teologia para leigos

20 de março de 2023

O sagrado e o profano no Evangelho

 


O sagrado e o profano

no Evangelho

 

Antes de abordar os conceitos de sagrado e profano, convém esclarecer o termo “Evangelho”, que domina todo este meu livro «El Evangelio es profano». ‘Evangelho’ não é um conceito abstrato pertença de uma teologia especulativa. É algo muito concreto, eu diria que é bem palpável, já que Jesus, a sua actividade e a sua mensagem constituem o que chamamos “Evangelho”.

O tema do sagrado e do profano   referido ao Evangelho, que pretendo abordar neste livro, é um dos pontos mais importantes e conflituosos que diferenciam o Antigo do Novo Testamento. As pessoas podem compreender com relativa facilidade o que se entende por “sagrado”, mas convém explicar qual o alcance da palavra e do conceito “profano”[1]. O profano, oposto ao sagrado, indica antes de tudo a autonomia dos seres humanos em relação à realidade que os circunda e com a qual se relacionam constantemente. O profano significa, pois, o quotidiano, algo normal na vida das pessoas, o secular, aquilo que lhes pertence e que tem a ver com os «leigos», segundo a linguagem e o conteúdo do Código de Direito Canónico e da Hierarquia católica em uso nos seus documentos. Deste modo, a laicidade, por ser remetida pela hierarquia aos leigos, não deveria assustar assim tanto os chefes eclesiásticos, porque foram eles mesmos que dividiram o mundo católico em clérigos e leigos. Esta divisão tem por objetivo fazer com que os hierarcas se diferenciassem com muita nitidez dos leigos para se constituir a eles a hierarquia no único referente sagrado provido de todo o tipo de prebendas, honras e privilégios, enquanto os leigos constituiriam o mundo vulgar e comum do profano.

A Hierarquia, ou seja, o Papa, os Bispos, os sacerdotes e os diáconos, não só constituem o mundo do sagrado, mas também, através de diversos ritos religiosos de caráter sagrado, são eles mesmos os consagrados. Para além disso, só eles têm o poder de consagrar.  Eles são os senhores e donos absolutos no e do campo do religioso, e apenas eles o administram, pois assim o decidiram ao longo da história secular da Igreja, em matéria de sagrado: os sacramentos, as missas, os tríduos, as novenas, as peregrinações ou romarias a lugares sagrados, as aparições da virgem e os templos construídos e por eles abençoados por tudo quanto é canto. Mais! São eles os únicos que decidem a quem proclamar beatos e santos aqui na terra. A Hierarquia tem, pois, o monopólio total do sagrado e da santidade. A hierarquia tem igualmente o poder sagrado de «benzer» seja lá o que for inclusivamente benzer entidades bancárias e caixas de aforro, muitas das quais acabam por ‘derreter’ as poupanças dos imprudentes, pelo que a hierarquia também tem algo a ver com crises financeiras, socioeconómicas e dos “mercados” em que todos os países estão enterrados até ao pescoço. Num passado não tão longínquo quanto isso, benziam igualmente canhões, carros de combate e a própria guerra. Com estas incursões no terreno dos leigos, a hierarquia quis demonstrar o seu poder e domínio sobre tudo o que existe. Em suma: a hierarquia move-se na esfera de Deus e do divino e encarrega-se de tudo o que for relacionado com Deus enquanto intermediários e administradores do sagrado.

Portanto, os leigos estão atados de pés e mãos e à sua mercê. Enquanto cristãos, muitos crentes vivem absolutamente dependentes das leis e das normas da Hierarquia sem possibilidades de se desenvolverem e crescerem enquanto pessoas autónomas, num perpétuo e triste infantilismo. Perante este cenário, o problema que se coloca é da máxima actualidade na medida em que os leigos começam hoje em dia a despertar e progressivamente a tomar contacto com o convite do Evangelho para que cresçam enquanto pessoas e para que vivam uma vida feliz e plena. É por isso que os leigos começam a exigir autonomia em matérias que dizem respeito às suas vidas enquanto leigos, ao mesmo tempo que começam a querer desmistificar e desconstruir a questão do sagrado a partir de narrativas e acontecimentos referidos nos Evangelhos. Os leigos estão a deixar de aceitar ingerências absurdas dos hierarcas católicos ‒ ou dos chefes de outras confissões religiosas ‒ no seu mundo e na sua vida específica de leigos. Basta de bênçãos e de palestras sobre o sagrado as quais procuram apenas tornar-nos dependentes e submissos! Tudo isso começa a asfixiar-nos. Para além disto, tenho a certeza que a Hierarquia vive mais à maneira judaica do que à maneira do cristianismo, ou seja, persegue o espírito e a letra do Antigo Testamento muito mais do que “o núcleo do Novo”, o qual se centra sobretudo nos evangelhos. Sobre este assunto, e para já, não é preciso discorrer mais; basta chamar a atenção para o seguinte tópico: Jesus foi um leigo e não uma pessoa consagrada.

Há que examinar igualmente quais foram as instituições sagradas do Antigo Testamento e a forma como Jesus se relacionou com elas, ou seja, que relação teve Jesus com tais instituições e com as personagens que as representavam e as promoviam, como fora o caso dos fariseus (enquanto fiéis observantes da Lei e cumpridores rigorosos da mesma), a «Lei de Moisés», o Sábado, os sumos-sacerdotes, o Templo, o Sinédrio algo semelhante a um Conselho ou Parlamento-Tribunal constituído pelos sacerdotes, escribas e doutores da Lei (anciãos ou presbíteros) e que pelo menos aparentemente parece que tinha capacidade para condenar à morte; cf. João 8,5. (cf. «Diccionário de la Bíblia – Historia y Palabra», Verbo Divino 2007, p. 58).

É muito importante escrutinar com muita atenção aquilo que os evangelhos nos dizem sobre esta relação de Jesus com estas instituições. É bem possível que aquilo que muito provavelmente fez com que Jesus fosse descartado como impróprio e indesejável esteja também a acontecer hoje em dia (com toda a normalidade) pela mão da Hierarquia católica. Importa também examinar, investigar e provar se o núcleo central e as passagens nucleares dos evangelhos surgiram e se configuraram no âmbito laical ou profano (espaços da preferência de Jesus) ou, pelo contrário, se foram originários de lugares sagrados ou de lugares coniventes com lugares sagrados.

Regressando ao que foi dito atrás em matéria de História das Religiões («Lo sagrado y lo profano en la historia de la humanidad»[2]), com que abrimos este livro, convém aclarar alguns conceitos em relação aos evangelhos. Há que distinguir entre teofanias ou revelações divinas que ocorrem nos evangelhos e que são muito importantes, como é o caso da Anunciação aquando da narração do nascimento de Jesus, do seu baptismo e da consequente abertura do céu por uma voz que fala, etc., e a criação ou constituição de lugares sagrados, dos quais não se encontra rasto nos evangelhos. Tampouco encontramos nos evangelhos a mediação sagrada, de capital importância no Antigo Testamento e nas religiões antigas, sobretudo nas mais evoluídas. Ou seja, nos evangelhos, Jesus nunca aparece como mediador sagrado a desempenhar essa função de mediação em lugares sagrados. Mais: Jesus nunca instituiu mediadores sagrados.

Por outro lado, convém deixar desde já bem claro que as teofanias ou manifestações divinas são momentos de gratuidade e, por isso, não podem ser requeridas nem controladas pelos discípulos de Jesus. Tampouco deveriam ser instrumentalizadas pelos seus seguidores constituindo-as em lugares sagrados ali onde tiveram lugar tais teofanias. Muito menos é próprio do cristianismo construir e erguer templos para oferecer sacrifícios, o que exigiria e justificaria a criação de ministros sagrados. Mas aquilo que de facto vemos acontecer é que o divino, o transcendente e as suas manifestações de gratuidade são consideradas como algo sagrado pela Hierarquia. O divino e o transcendente pertencem à esfera de Deus ao passo que o sagrado e as suas mediações pertencem à esfera humana. Ainda há pouco afirmamos que na maioria das religiões existe a mediação sagrada; no judaísmo acontece o mesmo. Mas não é admissível que isso aconteça no cristianismo, pois o cristianismo não pode ser considerado mais uma religião entre outras.

A práxis histórica do cristianismo, caso fizéssemos dele uma religião como as outras, acabaria por se apartar substancialmente do projecto inicial de Jesus que nunca pensou em fundar mais uma religião, mas em proclamar e realizar o Reinado de Deus aqui, no meio dos homens, tendo como base valores qualitativamente novos, revolucionários e subversivos enfrentando os contravalores da sociedade do seu tempo. Tal como dissemos no começo deste livro, o Reinado de Deus não se manifestou no sagrado, mas no profano, ou seja, no meio da vida comum, aquando da vida normal das pessoas. Muito menos precisou do sagrado para se implantar e crescer, quer no tempo do Jesus histórico, quer no tempo da Igreja primitiva.

Todas as religiões ‒ incluindo o cristianismo no seu devir histórico ‒ submeteram e dominaram o ser humano de diversas maneiras à custa de modos primitivos ou subtilmente fundamentalistas. Houve momentos em que as religiões passaram por cima do ser humano, escravizaram-no e inclusivamente torturaram-no e levaram-no à morte. Pelo contrário, o Evangelho coloca o ser humano no centro: a vida humana é o valor supremo. O Evangelho procura o desenvolvimento do ser humano, a liberdade e a felicidade humana. Esta maneira de ver convida-nos a recuperar a frescura dos evangelhos a partir dos seus núcleos essenciais e dos seus temas fundamentais.

 

In Carlos Escudero Freire, «El Evangelio es profano», Ed. El Almendro, Córdoba 2011, pp. 27-30

 

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[1]Pro” (= de frente) refere-se àquele que observa, a partir de fora, com curiosidade, o “fanos”, ou seja, a manifestação do transcendente. Profano refere-se a uma atitude positiva e não negacionista. [PB]

[2] Corresponde ao cap. 1 deste livro.