Os destinatários da boa
nova de Jesus
− os desmiolados, a escumalha, os ladrões
e as prostitutas
“Na mesma região encontravam-se uns pastores
que pernoitavam nos campos fazendo turnos a vigiar os seus rebanhos durante a
noite”.
Como acabamos de ver, os pastores
monopolizaram as atenções desta cena. «Olhai que vos anuncio uma grande
alegria, … Hoje, na cidade de David, nasceu-vos um Salvador, que é o Messias
Senhor.» (Lc 2,10-11)
Que significado têm aqui, os
pastores, neste momento da cena? Que representam eles na narração? A perícopa
inicia-se afirmando que «naquela região (Belém) havia uns pastores que passavam
a noite sob a intempérie velando o rebanho por turnos». No tempo de Jesus, os
pastores eram gente menosprezada e marginalizada pela sociedade[1].
Eram normalmente considerados delinquentes, ladrões obstinados que se dedicavam
à pilhagem contínua, pelo que constituíam um grupo que não merecia a mínima
confiança. Esse era um dos motivos por que eram proibidos de testemunhar em
julgamentos. Quanto a isto, eles eram comparáveis aos cobradores de impostos,
que, igualmente, estavam excluídos de comparecer em juízo enquanto testemunhas[2].
Também é verdade que existe uma tradição
bíblica favorável aos pastores[3].
No entanto, o contexto próximo e o horizonte da obra lucana favorece a
interpretação pejorativa: os pastores eram gente marginalizada e perigosa e,
por isso mesmo, menosprezada. Para Lucas, são precisamente estas pessoas
pobres, simples e depreciadas pelos poderosos as escolhidas por Deus para
receber, antes de mais ninguém e como autênticos destinatários, a revelação celeste de Jesus. Como disse C.
Stuhlmüller, «é típico de Lucas serem os pobres os primeiros a receber a
mensagem da salvação»[4]. Os
pastores pertencem à categoria dos pobres de Yahvé de que os fariseus se
enojavam e que depreciavam porque, por causa da vida nómada que tinham de levar
[e por, apesar de ser “impuro”, serem obrigados a contactar com vísceras
ensanguentadas aquando da degola], não podiam observar todas as prescrições da
Lei»[5].
Fica bem patente o contraste entre o modelo de
sociedade judaica defendido pelo poder religioso no tempo de Jesus e o projecto
de Deus. Os pastores, protótipo das pessoas marginalizadas, menosprezadas e
descartadas são precisamente os eleitos por Deus a fim de lhes comunicar a boa
notícia, a grande alegria: o nascimento, a eles dirigido, do Salvador,
que é o Messias, o Senhor. O paralelismo com Lucas
4,18 é manifesto. Na perícopa de Belém (2,10-11), o evangelho identifica-se com o nascimento
do Salvador. É o próprio Deus quem anuncia a boa notícia aos pastores,
protótipo de gente pobre e protótipo dos destinatários do evangelho. Na cena de
Nazaré (4,18-19.21)
o evangelho identifica-se com a actividade libertadora de Jesus. Aqui, é o
próprio homem Jesus quem anuncia essa boa notícia aos pobres e oprimidos, os
verdadeiros destinatários da sua mensagem e da sua actividade salvífica.
O evangelho fica, por um lado, definitivamente
identificado com a pessoa, a mensagem e a actividade de Jesus e, por outro, não
deixa a mais pequena dúvida de que os primeiros e verdadeiros destinatários desse
evangelho são os pobres, os marginalizados, os descartados, os
explorados, os menosprezados. Foi Deus que o decretou deste modo (e não de
outro) e foi Deus que o revelou sem intermediários em Lucas
2,10-11 – na primeira pessoa (Anjo) e
directamente; também, através de Jesus, em Lucas
4,14-19.21.
Estas duas cenas da escritura não fazem mais
do que antecipar, como programa, e ratificar enquanto compêndio, a actividade
libertadora de Jesus, através do seu ministério terrestre. De facto, os cobradores
de impostos e as prostitutas (gente odiada, excluída e depreciada por serem
‘pecadores públicos’) são colocados nos lugares da frente, em lugares de
destaque, muito à frente dos chefes do povo no que diz respeito ao acolhimento
no Reino de Deus[6].
O motivo para tal tem a ver com o facto de terem sido esses os que em primeiro
lugar acreditaram na mensagem de João (e por conseguinte em Jesus), ao passo
que estes últimos não creram em João. O evangelho é de facto desconcertante; no
entanto, nós continuamos a insistir em não o levar a sério. Jesus desprestigia
a classe dominante, desmascarando-a e denuncia-a enquanto “classe”, já que o
respeito aos dirigentes e às instituições judaicas constitui «o grande
obstáculo para aceitar a mensagem de Jesus»[7].
Por parte de Jesus há,
portanto, uma opção de classe: pelos marginalizados, desprezados e pecadores.
Lucas é cristalino, quanto a isto. Tendo como cenário o baptismo de João, Jesus
contrapõe duas classes sociais: por um lado, o povo (laos) e
os cobradores de impostos e, por outro, os fariseus e os juristas:
«E todo o povo que o escutou, bem como os
cobradores de impostos, reconheceram a justiça de Deus, recebendo o baptismo de
João. Mas, não se deixando baptizar por ele, os fariseus e os doutores da Lei
anularam os desígnios de Deus a seu respeito.» (Lucas
7,29-30)
Nesta contraposição existe uma verdadeira “opção
de classe”. O povo-escória e os cobradores (pecadores) são a classe que
aceita o desígnio de Deus: serem libertados da
opressão que os esmaga e enlouquece[8].
O convite feito a Levi (Mateus
9,9, Lucas
5,27-32) e a conversão de Zaqueu (Lc 19,1-10) são
igualmente significativos. Levi é cobrador de impostos. Jesus escolhe-o para
ser ‘um dos Doze’ e de seguida entram em casa para tomar uma refeição juntos.
A reacção dos fariseus e dos doutores da lei é fulminante: «Porque é que o
vosso Mestre come com os cobradores de impostos e os pecadores?» A resposta de
Jesus não se fez esperar. «Não são os que têm saúde que precisam de médico, mas
sim os doentes. Ide aprender o que significa: “Prefiro a
misericórdia ao sacrifício”(Oseias
6,6; 12,7;
Amós 5,21-27).
Porque … Eu
não vim chamar os ‘justos’ [os zelosos], mas os
pecadores.» (Lc 5,32) Este
versículo expõe a opção de Jesus pelos doentes e pelos pecadores como sendo o
cerne da sua missão. Jesus quer dizer-nos que, para Ele, a grande questão é a existência
de miseráveis e que os responsáveis por essa miséria são os ‘religiosos’… (a pobreza é ‘sinal’ de que eles não merecem viver; até
Yahvé os amaldiçoa não permitindo que enriqueçam: eles são pobres porque
querem… se quisessem ser ricos, bastava-lhes rezar muito e darem gordas esmolas
no Templo…). Há aqui, mais uma vez, uma opção pela classe débil,
necessitada; a leitura da realidade social por parte de Jesus é antissistema,
anti-preconceituosa, é includente, é misericordiosa! Enquanto os eclesiásticos
apontam o dedo e dizem: ‘Vão trabalhar malandros!’, Jesus diz: ‘Baixem
os impostos, perdoai as dívidas e cumpram a Lei do Ano do Jubileu!’
A perícopa de Zaqueu é muito semelhante.
Também Zaqueu era cobrador de impostos (chefe de cobradores e muito rico; Lc 19,2).
As pessoas que estão a observar protestam e murmuram porque Jesus vai
hospedar-se na casa de Zaqueu (19,5-7).
A conclusão de Jesus é clara: «Este homem veio procurar e salvar o que estava
perdido» (Lc 19,10). Jesus opta pelo que anda perdido e desprezado e isso surge
aqui, mais uma vez, como algo habitual no seu ministério[9].
Por existir uma enorme semelhança com Lucas
2,10-11, no que diz respeito à revelação, deixei Lucas 10,21-22 para o final deste breve excurso sobre os
pobres, os pecadores e os escorraçados como os autênticos destinatários do
evangelho:
«Bendigo-te, ó Pai, Senhor do Céu e da Terra,
porque escondeste estas coisas aos sábios e aos inteligentes e as
revelaste aos simples. (…) quem é o Filho só o Pai o sabe, quem é o Pai só
o conhece o Filho e aquele a quem o Filho houver por bem revelar-lho.»
Jesus bendiz a seu Pai por ter querido
revelar-se a gente simples, por oposição aos sábios e entendidos. A opção de
Deus é manifesta e gratuita. Esta passagem faz-nos pensar nos pastores como os
primeiros destinatários da revelação divina.
Os pastores, primeiros e autênticos
destinatários da mensagem evangélica, representam o povo (laos), essa
gente que sofre, que não tem importância social alguma, mas que afectiva e
vitalmente está do lado de Jesus: «O povo
inteiro estava suspenso dos seus lábios» (Lucas 19,48b).
O texto evangélico é explícito a este
respeito: «Hoje trago-vos uma boa notícia, uma grande alegria para todo o povo» (2,10).
Carlos Escudero Freire, «Devolver el
evangelio a los pobres», Sígueme 1977, 291-294.
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[1] [141] Josef Schmid, «El evangelio según san Marcos» Herder Barcelona, 1967, 101-103.
[2] [142] H. L. Strack-P. Billerbeck, «Kommentar zum Nueuen Testament IV» , II,
113-114.
[3] [143] Quer os Patriarcas, quer David foram pastores.
Ao próprio Deus se chama pastor de Israel (Salmo 23,1; 80,2), na medida em que
ele governa o seu povo. Pastorear chega a ter, com efeito, o significado de
governar (2 Samuel 7,7; Jeremias 2,8); cf. C. Stuhlmüller, o. c., 319.
[4] [144] Ibid, 318. Até porque, em Lucas, «evangelizar» é sinónimo de «libertar da opressão socio-económica»; cf. J.
Dupont, «Les beatitudes
II», Paris 1969, 19-51: “pobres são todos aqueles que se encontram numa situação
de total
incapacidade de se defenderem de todo o tipo de violência.”
[5] [145] G. Leonardi, «L’infanzia di Gesù nei vangeli di Matteo e di Luca», Padova 1975, 211. Os fariseus, abusando da enorme
autoridade que tinham sobre o povo «faziam crer às pessoas que, para estarem de
bem com Deus, tinham de fazer tudo como eles faziam, inculcando-lhes um
sentimento de culpa e de inferioridade o que os tornava sem valor, escória.
Para além da observância das regras religiosas, os fariseus eram amigos do
dinheiro [avarentos] e extorquiam dinheiro de gente simplória pressionando-as
com argumentos de natureza piedosa (Mateus 23,25-28;
Marcos 12,40;
Lucas 11,39;
Lc.16,14)»: Juan Mateos, Luís Alonso
Schökel, «Nuevo
testamento», Madrid 1987, p. 15.
[6] [146] Cf. Mateus 21,31-32.
Os interlocutores, a quem Jesus se dirige quando quer comparar com cobradores
de impostos e prostitutas, são os sacerdotes
e os senadores do povo [anciãos], a
fina flor, ‘la crème de la crème’ da sociedade judaica (Mateus 21,23).
Em si mesma, a comparação por si só é já um verdadeiro insulto. A classe dos
dirigentes é excluída do Reino, ao passo que os desprezados por essa mesma
classe são admitidos prioritariamente; cf. P.-E. Bonnard, «Le second Isaïe. Son disciple et leurs éditeurs. Isaïe 40 - 66», Paris 1972, 313-314.
[7] [147] Juan Mateos, L. A. Schökel, «Nuevo testamento», Cristiandad Madrid, 1987, p. 33: «… el gobernador, sabendo que
[Jesus] es inocente, lo condena a muerte (Mt 27,23-26).
La
injusticia del mundo no quiere que Dios reine (Mt 11,12-15),
odia todo lo que Dios pide, mata el Hijo de Dios.»
[8] [148] O paralelismo com Mateus 21,31-32 é por demais
evidente. Provavelmente, aqui, Jesus não faz referência às prostitutas pela
simples razão de que, neste mesmo capítulo, Jesus vai apresentar uma delas em
casa de Simão, o fariseu (Lc 7,36-50). A contraposição
entre esta prostituta e o fariseu é, só por si, eloquente.
[9] [149] A parábola lucana do fariseu e do cobrador (Lucas 18, 9-14)
ilumina admiravelmente as anteriores passagens. Com efeito, aos fariseus da
parábola ela os descreve como «gente segura de si e que despreza os restantes»
(Lc 18, 9-11-12);
o cobrador, ao contrário, surge reconhecendo os seus pecados e pondo a
confiança no Senhor (Lc 18,13). Este é o único que regressa a casa de bem com
Deus (18,14); a conclusão é clara: Deus opta pelo que está curvado para o
erguer bem alto; cf. também Lc 14,12-14;
14, 21 e contexto.