Historicamente, os apóstolos, tal como Jesus, começaram em primeiro lugar pelos judeus. Paulo também o fez e só depois da rejeição destes é que, quer os apóstolos quer Paulo, foram aos poucos percebendo que o Deus dos judeus também era o Deus da Humanidade inteira; e mais: que a salvação de Jesus não só estava destinada a todos os povos bem como não tinha de passar forçosamente pelo judaísmo. É por isso que afirmamos que a abertura aos pagãos tem carácter dialéctico, ou seja, de confronto, já que historicamente ela é fruto de uma rejeição por parte da maioria das comunidades judaicas. É por isso que, depois de muitas e infrutíferas tentativas para estabelecer contacto com essas comunidades judaicas, Paulo e Barnabé exclamaram:
− “Era primeiramente a vós que a palavra de Deus devia ser anunciada. Visto que a repelis e vós próprios vos julgais indignos da vida eterna, voltamo-nos para os pagãos, pois assim nos ordenou o Senhor: «Estabeleci-te como luz dos povos, para levares a salvação até aos confins da Terra».” (Actos 13,46-47)[1].
Apesar desta confrontação histórica, que Lucas põe a nu detalhadamente nos Actos dos Apóstolos, o terceiro evangelista, principalmente por ser pagão, não tinha dúvidas sobre o carácter universal da salvação de Jesus. É por isso que afirmamos que, desde o Evangelho da Infância, Lucas anseia e preocupa-se por prefigurar e antecipar a salvação-libertação de Jesus para todos os povos como elemento inscrito no plano de Deus, apesar de ele saber bem o que historicamente acontecera e que descreve no seu segundo livro. No livro dos Actos, Lucas, de modo diverso, afirma que a salvação de Deus através de Jesus se destinava historicamente aos pagãos, já que as comunidades judaicas por mais de uma vez a haviam rejeitado. Cumpre-se assim igualmente a visão que João nos dá no Prólogo do seu evangelho:
− “Veio para a sua casa – o povo judeu -, mas os seus não o receberam” (João 1,11).
A chegada massiva do Espírito Santo irá mudar radicalmente o rumo da história da salvação. Assim, aos poucos começa a nascer a nova humanidade, da qual Jesus foi o protótipo. Este acontecimento havia já sido anunciado pelo profeta Joel e ao mesmo tempo confirmado em outras importantes passagens do Livro dos Actos. O começo deste livro anda todo ele à volta da promessa - do Pai - de que se irá realizar a chegada do Espírito Santo sobre os apóstolos e outros crentes: sobre homens e mulheres que faziam parte da comunidade cristã formada após a morte e a ressurreição de Jesus. Trata-se do Pentecostes. Numa altura em que os apóstolos comiam juntos, Jesus ressuscitado aconselhou-os:
− “Não vos afasteis de Jerusalém. Esperai que se cumpra a promessa do Pai… João baptizou com água, mas, dentro de pouco tempo, vós sereis baptizados com o Espírito Santo» (Actos 1,4-5).
A seguir, Jesus acrescenta:
− “Ides receber uma força, a do Espírito Santo, que descerá sobre vós, e sereis minhas testemunhas em Jerusalém, por toda a Judeia e Samaria e até aos confins do mundo” (Actos 1,8).
Este último texto encerra e torna-se o coração do plano deste livro: o Espírito Santo descerá, sobre os apóstolos e não só sobre a primeira bem como sobre as sucessivas comunidades cristãs, na forma de uma força[2] que os leva a ser testemunhas de Jesus, ou seja, testemunhas − com a palavra, com actos e, se necessário, com a própria vida – daquilo que Jesus fez e ensinou. Sendo assim, não se pode ser discípulo de Jesus sem receber o Espírito que dá a força necessária para continuar a realizar a tarefa que o próprio Jesus levou a cabo na sua época, adaptando-a, obviamente, a cada nova época.
O começo histórico acontece em Jerusalém, mas o que também acontece de relevante é que de ora em diante acabaram-se as fronteiras... A Samaria, para os judeus, era um país pagão; no entanto, a missão a realizar a partir de agora é “até aos confins do mundo” (Actos 1,8). Os discípulos de Jesus, na senda do seu mestre e sob a influxo do Espírito, devem levar a mensagem de Jesus a todos os povos da terra. Esta missão tem carácter universal. As fronteiras de Israel acabam de ser derrubadas. Deus deixou de ser o Deus de Israel para se converter no Deus de toda a Humanidade. Tal acontecimento, associado ao facto de no Novo Testamento Jesus nos apresentar Deus como Pai, torna-se a maior ‘revolução do Evangelho’, a qual contém em si um princípio inequívoco e possível: ‘fazer o ecumenismo’.
Lucas narra assim o primeiro Pentecostes[3]:
“Quando chegou o dia do Pentecostes, encontravam-se todos reunidos no mesmo lugar. De repente, ressoou, vindo do céu, um som comparável ao de forte rajada de vento, que encheu toda a casa onde eles se encontravam. Viram então aparecer umas línguas, à maneira de fogo, que se iam dividindo, e poisou uma sobre cada um deles. Todos ficaram cheios do Espírito Santo e começaram a falar outras línguas, conforme o Espírito lhes inspirava que se exprimissem” (Actos 2,1-4)
Estavam reunidas cerca de cento e vinte pessoas: os apóstolos e outros discípulos, mulheres e homens (Actos 1,13-15). O Espírito Santo desce de igual modo sobre toda a comunidade – “umas línguas, à maneira de fogo” – e quanto aos efeitos visíveis dessa irrupção do Espírito podemos dizer que também esses efeitos são iguais para todos e todas: “começaram a falar outras línguas, conforme o Espírito lhes inspirava que se exprimissem” (Actos 2,4).
É assim que nasceu a primeira comunidade cristã: o Espírito Santo não só a ‘dá à luz’ como começa desde o primeiro segundo a repartir os seus dons sobre ela. Na origem da primeira comunidade cristã não há mediação sagrada alguma, porque o Espírito desce gratuitamente sobre todos os presentes e porque os Doze nunca chegaram a ser consagrados, por Jesus, para um ministério sagrado de mediação; além do mais, a casa onde todos estavam reunidos era uma casa normal, sem carácter sagrado algum (Actos 1,13-14). Quanto ao essencial, há que o enfatizar: não há diferença alguma entre os Doze e o resto da comunidade; o nível em que todos se situam e se movem é o de serem irmãos e discípulos de Jesus, movidos pelo mesmo Espírito. Não podemos negar que Pedro e os restantes apóstolos tivessem um relevo especial na comunidade, porém não se serviram desse particular para dominar a comunidade ou para a substituir representando-a, nem muito menos se apresentaram como ministros de mediação sagrada.
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Espírito, Deus e Pós-teísmo
[1] O itálico, em Actos 13,47, é citação do Segundo Isaías: Isaías 49,6.
[2] Na Carta aos Romanos, Paulo apresenta o evangelho como ‘uma força’: “Eu não me envergonho do Evangelho, pois ele é força de Deus para a salvação de todo o crente, primeiro o judeu e depois o grego”. (Romanos 1,16). Esta passagem é o núcleo do Livro dos Actos.
[3] Quanto a isto, consultar Bruce, F.F., «The Book of the Acts», Grand Rapids, 1988, 49-59; Witherington, Ben III, «The Acts of the Apostles», Grand Rapids, 1998, 128-137; Munck, J., «The Acts of the Apostles», The Anchor Bible, New York, 1967, 13-15; Dillon, R.J., «Hechos de los Apóstoles», Nuevo Comentário Bíblico San Jerónimo, Estella, Verbo Divino, 2004, 215-217; Richard, Pablo, «Hechos de los Apóstoles», Comentario Bíblico Latinoamericano, Estella, Verbo Divino, 2003, 693-694.