SACERDOTES DO ALTÍSSIMO?
No decorrer do Concílio Ecuménico
Vaticano II em Roma, as sessões plenárias da Igreja Católica (1962-1965)
introduziram novidades teológico-pastorais tais ao ponto de, pela primeira vez,
em cerca de dois mil anos após o assassinato de Jesus de Nazaré, se ter posto
em causa o modelo eclesiológico em que até então assentara a instituição. A
percepção dos vultos maiores da teologia renovadora (europeia e sul-americana
[1]) era a de que, com o 2º Concílio, havia chegado a hora de “dar livre curso
a impulsos actualizadores longamente reprimidos” [2]. Um dos peritos mais
autorizados presente, o dominicano Yves Congar, no decurso da segunda Sessão
(Outubro de 1963) e após a votação do dia 30 ‒ em que a Assembleia aprovara por
ampla maioria a colegialidade episcopal ‒, prevendo a profunda transformação
eclesial que tal pressupunha, afirmou que o Vaticano II nunca mais poderia ser
considerado apenas como (expressão de alguns oradores…) “uma espécie de vagão
suplementar que se estava a acrescentar à cauda do Concílio Vaticano I” [3].
Nessa mesma linha e reforçando ainda mais a ideia, Y. Congar escreveu:
“pacificamente, a Igreja fez de facto a sua revolução de Outubro…” [4]. Estas
expressões denotam dois factos: por um lado, o insustentável sofrimento que se
vivia há demasiadas décadas dentro da Igreja Romana, e, por outro lado, a deficiente avaliação das
causas desse sofrimento acompanhada de uma completa ingenuidade quanto às garantias de sucesso futuro por parte das orientações conciliares aprovadas pela Assembleia e subscritas pelo Papa.
Na verdade, dois mil anos era muito
tempo para que se acreditasse que a reforma de tal Instituição ainda iria a
tempo. Só uma ingenuidade do mesmo tamanho temporal poderia clamar eufórica ‒
como o voltou a fazer Y. Congar ‒ dizendo que se tratou de “uma revolução
pacífica decisiva” [5]. Muito poucos anos após o encerramento das Sessões
conciliares, eram já evidentes os sinais de alarme que emergiam da reacção curial.
O teólogo Joseph Ratzinger encabeçara
já a ala que iria, lentamente, restaurar o espírito pré-conciliar e colocar
entraves à Reforma que a nova teologia sugeria. Dizia ele: «… se por
restauração, entendemos a procura de um novo equilíbrio passados os exageros
provocados por uma abertura indiscriminada ao mundo e passadas as
interpretações demasiado positivas de um mundo agnóstico e ateu, então,
certamente que essa restauração é desejável e de facto, na verdade, a
restauração pré-conciliar já está em marcha». Em 1975, dez anos após o
encerramento do Concílio Ecuménico Vaticano II, J. Ratzinger promulga
oficialmente − aquando de um debate, em Munique, organizado pela revista «Communio»
− os pontos-chave da restauração: eles constituem a magna carta do avanço dos
retrógrados da Igreja. «Uma reforma real da Igreja – diz Ratzinger – pressupõe
um abandono total dos caminhos equivocados, que, entretanto, conduziram a
consequências indiscutivelmente catastróficas». Partindo de uma distinção entre
“Concílio” e “anti-Espírito” do Concílio – distinção formulada pela primeira
vez neste Debate – o teólogo afirma que «é preciso trabalhar de modo que seja
separado o espírito (ou seja, o Concílio vivido na sua essência espiritual e
teológica) do anti-espírito».
Para que tal programa possa ser
realizável, Ratzinger indica algumas intervenções bem precisas: em primeiro
lugar, uma revisão da reforma litúrgica. «Devemos opor-nos muito decididamente
contra tudo o que se tem feito até hoje numa submissão ao esmagamento racionalista,
aos discursos moles e ao infantilismo pastoral, que degradam a liturgia ao
nível dos homens do campo e que a procura reduzir ao nível do comic.
Igualmente, as reformas já efectuadas, especialmente no que diz respeito ao
ritual, devem ser reexaminadas uma vez mais, a partir destes pontos de vista»
[6].
O documento da Congregação para a
Doutrina da Fé [1976?], que ratificava o «não» católico ao sacerdócio da mulher
(partilhado por todas as Igrejas da ortodoxia oriental e, até há pouco tempo,
também pelos anglicanos), tem, ao fundo, a assinatura do predecessor do cardeal
Ratzinger. Porém, hoje sabemos que não há dúvida que Ratzinger também
contribuiu para a sua elaboração e, quando confrontado com uma pergunta muito
directa, definiu, esse Documento, como «muito bem preparado, ainda que, tal
como todos os documentos oficiais, apresente uma certa secura e vá directo
demais às conclusões sem desenvolver suficientemente, com a amplitude que se
impunha, todos os passos que a elas o conduziram».
É a este documento que o Prefeito
remete, a fim de examinar mais uma vez a questão que, segundo o seu pensamento,
tem sido mal colocada.
Falando do tema da mulher em geral (e
da sua projecção na Igreja, em particular entre as religiosas) parece-me
descortinar nele uma certa amargura: «É a mulher quem mais duramente paga as
consequências da confusão, da superficialidade de uma cultura fruto de mentes
masculinas, de ideologias machistas que enganam a mulher e as tornam confusas
no seu mais profundo íntimo, sob a capa de as querer libertar».
«Não haja dúvidas – as mulheres
seriam as maiores vítimas desta “revolução”. É a mulher que mais paga!
Maternidade e virgindade (os dois altíssimos valores através dos quais ela
realiza a sua vocação mais profunda) acabam por ser os valores opostos aos
valores dominantes hoje. Mas a mulher, criadora por excelência ao dar à luz
vida, não “produz” no sentido técnico, que é o único sentido que nos domina
hoje nesta sociedade entregue ao culto da eficácia e, por isso, mais dominada
que nunca pelos homens. Estamos a convencer a mulher que queremos libertá-la e
emancipá-la, induzindo-a a masculinizar-se e, assim, homogeneizando-a na
cultura da produção, submetendo-a ao controlo da sociedade masculina dos
técnicos, dos vendedores e dos políticos que procuram benefícios e poder, e,
por isso, tudo organizam, tudo vendem e instrumentalizam para conseguir o seu
objectivo. Ao afirmarmos que a diferença sexual é uma realidade secundária (e,
portanto, negando o próprio corpo como encarnação do Espírito num ser sexuado),
despojamos a mulher não só da maternidade, mas também da livre escolha da
virgindade; e isto, tendo em atenção que o homem não pode procriar nem pode ser
virgem a não ser “imitando” o exemplo da mulher virginal. Por esta via, a mulher
assumiria um altíssimo valor de “signo” e de “exemplo” para o resto da
humanidade». (Ibid.)
Eu estou convencido que é assim - com narrativas delirantes tipicamente ratzinguerianas - que se tenta negar o evidente e esconder uma das maiores senão a maior causa da encruzilhada aflitiva, da
podridão e sofrimento intrainstitucional e da irrelevância aos olhos do Mundo Ocidental em que a Igreja Católica Romana hoje em dia se encontra: refiro-me à
condição da «Família Sacerdotal», donde decorre uma certa “moralidade sexual”
(para os leigos) e o famigerado “celibato obrigatório” (para os sacerdotes). Ao
mesmo tempo que assistimos a manifestações públicas de mulheres católicas a
exigir acesso ao Altar Sacerdotal Sacrificial (ainda administrado ao modo do
Antigo Testamento), o Papa Francisco denuncia o cancro que corrói a Igreja
Católica: o clericalismo. Defende L. Kerimel: “Este último introduziu na
Instituição Católica Romana as categorias da separação (clero / leigos,
homens / mulheres, puros / impuros), da hierarquização (bispos /
presbíteros / diáconos/ religiosos / fiéis), da marginalização da mulher
e da sacralização de uma pessoa pela imposição das mãos, o que cria as
condições para que ela se sinta parte de uma casta (a "sacerdotal")
detentora de competências e atribuições exclusivas e excludentes.” (Loïc de
Kerimel, «En finir avec le cléricalisme» [Para acabar com o clericalismo]
Edições du Seuil, Abril de 2020).
Bernhard Häring, teólogo cimeiro e
renovador da teologia moral e, por isso mesmo, acossado pela Curia, disse que
«o Concílio sepultou o clericalismo e o anticlericalismo» (cf. «O Concílio
começa agora», Paulistas 1966, p. 131). «O trabalho realizado pelo Concílio
Vaticano II contribuiu, sem dúvida, para sepultar o clericalismo...» (Idem,
p. 132). Viu-se...
Moral da História: a Instituição Católica Romana é uma instituição que se julga «a única morada de Deus» e, portanto, a única instituição a poder dispensar as bênçãos divinas àqueles que se convertam a todo o seu sistema estrutural, institucional, canónico, dogmático e moral «assim desejado e assim decretado por Cristo». É nesta encruzilhada que a Igreja Católica Romana vive desde há mais de 1 000 anos e da qual não abrirá mão, a não ser de temas secundários que não ousem pôr em causa a sua origem divina «querida por Cristo» (Joseph Ratzinger). Até aceito que, neste século, a Cúria Romana consiga adoçar o clericalismo com uns pingos de feminilidade (o Papa Francisco está sempre a chamar a atenção para o "imprescindível jeitinho tão feminino das mulheres"..., expressão que deveria envergonhar-nos a tod@s), desde que isso não questione o seu sacerdotalismo, ou seja, a sua intocável missão divina que é a de ser «a única mediadora capaz entre Deus e a Humanidade». A «Ordenação apostólica» (e não apenas o clericalismo...) é a questão número um: quem é "ordenado" passa a ser um ser humano diferente dos outros seres humanos, passa a ser ‒ como alguns pensam e escrevem ‒ o que Jesus Cristo era: ele «não era, (...), simplesmente igual a toda a gente» (Roger Lenaers, "Jesus de Nazaré, um ser humano como nós?", p. 151, Scortecci Editora, São Paulo 2017, ISBN 978-85-366-5242-9). A "ordenação sacerdotal" transfigura a essência do ser humano (seja mulher, homem ou trans... ou...) transcendendo-a, divinizando-a. Ou seja, o «sacerdotalismo» está na base do clericalismo e foi ele que fez da Mensagem de Jesus de Nazaré a 2ª Edição revista e aumentada do Antigo Testamento! É aqui que reside o cancro da Igreja Católica Romana, uma igreja que "vive do altar" (1 Coríntios 9,13-18) e para o altar. Sem altar, sem vítimas e sem Sacerdotes, uma Igreja Clerical não sabe nem pode oferecer Sacrifícios a Deus! Para ela, a "Ordenação Sacerdotal" é imprescindível para manter e perpetuar este canal de comunicação entre Deus e a Criação. Ao mesmo tempo, a "Ordenação Sacerdotal" cria dentro da pessoa ordenada uma outra pessoa, uma pessoa criada e ao mesmo tempo 'criadora' como o Criador: ou seja, a "pessoa sacerdotalizada" passa a possuir "um outro ego" (superego divino) dentro de si, ombro-a-ombro com o ego humano (Cf. Anne Philibert, «Des prêtres et des scandales», Cerf 2019, pp. 16-18). É assim que se potenciam as vidas 'divididas', vidas 'duplas', as meias verdades, se geram as tensões e as depressões, bem como as frustrações da profissão sacerdotal.
«E, pior do que isso, é bem provável que Freud tivesse razão ‒ pelo menos quanto à descrição daquilo que se considera como “católico” ‒ quando reflectia sobre a formação do “complexo”, o qual consiste na assimilação do medo por parte de algumas pessoas já na infância, medo que será mais tarde explorado pelas instituições. Foi assim que Freud chegou à “teoria do complexo de Édipo” convencido que estava que tal se fundamentava na capacidade, por parte de uma poderosa autoridade paterna, de reprimir a capacidade de amor e de manter as relações entre marido e mulher numa eterna ambivalência moral saltitante entre “Senhora” (Madona) e prostituta. Lancem vocês, agora, uma olhadela ao estado em que se encontra a Igreja católica de hoje (1992), e irão dar de caras com um caso clássico de “estruturas colectivas edipianas”: ‒ uma autoridade paterna que priva um funcionariado célibe da felicidade do amor e que, a partir de uma “mística mariana”, provoca constantes ‘desdobramentos da moral’. É nesse ponto que entra em acção a constante referência à importância da virgindade biológica e até psicológica ‒ convém dizê-lo, para que fique clara a força do que está em causa ‒ de Maria. É sem dúvida verdadeiramente enigmático como é possível vir a ser ‘mãe’ sem nunca ter tido uma verdadeira e autêntica ‘sensação sexual’…» (Herbert Haag e Eugen Drewermann, «No os dejéis arrebatar la libertad», Herder 1994, pp. 36-37)
O clericalismo
é filho do autoritarismo, o qual, por sua vez, é filho do "burn-out" - por excesso de tarefas e pela ausência de "vida própria" - realidade que os
sacerdotes (sejam mulheres ou homens), mais dia menos dia, acabam por
reconhecer ao olharem-se ao espelho da sinceridade e
da cruel realidade. Fazerem de nós humanos e divinos ao mesmo tempo
(e tudo isso num único corpo) é ingrato, é desleal... É desumano! É
anti-vicarial! Se algum dia se retirar o sacerdotalismo a este cristianismo,
acontecerá a derrocada do modelo eclesiológico vigente há mais de 1 000 anos.
Alguns acreditaram que isso iria acontecer com o Concílio Vaticano II.
Infelizmente, tal não ocorreu; e como tal não ocorreu, "para quê ficarmos
a olhar para o céu"?!! Que os mortos enterrem os seus mortos...
Em pleno século XXI, estou
profundamente convencido que esta Instituição Romana absolutista ‒ Planetária
quanto à vocação, de Sede Mundial Única (Roma) e Líder
Unipessoal (Papa) ‒ só pode ser uma instituição estruturalmente
anacrónica geradora de várias patologias (comportamentais e psíquicas).
A enormidade de casos de traição ao juramento (diante de Deus e do
Povo de Deus…) dos votos de pobreza, castidade e obediência por parte dos
eclesiásticos (mas também por parte de «religiosas») merecia um estudo
académico psicanalítico bastante alargado. Há uma razão que sobreleva todas as
outras: o sofrimento humano. Para quem tenha vivido várias décadas em contacto
com padres, monges e freiras é por demais evidente que não há razão alguma para
desvalorizar a situação actual ou achar que estou a exagerar. É óbvio que eu
conheço muitos padres e algumas freiras que são ou foram, para mim, luz e guia;
a esses devo muitíssimo. Mas nunca poderei esquecer aquilo que já vi, pelo que
me recuso a aceitar, como resposta, a costumeira reacção: “nada que não exista
em muito maior percentagem em todas as outras instituições por esse mundo
fora”.
A vida de muitos eclesiásticos está
salpicada de inadmissível sofrimento humano
traumático também
motivado pela duplicidade em que é vivida (dissociação & esquizofrenia):
diante dos seus paroquianos são um oceano de simpatia e atenção; mal viram as
costas ao povo, sabe-se lá como se aguentam de pé… se é que se aguentam. A
relação dos eclesiásticos com o poder que lhe foi dado gerir (mas também com
aquele poder que está acima do seu poder - a subserviência muitas vezes
hipócrita e castradora como condição para a sobrevivência vs. a
exclusão: AQUI, AQUI, AQUI, AQUI), a labilidade dos seus rendimentos económicos, a relação com os seus
desejos naturais como “seres-sexuados-que-desejam”, o peso estrangulador da
solidão quotidiana, as suas contradições comportamentais (muitas delas
enigmáticas aos olhos dos leigos que eles representam) e o medo da intriga (por
todos fomentada, diga-se…) constituem o universo que levou Eugen Drewermann a escrever o livro «Funcionários de Deus» (em
castelhano «Clérigos – Psicograma de un ideal») e que deveria ser objecto de
atenção redobrada. É dele que anexo o excerto abaixo (PDF-OCR), convicto que
estou de que será muito útil como estímulo à leitura integral do restante da
obra.
Depois do seu fracasso há poucos anos atrás (Amoris Laetitia), o Papa Francisco prepara-se, agora
(2021), para voltar a bater uma vez mais no ceguinho de sempre apud «A
Família Cristã» … Dou-me conta de que o problema da Reforma e da Governação da
Igreja Católica, para Francisco, passa, no concreto das mudanças realmente
conseguidas, por
aligeirar as “normas administrativas & morais” (Cf. “LA MUJER EN LA IGLESIA, ACÓLITA Y
LECTORA. ¿PASO ADELANTE O DECEPCIÓN?”, JUAN CEJUDO, miembro de MOCEOP, Eclesalia 18 enero 2021)
e por contornar / evitar medos de pseudo-cismas (leia e conclua por si, a
partir do próprio texto das Conclusões do Sínodo da Amazónia, o manifesto controlo burocrático exigido, pela casta eclesiástica, às
comunidades ameríndias que precisem de ordenar alguém, já hoje, porém casad@).
Francisco, que já teve intuições maravilhosas, esforça-se por deixar a sua
marca numa instituição que é irreformável e incorrigível (por causa da sua
inviável enormidade física). No entanto, não deixa de “assobiar para o ar”
quando se trata do ‘sofrimento dos eclesiásticos’ vítimas única e exclusivamente da
monstruosidade institucional que resiste a ser destapada e olhada de frente (cf.
Mgr Gaillot, «Ma liberté dans l'Église», Albin Michel, 1989, p. 175-176).
A condição da família pós-moderna
civil pode ser objecto de preocupações várias por parte do Papa, mas nenhuma dessas preocupações tem
a gravidade daquela que atinge a “Família Sacerdotal”: é muitíssimo mais grave aquilo que se
passa com a vida espiritual dos eclesiásticos quando comparada com a vivência do desempenho humano
(ao nível do “temporal”) por parte das Famílias cristãs.
Se a causa número um do insucesso
universal da Igreja Católica Romana (há anos sob o comando da “geração dos padres / bispos de João
Paulo II”) é a
preocupação com a imagem institucional, com o respectivo controlo da “doutrina” (moral e dogmática) em diversos Continentes, bem como com a angariação de fundos
financeiros para o Banco do Vaticano (IOR), para os leigos a preocupação
número um não é o institucional, mas o Espírito do institucional no seu confronto com a História da
Humanidade, com o ‘temporal’:
“As alegrias e as esperanças, as
tristezas e as angústias dos homens de hoje, sobretudo dos pobres e de todos
aqueles que sofrem, são também as alegrias e as esperanças, as tristezas e as
angústias dos discípulos de Cristo; e não há realidade alguma verdadeiramente
humana que não encontre eco no seu coração. Porque a sua comunidade é formada
por homens, que, reunidos em Cristo, são guiados pelo Espírito Santo na sua
peregrinação em demanda do reino do Pai, e receberam a mensagem da salvação
para a comunicar a todos.” (Gaudium et spes, n. 1)
Enquanto os eclesiásticos sofrem na
carne, injustamente, as agruras de terem sido apanhados nas malhas de uma
Instituição perniciosa, os casais leigos “sentem-se real e intimamente ligados
ao género humano e à sua história” (GS 1). O dia-a-dia o comprova:
diante de leigos que fazem voluntariado e acorrem ao sofrimento do Mundo, a
verdadeira preocupação do Papa, dos Cardeais e dos Bispos deveria ser, por seu
lado, a sanidade mental e teológica da “Família Sacerdotal” através de uma Teologia Libertadora dos Ministérios e de uma Espiritualidade Vocacional igualmente
Libertadora (a qual
fora, ao longo de quase três décadas, dificultada pela dupla
Wojtyla-Ratzinger).
Quatro pétalas finais: a vida humana é divina
floração e perfume
A ‒ Depois da “Carta aos Hebreus” (Hebreus 7,14) ficou claro que a
Mensagem Martirial de Jesus ultrapassava qualquer tipo de Religião rotineira
(calendarizada) e todo o tipo de Culto Sacerdotal a Deus: a vida humana e toda
a Criação eram, desde então, a ‘menina dos olhos’ de Abba, o Pai da Justiça, da
Paz e do ágape. O Deus dos cristãos não sente que se suja quando ama a
humanidade e cria vida humana por amor: o nosso Deus não necessita de ser pago
e resgatado com ofertas e sacrifícios objectivados sobre um altar pagão mesmo
que situado na cabeceira de uma Catedral… dita católica. A vida humana é uma
aventura e uma batalha que, em Jesus, vale a pena. O lugar da História do nosso
Deus, através de Jesus, é bem acessível (ainda que exigente…); temo-lo, por
exemplo, na delicadeza com que Jon Sobrino recorda ‒ «Cartas a Ellacuria.
1989-2004», p. 87, com as lágrimas nos olhos ‒ Julia Elba, a cozinheira e
sua filha adolescente Celina, o bondoso Amando e o carisma de Polín, todos
assassinados ao lado dos padres jesuítas pelo exército salvadorenho… Para nós,
testemunhas da morte e da ressurreição de Jesus, o Altar corresponde a todas as vidas
ceifadas pela injustiça humana, crentes ou não crentes. Para os cristãos, só há um altar: o pobre abandonado (Mt 27,46), o marginal cristificado.
B ‒ “O Homem é a melhor floração do Mundo: por isso, nunca
poderá negar as suas raízes terrenas, ainda que as transcenda.” (L. Boff, “Vida
más allá de la muerte”, in «Un compromiso liberador», Verbo Divino, 1992, p.13)
C ‒ “O Homem é uma parábola de Deus. Se é comunhão,
transcendência, abertura aos demais, então, é porque reproduz, ao nível da
Criatura, a maneira de ser de Deus.” (L. Boff, “Encarnación. La humanidad y la
jovialidad de nuestro Dios”, in «Un compromiso liberador», Verbo Divino, 1992,
p.13)
D ‒ “Perante os ideais eclesiásticos, é extremamente difícil,
(…), ganhar-se terreno suficiente para a construção de um ego com os seus
objectivos próprios. Uma terapia a eclesiásticos exige conflitos com instâncias
consideradas até aí como sagradas: assiste-se, então, a uma verdadeira
«derrocada dos deuses», ou seja, assiste-se a uma das coisas psiquicamente mais
difíceis de suportar; a isto acresce ainda a oposição violenta das Irmãs e dos
Confrades, que se sentem ameaçados ao pressentir mudanças. Mas não há outro
caminho. Quando os diques rompem, a primeira coisa a fazer é desviar o rio.
Terapias a eclesiásticos nunca são possíveis sem uma enorme reestruturação
psíquica, sobretudo no declive tocante à identificação do ego e do superego. É
preciso ensinar a viver pessoas que nunca haviam
tido o direito de viver a sua própria vida, e cujo ideal até tinha sido a
renúncia a si mesmas.” (E. Drewermann, op. cit., pp. 134-135)
Paulo
Bateira
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Referências
bibliográficas:
[1] Cf. as sugestões
do cardeal D. Hélder Câmara (Brasil), citado por Y. Congar in «Mon Journal du
Concile», 2 de Outubro de 1963, CERF 2002, p. 420: “O Concílio não pretende
definir dogmas de fé; que isso fique bem explícito [nas Conclusões]; que
haja uma palavra sobre os pobres…”.
[2] Andrés Torres Queiruga, «La teología del Vaticano II –
diagnóstico y propuestas», Herder 2013, p.24.
[3] CONGAR, Y., «Diario del Concilio. Segunda sesión»,
Estela, Barcelona: 1964, p. 114 (Citado por Carlos Schickendantz, “Una
revolucion pacifica decisiva. En camiño hacia nuevas formas históricas de la fe
y de la vida ecclesial”, in Palabra y Razón, n.2 Deciembre de 2012).
[4] Ibid., p. 116.
[5] Ibid., p. 135.
[6] A língua em uso na Liturgia torna-se, para Ratzinger,
também um problema sério. Leia-se a entrevista a J. Ratzinger por parte de
Vittorio Messori «Informe sobre la fe», BAC-Popular, Madrid 2005, pp.
134-136, quanto à substituição do Latim pela língua vernácula, decisão que, no
seu entender, constituiu «um dos mais claros exemplos de oposição entre aquilo
que diz o texto autêntico do Vaticano II e a maneira como depois
foi interpretado e aplicado.» Ou seja, para Ratzinger, o Latim nunca devia ter
sido abolido, com tamanha ligeireza, do Serviço litúrgico.
©
Porto, 03 de Janeiro de 2021.
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ANEXO:
Ignace Berten op
«Porquê
um tão longo silêncio?» (7MARGENS, 2019)