O sagrado e o profano
no Evangelho
Antes de abordar os conceitos de sagrado
e profano, convém esclarecer o termo “Evangelho”, que domina todo este
meu livro «El Evangelio es profano». ‘Evangelho’ não é um conceito
abstrato pertença de uma teologia especulativa. É algo muito concreto, eu diria
que é bem palpável, já que Jesus,
a sua actividade e a sua mensagem constituem o que chamamos “Evangelho”.
O tema do sagrado e do profano referido ao Evangelho, que pretendo abordar
neste livro, é um dos pontos mais importantes e conflituosos que diferenciam o
Antigo do Novo Testamento. As pessoas podem compreender com relativa facilidade
o que se entende por “sagrado”, mas convém explicar qual o alcance da palavra e
do conceito “profano”[1].
O profano, oposto ao sagrado, indica antes de tudo a autonomia dos seres
humanos em relação à realidade que os circunda e com a qual se relacionam
constantemente. O profano significa, pois, o quotidiano, algo normal na vida
das pessoas, o secular, aquilo que lhes pertence e que tem a ver com os «leigos»,
segundo a linguagem e o conteúdo do Código de Direito Canónico e da Hierarquia
católica em uso nos seus documentos. Deste modo, a laicidade, por ser remetida
pela hierarquia aos leigos, não deveria assustar assim tanto os chefes
eclesiásticos, porque foram eles mesmos que dividiram o mundo católico em clérigos
e leigos. Esta divisão tem por objetivo fazer com que os hierarcas se diferenciassem
com muita nitidez dos leigos para se constituir a eles ‒ a hierarquia ‒ no único referente sagrado provido
de todo o tipo de prebendas, honras e privilégios, enquanto os leigos constituiriam
o mundo vulgar e comum do profano.
A Hierarquia, ou seja, o Papa, os
Bispos, os sacerdotes e os diáconos, não só constituem o mundo do sagrado,
mas também, através de diversos ritos religiosos de caráter sagrado, são
eles mesmos os consagrados. Para além disso, só eles têm o poder de
consagrar. Eles
são os senhores e donos absolutos no e do campo do religioso, e apenas eles o
administram, pois assim o decidiram ao longo da história secular da
Igreja, em matéria de sagrado: os sacramentos, as missas, os tríduos, as
novenas, as peregrinações ou romarias a lugares sagrados, as aparições da
virgem e os templos construídos e por eles abençoados por tudo quanto é canto.
Mais! São eles os únicos que decidem a quem proclamar beatos e santos
aqui na terra. A Hierarquia tem, pois, o
monopólio total do sagrado e da santidade. A hierarquia tem igualmente
o poder sagrado de «benzer» seja lá o que for inclusivamente benzer entidades
bancárias e caixas de aforro, muitas das quais acabam por ‘derreter’ as
poupanças dos imprudentes, pelo que a hierarquia também tem algo a ver com
crises financeiras, socioeconómicas e dos “mercados” em que todos os países
estão enterrados até ao pescoço. Num passado não tão longínquo quanto isso,
benziam igualmente canhões, carros de combate e a própria guerra. Com estas incursões no terreno dos leigos, a hierarquia
quis demonstrar o seu poder e domínio sobre tudo o que existe. Em
suma: a hierarquia move-se na esfera de Deus e do divino e encarrega-se de tudo
o que for relacionado com Deus enquanto intermediários e administradores do sagrado.
Portanto, os leigos estão atados de
pés e mãos e à sua mercê. Enquanto cristãos, muitos crentes vivem absolutamente
dependentes das leis e das normas da Hierarquia sem possibilidades de se
desenvolverem e crescerem enquanto pessoas autónomas, num perpétuo e triste
infantilismo. Perante este cenário, o problema que se coloca é da máxima
actualidade na medida em que os leigos começam hoje em dia a despertar e
progressivamente a tomar contacto com o convite do Evangelho para que cresçam
enquanto pessoas e para que vivam uma vida feliz e plena. É por isso que os
leigos começam a exigir autonomia em matérias
que dizem respeito às suas vidas enquanto leigos, ao mesmo tempo que
começam a querer desmistificar e desconstruir
a questão do sagrado a partir de narrativas e acontecimentos
referidos nos Evangelhos. Os leigos estão a deixar de aceitar ingerências
absurdas dos hierarcas católicos ‒
ou dos chefes de outras confissões religiosas ‒ no seu mundo e na sua vida
específica de leigos. Basta de bênçãos e de palestras sobre o sagrado as quais
procuram apenas tornar-nos dependentes e submissos! Tudo isso começa a
asfixiar-nos. Para além disto, tenho a certeza que a
Hierarquia vive mais à maneira judaica do que à maneira do
cristianismo, ou seja, persegue o espírito e a letra do Antigo Testamento muito
mais do que “o núcleo do Novo”, o qual se centra sobretudo nos
evangelhos. Sobre este assunto, e para já, não é preciso discorrer mais; basta
chamar a atenção para o seguinte tópico: Jesus
foi um leigo e não uma pessoa consagrada.
Há que examinar igualmente quais foram as
instituições sagradas do Antigo Testamento e a forma como Jesus se relacionou
com elas, ou seja, que relação teve Jesus com tais instituições e com as
personagens que as representavam e as promoviam, como fora o caso dos fariseus
(enquanto fiéis observantes da Lei e cumpridores rigorosos da mesma), a «Lei de
Moisés», o Sábado, os sumos-sacerdotes, o Templo, o Sinédrio algo semelhante a
um Conselho ou Parlamento-Tribunal constituído pelos sacerdotes, escribas e doutores
da Lei (anciãos ou presbíteros) e que pelo menos aparentemente parece que tinha
capacidade para condenar à morte; cf. João
8,5. (cf. «Diccionário de la Bíblia –
Historia y Palabra», Verbo Divino 2007, p. 58).
É muito importante escrutinar com muita
atenção aquilo que os evangelhos nos dizem sobre esta relação de Jesus com estas instituições. É bem
possível que aquilo que muito provavelmente fez com que Jesus fosse descartado
como impróprio e indesejável esteja também a acontecer hoje em dia (com toda a
normalidade) pela mão da Hierarquia católica. Importa também examinar,
investigar e provar se o
núcleo central e as passagens nucleares dos evangelhos surgiram e se
configuraram no âmbito laical ou profano
(espaços da preferência de Jesus) ou, pelo contrário, se foram originários de
lugares sagrados ou de lugares coniventes com lugares sagrados.
Regressando ao que foi dito atrás em matéria
de História das Religiões («Lo sagrado y lo profano en la historia de la humanidad»[2]), com
que abrimos este livro, convém aclarar alguns conceitos em relação aos
evangelhos. Há que distinguir entre teofanias
ou revelações divinas que
ocorrem nos evangelhos e que são muito importantes, como é o caso da Anunciação
aquando da narração do nascimento de Jesus, do seu baptismo e da consequente
abertura do céu por uma voz que fala, etc., e a criação
ou constituição de lugares sagrados, dos quais não se encontra
rasto nos evangelhos. Tampouco encontramos nos evangelhos a mediação
sagrada, de capital importância no Antigo Testamento e nas religiões
antigas, sobretudo nas mais evoluídas. Ou seja, nos evangelhos, Jesus nunca aparece como mediador sagrado a
desempenhar essa função de mediação em lugares sagrados. Mais: Jesus nunca instituiu mediadores sagrados.
Por outro lado, convém deixar desde já bem claro
que as teofanias ou manifestações divinas são momentos de gratuidade e, por isso, não
podem ser requeridas nem controladas pelos discípulos de Jesus. Tampouco
deveriam ser instrumentalizadas pelos seus seguidores constituindo-as em
lugares sagrados ali onde tiveram lugar tais teofanias. Muito menos é próprio
do cristianismo construir e erguer templos para oferecer sacrifícios, o que
exigiria e justificaria a criação de ministros sagrados. Mas aquilo que de
facto vemos acontecer é que o divino, o transcendente
e as suas manifestações de gratuidade são consideradas como algo sagrado
pela Hierarquia. O divino e o transcendente pertencem à esfera de
Deus ao passo que o sagrado e as suas mediações pertencem à esfera humana.
Ainda há pouco afirmamos que na maioria das religiões existe a mediação
sagrada; no judaísmo acontece o mesmo. Mas não é admissível que isso aconteça
no cristianismo, pois o cristianismo não pode
ser considerado mais uma religião entre outras.
A práxis histórica do cristianismo, caso
fizéssemos dele uma religião como as outras, acabaria por se apartar
substancialmente do projecto inicial de Jesus que nunca pensou em fundar mais
uma religião, mas em proclamar e realizar o Reinado de Deus aqui, no meio dos homens,
tendo como base valores qualitativamente novos, revolucionários e subversivos enfrentando
os contravalores da sociedade do seu tempo. Tal como dissemos no começo deste
livro, o Reinado de Deus não se manifestou no
sagrado, mas no profano, ou seja, no meio da vida comum, aquando da vida normal
das pessoas. Muito menos precisou do sagrado para se
implantar e crescer, quer no tempo do Jesus histórico, quer no tempo da Igreja
primitiva.
Todas as religiões ‒ incluindo o
cristianismo no seu devir histórico ‒ submeteram e dominaram o ser humano de
diversas maneiras à custa de modos primitivos ou subtilmente fundamentalistas.
Houve momentos em que as religiões passaram por cima do ser humano,
escravizaram-no e inclusivamente torturaram-no e levaram-no à morte. Pelo
contrário, o Evangelho coloca o ser humano no centro: a vida humana é o valor supremo. O
Evangelho procura o desenvolvimento do ser humano, a liberdade e a felicidade
humana. Esta maneira de ver convida-nos a recuperar a frescura dos evangelhos a
partir dos seus núcleos essenciais e dos seus temas fundamentais.
In Carlos Escudero Freire, «El Evangelio es
profano», Ed. El Almendro, Córdoba 2011, pp. 27-30
©
Google drive:
[1] “Pro” (= de frente) refere-se àquele que observa,
a partir de fora, com curiosidade, o “fanos”, ou seja, a manifestação do
transcendente. Profano refere-se a uma atitude positiva e não negacionista. [PB]
[2] Corresponde ao cap. 1 deste livro.