crème’ da sociedade judaica (Mateus 21,23). Em si mesma, a comparação por si só é já um verdadeiro insulto. A classe dos dirigentes é excluída do Reino, ao passo que os desprezados por essa mesma classe são admitidos prioritariamente; cf. P.-E. Bonnard, «Le second Isaïe. Son disciple et leurs éditeurs. Isaïe 40 - 66», Paris 1972, 313-314.

[7] [147] Juan Mateos, L. A. Schökel, «Nuevo testamento», Cristiandad Madrid, 1987, p. 33: «… el gobernador, sabendo que [Jesus] es inocente, lo condena a muerte (Mt 27,23-26). La injusticia del mundo no quiere que Dios reine (Mt 11,12-15), odia todo lo que Dios pide, mata el Hijo de Dios.»

[8] [148] O paralelismo com Mateus 21,31-32 é por demais evidente. Provavelmente, aqui, Jesus não faz referência às prostitutas pela simples razão de que, neste mesmo capítulo, Jesus vai apresentar uma delas em casa de Simão, o fariseu (Lc 7,36-50). A contraposição entre esta prostituta e o fariseu é, só por si, eloquente.

[9] [149] A parábola lucana do fariseu e do cobrador (Lucas 18, 9-14) ilumina admiravelmente as anteriores passagens. Com efeito, aos fariseus da parábola ela os descreve como «gente segura de si e que despreza os restantes» (Lc 18, 9-11-12); o cobrador, ao contrário, surge reconhecendo os seus pecados e pondo a confiança no Senhor (Lc 18,13). Este é o único que regressa a casa de bem com Deus (18,14); a conclusão é clara: Deus opta pelo que está curvado para o erguer bem alto; cf. também Lc 14,12-14; 14, 21 e contexto.