teologia para leigos

22 de fevereiro de 2021

No os dejéis arrebatar la libertad - H. Haag y E. Drewermann

 




Discurso aquando da concessão do prémio da

«Fundação Herbert Haag pela liberdade na Igreja»



Foram muitas as pessoas que se alegraram por a «Fundação Herbert Haag para a liberdade na Igreja» ter outorgado, este ano, o galardão de reconhecimento ao doutor Eugen Drewermann. Para tomar essa decisão, a Fundação não necessitou de pedir autorização nem a partidos políticos nem ao magistério eclesiástico. A Fundação é totalmente livre para julgar quem se comprometeu apaixonadamente com o maior afinco e eficácia a favor da liberdade na Igreja e quem, depois de ter tido a coragem de falar do assunto, sofreu desgostos e arcou com as respectivas consequências por parte da Igreja. Com apenas uma excepção ‒ foi um caso de oposição ao bispado de Coira (Suíça) ‒, até agora a concessão de todos os prémios recaíram no âmbito do Instituto para a Investigação Ecuménica da Universidade de Tubinga. Aquando das minhas numerosas viagens para fora da Alemanha e fora da Europa pude constatar uma e outra vez como era grande a expectativa que Tubinga se tornasse a sede da palavra livre da Igreja.



Caro senhor Drewermann,

O que está neste momento em causa não é avaliar a totalidade da sua obra. A conversa centrar-se-á unicamente no seu compromisso com a liberdade na Igreja. Estou a pensar, por exemplo, no seu tópico central: o medo dos seres humanos, no qual, com razão, vê a calamidade do nosso tempo. Seria fácil dizer que a Igreja no seu todo é a única responsável por isso, mas também é verdade que a Igreja não poderá ser eximida dessa responsabilidade. Não é por acaso que, no campo da psiquiatria, as neuroses eclesiogénicas, provocadas pelo sistema crente e legal da Igreja, constituem um campo próprio e específico. Penso igualmente no seu empenhamento a favor da liberdade de consciência diante de todo o tipo de orientação antievangélica. Penso no seu protesto incansável contra o inconveniente que supõe o facto de numerosas comunidades não poderem celebrar a eucaristia por causa da obrigatoriedade do celibato da presidência, exigência que não é bíblica. E penso também na sua luta por uma linguagem, quer na teologia quer na pregação, que seja compreensível para as pessoas de hoje. Creio que não estou equivocado quando digo que há bem pouco tempo declarou que a linguagem da nossa teologia nunca poderia ser traduzida para o árabe nem para o chinês; nem sequer a linguagem de Jesus. É daí que vem a sua exigência de uma nova formulação e reinterpretação daquilo que denominamos de dogmas para os crentes do nosso tempo, e inclusivamente a reescrita de toda a nossa teologia. Não vamos falar, neste momento, do papel que desempenha, quanto a este assunto, a psicologia das profundezas. Mas uma coisa é certa: o melhor método é aquele que mais nos aproxime da verdade, pois só a verdade nos libertará.

A liberdade na Igreja demonstra o respeito que revela, por palavras e por escritos, para com as religiões que habitam o imenso espaço que existe fora dos muros da Igreja católica, desde o antigo Egipto até ao Islão e às Igrejas da Reforma protestante. Penso na maneira como comparou a nossa Igreja com o programa reformista de Lutero. Também fomos obrigados a meditar na sua ideia de que, diante da imensidão de Deus, qualquer pretensão exclusivista da Verdade está condenada ao fracasso. «Um Deus ‒ cito-o ‒ que faz chover sobre todo o tipo de pessoas não pode ser um marco de referência para distinções e afastamentos, mas para um sentimento denso de solidariedade» («Publik-Forum» 14, VIII, 1992).



Quando é que, finalmente, a Igreja será mais tolerante?

Daqui se conclui que a divisão taxativa entre verdade e erro nunca poderá estar em sintonia com o espírito do Evangelho. Isto deveria ter feito pensar aquele eminente bispo da Igreja evangélico-luterana da Alemanha que há pouco tempo o acusou a si de ter negado a filiação divina de Jesus, pelo que esse bispo via em si motivos para se continuar a apoiar a inquisição católica. A Igreja católica costuma passar velozmente sobre aquela instrução da parábola do joio semeado no meio do trigo (Mateus 13,24ss). Diante da proposta dos criados de irem a correr arrancar o joio, responde o amo: «Deixai que ambos cresçam juntos até que seja a hora da ceifa, não vá, com o joio, acabardes por arrancar também o trigo.»

Impõe-se a tolerância e a compreensão para com aqueles que pensam de maneira diferente da nossa, pelo simples facto de que, enquanto seres humanos, nunca iremos estar em condições de distinguir entre joio e trigo, entre verdade e erro, entre bem e mal. Dá-se muitas vezes o caso de estarmos a combater algo que julgamos mal, falso, e somente mais tarde é que vimos a descobrir que tínhamos andado a combater o bem e a verdade. A história da Igreja e a história da teologia está cheia de exemplos destes; nos nossos dias vemos com que segurança o denominado magistério eclesiástico sabe o que é verdadeiro e o que é falso. O Magistério não deixa crescer ‒ como queria Jesus ‒ o joio, ou o suposto joio, até à estação da ceifa. Pelo contrário: acaba com ele antes de tempo! O senhor, caro Drewermann, é apenas o último exemplo de uma cadeia interminável. Ainda há pouco, tivemos uma ocasião singular para meditar profundamente neste tema, aquando da celebração dos quinhentos anos do descobrimento das Américas. Cristóvão Colombo dizia-se enviado por Deus para difundir «a nossa fé santíssima» no Novo Mundo. Isso ficou bem claro quando, dos oitenta milhões de pessoas que habitavam a América Central, do Sul e do Caribe, em meados de 1500, setenta anos mais tarde só tenham restado dez ou doze milhões. As vítimas de uma verdade mal interpretada foram seres humanos.

Com efeito, a verdade nunca pode ser pensada abstractamente, ou seja, à margem da condição humana coetânea ao momento em que se pensa essa verdade. Quem leia os seus livros, Drewermann, ou oiça a suas conferências e, sobretudo, tenha estado informado acerca do seu conflito com a Igreja Oficial ‒ encarnada no arcebispo Degenhardt, de Paderborn ‒ rapidamente se dará conta de que o ser humano importa muito mais do que a aceitação ou a rejeição, a formulação e a interpretação de esta ou daquela verdade de fé. Para o senhor, liberdade significa orientar-se exclusivamente por Jesus, aquele Jesus que nunca proclamou dogma algum, mas antes se preocupou muitíssimo e unicamente com o ser humano e a sua felicidade. O senhor sabe muito bem que a humanidade de hoje não se interessa minimamente com o «ser» de Deus, nem quer saber o que quer dizer «em si» e o que faz o «em si». Os teólogos, os professores de «Deus» podem discutir e reflectir, meditar e argumentar o que queiram e como queiram, mas aos seres humanos de hoje isso não interessa minimamente, porque isso não os ajuda em nada.



Ser livre a partir de Deus

Quando o senhor Drewermann se distancia da ‘exegese bíblica de grémio’ e recebe uma mesquinha resposta de amorosa compreensão ‒ pessoalmente, eu pertenço a esse ‘grémio’ ‒, isso se deve precisamente a que, o senhor, não se dá a nenhuma interpretação da Escritura que mereça esforço científico se ela não tiver uma relação directa com o ser humano. Os homens que o ouvem teriam ouvido Jesus, porque nas suas preocupações e necessidades, nas suas dúvidas e nos seus desesperos, o senhor anuncia-lhes um Deus cujo coração está inclinado sobre os humanos, um Deus que diante das vicissitudes da vida humana cuida deles e se alegre com eles, faz caminho com eles e se compromete por eles até à entrega total de si mesmo. A partir desta imagem de Deus, o senhor recupera a sua própria liberdade e outorga liberdade aos homens que acodem a si. Nessa sua liberdade se enraíza também a sua notória bondade, que tanto impressiona tanta gente. Através dos seus escritos, essa imagem de Deus penetra de maneira perceptível na pregação eclesiástica. Há bem pouco, eu escutei um sermão de um pároco meu amigo. As ideias dele eram-me familiares, no entanto fugiam totalmente daquilo que é comum ouvir-se a um pároco. Acabado o serviço religioso, disse-me ele: «Como pudeste ver, tudo o que disse fui buscar a Drewermann».

De modo algum essa liberdade não pode ser oferecida sem que ao mesmo tempo o senhor reclame o direito de usar livremente da palavra na Igreja. Todos sabemos como, nos tempos que estamos a atravessar, isso não é nada fácil de conseguir. Houve um tempo em que estávamos muito mais à frente. Passam agora quarenta anos em que Karl Rahner, à época professor de teologia em Innsbruck, publicou um pequeno livrinho cujo título era “Das freie Wort in der Kirche” («A palavra livre na Igreja», Einsiedeln 1953. do mesmo K. Rahner, cf. com o texto «Liberdade e manipulação na sociedade e na Igreja», Telos, Porto 18-06-1974, p. 49ss., estando aqui reunidas, duas conferências ‒ em Paderborn e Munique ‒ que foram traduzidas por Anselmo Borges a partir de edição Kösel-Verlag KG, München, 1970; completar com K. Rahner, «La libertad en la Iglesia», in “Escritos de Teología – II”, cap. II, Ediciones Cristiandad 2ª edição de 2002, pp. 93-110; e com «L'inverno della chiesa e le prospettive del cristianesimo», Rahner K., in “Il Regno”, Documenti, 9/1984, 01/05/1984, pag. 286). Rahner fundamentava, na altura, o seu desejo com estas palavras impressionantes:

«Sobretudo hoje, a Igreja não pode dar a imagem, quer de portas para dentro, quer de portas para fora, de ser como um desses Estados totalitários nos quais o poder exterior e a obediência cumprida num silêncio mortal são o que há de mais importante, enquanto que a liberdade e o amor não têm valor algum; como também não deve actuar como se os seus métodos de governação fossem iguais aos dos sistemas totalitários, nos quais a opinião pública se converte num ‘ministério da propaganda’.»

Rahner tinha bem presente, certamente, que a vulgar manifestação livre da opinião pessoal podia produzir nos representantes da Igreja oficial a impressão de uma «rebelião encoberta». Como Rahner se agitaria na sua tumba se fosse informado do clima actual da Igreja! Agora, 25 anos após o encerramento do Concílio, as suas declarações de 1953 adquiririam o tom e o valor de um discurso profético.



Sem profetas, a Igreja morre

De facto, quem hoje quiser falar de ‘palavra livre na Igreja’ não poderá deixar de se referir aos «profetas», homens que no antigo Israel arriscaram as suas vidas pela justiça fazendo frente a gente muito poderosa. Também são «profetas» todos aqueles que, conjuntamente com os Apóstolos, edificaram a Igreja, tal como se diz na carta aos Efésios (2,20). No século II, a Doutrina dos Doze Apóstolos (Didaché) faz referência aos Profetas antes de falar dos bispos e dos diáconos. O próprio Jesus se tomou por «profeta» quando no Evangelho de Lucas 13,31s declara que deve expulsar demónios e curar hoje e amanhã para, de seguida, consumar a sua obra ao terceiro dia em Jerusalém, «porque não se admite que um profeta morra fora de Jerusalém» (v. 33). A nossa época adquiriu novamente o agudo e urgente sentido do profetismo na Igreja. Mais do que nunca, sente-se que a Igreja nunca teve tanta necessidade de homens e mulheres cheios do Espírito Santo, os quais, independentes dos que detêm o serviço dos ministérios e inclusivamente em oposição a eles, dêem novo impulso à pregação e à vida da Igreja. «…sois concidadãos (…) edificados sobre o alicerce dos Apóstolos e dos Profetas» (Efésios 2,20). Disseram-nos à saciedade que a Igreja é apostólica, que proclama e deve proclamar a doutrina dos apóstolos, mas ela só poderá ser a Igreja dos Apóstolos se, ao mesmo tempo, for a Igreja dos Profetas.[1]

Ninguém pode ficar espantado, senhor Drewermann, por nestes últimos tempos ter surgido a palavra «profeta» associada cada vez com mais frequência ao seu nome. É claro que o senhor Drewermann não pretende ser um profeta, mas exerce uma função profética; não é sem razão que um dos seus últimos livros se chama “Sind Propheten dieser Kirche ein Ärgernis?” («Serão, os profetas, um escândalo para esta Igreja?»).

Ora, se a nossa Igreja se vê a ela mesma como a Nova Jerusalém, faz sentido que em Jerusalém seja o local em que acabem por ser assassinados os profetas. Há poucos dias o Papa reabilitou solenemente Galileo Galilei, após 359 anos de condenação. A comissão, instituída pelo Papa, comprovou, após um labor de treze anos, o seguinte: «Hoje sabemos que nas suas afirmações fundamentais Galileu tinha razão.» Nós esperamos, caro senhor, Drewermann, que a reabilitação do senhor não precise de trezentos anos e que no máximo demore trinta para que ainda possa assistir a ela. Entretanto, que Deus lhe dê forças para “trabalhar e curar, hoje e amanhã”.



Herbert Haag

Tubinga, 9 de Novembro de 1992.












“Deus não quer escravos”






Esta é para mim uma hora de agradecimento e alegria. Para que continue a ser uma hora de liberdade, gostava de a ver transformar-se numa hora de veracidade…

No fundo, confesso abertamente que eu não merecia este prémio. Não sou um homem forte; bem pelo contrário. As pessoas que desde há muitos anos me procuraram foram realmente aquelas que me forçaram a que eu as acompanhasse ao longo de um caminho que lhes parecia ser necessário para as suas vidas, e eu, ao tomar partido por elas, fui obrigado a viver as suas experiências conjuntamente com o magistério eclesiástico, caminhada que continua a não ser reconhecida como uma possibilidade cristã …

Tanta fragilidade, tanta tragédia, tanta luta, tanta procura e esforço. Aí estão os matrimónios fraturados (subjectivamente sem culpa) após um esforço de vinte anos de “um às voltas com o outro”, … e no fim a Igreja declara: “O que fizestes ‒ ao vos separarem ‒ é um pecado que não podemos perdoar, a menos que regresseis ao ‘inadmissível’.”

Conheço mulheres que, diante da alternativa inclusivamente colocada pela Igreja, não encontraram outra solução que não fosse expulsar a vida que já nascia no seu ventre. No ventre dos animais ocorre a expulsão de um feto em ocasiões de perigo e terror. Algo semelhante ocorre na vida de uma mulher. Às vezes fico tempos a pensar nisto e interrogo-me: mas será que, para nós, só conta o argumento da biologia? Acaso não bastará o medo, que é crónico e que não surge de um momento para o outro, e que nos conduz ao limite do desespero? No fundo, como sacerdote, não fiz mais do que abraçar estados de tribulação, desespero, desamparo até que acabasse por brotar a confiança. Estes ‘estados’ também deveriam ser objecto de algum perdão, do qual frequentemente precisamos muito antes de ‘actuar’ (psicanaliticamente), já que à partida – como psi’s ‒ nunca sabemos bem o que iremos acabar por fazer…

Às vezes ouço dizer ‒ inclusivamente, a eminentes bispos de agora ‒ que o medo não deixa de ser um fenómeno através do qual é possível conseguir uma aproximação à pessoa em causa. Mas como, se isso não passa de um truque para lhes dar uma pregação, um sermão moral?!

Por isso, gostava de vos falar do medo e dizer o seguinte: quando alguém se apercebe desse medo no coração das pessoas, acaba por escavar sob os pés delas um abismo tal, que nunca chegará ao fundo: um abismo sem fim! Às vezes, ouço dizer que o que eu pretendo é uma auto-redenção. Para aqueles que compreendem do que estamos a falar ‒ a crueldade de que as pessoas são capazes de umas para com as outras ‒ redescobrir uma e outra vez e mil vezes seguidas nos seus corações o medo como ‘factor capital’, essa pessoa saberá que nunca encontrará a maneira de saltar fora dessa caldeira, a não ser que seja colocada diante de uma bondade incondicional que a possa acolher tal qual é. Descobrir esse meio é o propósito da minha obra em três volumes acerca das «Estruturas do mal».[3] É uma luta ‒ parecida com a de Job ‒ com vistas a apresentar como absolutamente necessário algo que a possa levar para lá da solidão e do desamparo. Não é possível falar do medo como um sentimento momentâneo, que vem e vai e vem, tal como ocorre com o clima: de bom vira para mau e logo volta a ficar bom. É importante que o medo seja reconhecido como um princípio fundamental.

Folheiem uma revista ilustrada e nas últimas páginas irão encontrar a imagem cruel de uns quantos turcos que levam atado a um carro blindado, através de um cabo de aço, um jovem acabado de ser torturado durante três dias e que agora o arrastam pelo chão até conseguirem que ele acabe por morrer…

É a crueldade que nos submerge, quando vemos aquilo que alguns homens são capazes de fazer, entre gargalhadas, plenamente conscientes. Ou quando, de seguida, deparamos com as últimas notícias da Bosnia-Hersegovina… Porquê serem só os homens os que fazem a guerra? Quem não for capaz de entender esta questão não será capaz de entender as primeiras páginas da Bíblia que falam do pecado original. Explicar esta história é, no fundo, a história da minha vida. É isso que eu quero e procurei querer entender, de modo fragmentado, sobrepondo uma série de aspectos, servindo-me de meia-dúzia de métodos diferentes, até, ao momento, insuficientes. Acho que estas primeiras palavras meio-soltas chegam como minha apresentação breve.

Vejamos se sou capaz de vos explicar por poucas palavras simples isto que é complexo.

Até hoje, a Igreja impede de facto o caminho de acesso à compreensão da Bíblia, bem como o caminho de acesso ao Homem, na medida em que ela se nega a ler estes textos míticos da Bíblia na sua grandeza e imediatez. Por causa do seu magistério, a Igreja continua a declarar que o mitológico é a-histórico. Por conseguinte, a história de Adão e Eva, em Génesis 3,1-7, nunca poderá ser visto como um mito puro. Mas para que ele continue a ser um relato histórico a Igreja terá, então, de continuar a manter a sua oposição, se não já a Galileu, pelo menos a Darwin e a Freud. Ora, em 1955, aconteceu que Teilhard de Chardin fora proibido de “publicar” os seus trabalhos de investigação simplesmente porque ele viu alargar-se o parâmetro temporal em ‘milhões de anos’, de modo a que conseguisse explicar como a natureza havia chegado à hominização. Se o fenómeno da descendência é, então, um processo que se realiza assim tão lentamente, isso quer dizer que a transgressão de Adão e Eva não se poderá entender como um ‘acto único’ que ocorreu em tempos remotíssimos, sem que de facto se saiba bem quando foi!

Ora bem: então como explicar que o pequeno texto do capítulo 3,1-7 do livro do Génesis não descreve algo que se passou muito muito tempo atrás, mas pretende apenas colocar-nos ante um espelho, a fim de que nós nos possamos reconhecer nesse espelho? Muito tempo mais tarde aprendi que as “histórias de origem”, no pensamento bíblico-mítico, não são relatos históricos sobre uma origem passada.[4] Nesses capítulos do Génesis, a palavra «no princípio» quer dizer «a essência do ser». Para exemplificar isto que vos digo, gostaria de vos apresentar uma história, de modo a que vocês se revejam nela.

Abram, por favor, o livro dos Salmos de Israel e leiam o Salmo 51 (50), que os editores judeus intitularam «Salmo de David, quando o profeta Natan foi ao seu encontro, depois do seu adultério seguido de assassinato de Betsabé». Ao lermos as palavras «a minha mãe concebeu-me em pecado» (v. 7) somos levados a pensar que elas foram pronunciadas por alguém que estaria disposto a remeter a sua culpa para um erro ou defeito de descendência, tal como sugere o tom literal do texto. Ora, o que se passa é precisamente o oposto! «A minha mãe concebeu-me em pecado» deveria ser traduzido por “Quando agora contemplo toda a minha vida passada até este momento e me dou conta da máscara de monstruosidade que sempre usei, é mais do que evidente que aquilo que acabou de acontecer comigo agora mesmo (adultério seguido de assassinato) não pode ser o resultado de uma decisão pontual, momentânea”. Um homem não se converte da noite para o dia em invejoso, mentiroso, criminoso e assassino. «A minha mãe concebeu-me em pecado» pretende, de acordo com o valor das palavras, remeter a declaração de culpa para a sua geração, para a existência humana. No entanto, o Salmo pretende o contrário, como se David tivesse querido dizer: “Meu Deus, se quiseres perdoa-me; a minha vida toda está diante dos teus olhos e surge como uma preparação ímpar daquilo que agora acaba de se manifestar à luz do dia: a minha obsessão pelo poder a partir do meu estatuto de Rei, a minha hipocrisia diante de Deus como assassino que fui, como, por exemplo, ter sido capaz de caminhar sobre cadáveres como fui e que continuo a ser, e que sempre serei.” Lendo assim, não existe um começo nem um fim, não é verdade?!!!

Esta é uma história minúscula, que, creio eu ‒ e creio que vocês também a podem ler nessa perspectiva ‒, pretende explicar porque é que apenas os humanos são incapazes de viver entre si tal como são, bem como relacionarem-se com o mundo que têm diante de si e ao seu lado de um jeito que permita que o seu coração possa alcançar o paraíso da felicidade desse mundo criado por Deus.

Se me for permitido desenvolver em algumas linhas este tema bíblico, vocês descobrirão onde está o verdadeiro problema: trata-se do potencial crítico de uma perspectiva que apenas pretende entender. De acordo com a teologia dogmática da Igreja, antes de mais nada os homens pecaram porque foram desobedientes. A ser assim, a solução para os nossos problemas seria facílima. Se toda a depravação consiste em não ser capaz de mostrar obediência suficiente, então deveríamos procurar como instituto de redenção precisamente uma Igreja capaz de impor a obediência de um modo autoritário e punitivo. E assim a submissão mais humilde seria a melhor e a mais adequada obra para, de novo, nos pormos em harmonia com Deus.

Na verdade, neste relato fremente da primeira Queda de Adão e Eva, a Bíblia pensa de modo completamente distinto. Não é que até então nunca ninguém tivesse pensado em mitos que procurassem explicar a situação humana a partir da desobediência. Na verdade, na Mesopotâmia já existia um mito segundo o qual o deus Marduk teria criado o ser humano a partir do sangue de um demónio rebelde. Esses homens, vistos assim, seriam portadores de uma vida que os sobrepujava porque essa vida violenta lhes circulava nas veias e os levava de desacato em desacato e de revolução em revolução. A ser assim, só a bota dos poderosos os conseguiria manter dentro da cerca dos limites admissíveis e frenar os seus caprichos.

Contudo, eu ainda continuo a ver alguns exegetas explanar estas pérolas preciosas da tradição bíblica como se não passassem de um mito babilónico. É penoso ouvir dizer que nós, os humanos, pecamos fundamentalmente não apenas porque desobedecemos, mas também por causa do nosso orgulho e da hybris ou da desmesura. É óbvio que pecamos contra um preceito e é evidente que queríamos ser Deus. Mas, mesmo que nunca tivéssemos assistido às explicações de Alfred Adler, pelos anos vinte do século XX, sabemos que o orgulho de modo algum é uma necessidade instintiva genética ‒ ‘originária’ ‒ mas uma forma de reacção perante sentimentos profundos e complexos relacionados com inferioridade. Um avestruz com o seu comprido pescoço que corre de modo pendular e solene pela areia do deserto fora ou um pavão real que abre o seu enorme leque de penas coloridas, deles não se pode dizer que são vaidosos, orgulhosos e egocêntricos; pura e simplesmente, são assim.

Uma fábula de La Fontaine pode, de facto, explicar-nos o que é o Mal. Numa certa tarde, uma rã encontra-se com um boi, o qual lhe mete tanto medo que ela faz por igualar o seu inimigo: põe-se a inchar tanto tanto tanto que acaba por rebentar. Curiosamente, a etimologia alemã para böse («mal») é aparentada com o inglês boast («alardear») e ambas derivam da raiz indo-germânica bhou, que quer dizer «insuflado», «inchado», cheio de medo ao ponto de ficar desmesurado.

Deveria ser por esta via que a nossa investigação destes sete versículos da Bíblia deveria fazer caminho. E, como introdução, interroguemo-nos: Poderá, uma história bíblica que tem mais de dois mil anos, ajudar-nos a entender Sarajevo? Poderá um texto qualquer do Antigo Testamento ser útil para entender a paranoia e a loucura dos homens?

E vocês perguntarão: ‒ Mas, então, não foste tu que agora mesmo acabaste de dizer que o ‘pecado original’ é um processo muito longo, quando se dá razão aos paleontólogos e aos biólogos? Não nego. Os etólogos dizem-nos que até o mero assincronismo em programas de comportamento específicos da Idade da Pedra cria, nos tempos modernos, confusões de todo o tipo. Basta que um sérvio se junte com outros sérvios para que de imediato um croata deixe de ser um ser humano… A vinculação grupal ao seu clã pode ser vivida, portanto, de uma forma incrivelmente mais íntima, mais próxima e mais densa e tensa do que a uma comunidade humana e ir muito para além das fronteiras da simples solidariedade de grupo. Que diriam vocês quando subitamente se deparassem com um grupelho de homens alvoroçados liderando cidadãos perfeitamente comuns em Hoyerswerda ou em Rostock a aplaudirem o acto de deitarem fogo a casas onde vivem mulheres e crianças? O argumento “Eles não são alemães” é mais do que suficiente! Justificam-se com “Eles vêm de fora e nem sequer percebemos a sua língua”… “Falam uma língua estrangeira .. São bárbaros…”, como se ainda estivessem na Antiguidade Grega e ainda não tivessem sequer ouvido um único decibel do recém-chegado pregão cristão paulino: “Sois um só”! (Gálatas 3,28)

Neste ponto, a etologia tem muita razão quando diz que a moral é, antes de tudo, uma defesa do egoísmo de grupo, é a subordinação ao legislador e que muito dificilmente se poderá cultivar, já que a cobertura de tudo quanto a História e a Humanidade difundiram a esse respeito não passa de uma finíssima película de gelo mantida por um vento pífio. Seriamente: será que é possível compreender tragédias deste quilate a partir da Bíblia?

Eu defendo que sim. Um investigador do comportamento – Nikolaas Tinbergen (1907-1988) – declarou há muitos anos que a transição para a humanização não tem forçosamente de se processar durante centenas de milhares de anos, como acontece com um fenómeno biológico, mas inclui, em si, a consciência genesíaca, a conquista progressiva da capacidade de expressão verbal (aquisição de uma língua) o que permite que os humanos façam alguma ideia do que andam a fazer nesta Terra, ainda por cima, num contexto vital que inclui o medo, medo que nunca viram nem diminuir nem desaparecer. Aquilo que animal algum sabe, os seres humanos sabem-no a cada momento. Aquilo que experimentamos como animais é uma inevitabilidade da vida: um dia morreremos. N. Tinbergen julgava que apenas nós, os humanos, é que tínhamos aprendido que a solução definitiva para os conflitos era matar ou usar a ameaça de morte. Aquando da luta entre os veados, no período do cio, também os machos jovens a usam e, por isso, tercem e embatem as suas armações córneas entre si até que, ao fim de algum tempo, o mais forte triunfa, conquistando, assim, a possibilidade de transmitir os seus genes à cadeia evolutiva. O mais fraco retira-se perdendo qualquer hipótese de cobrir a fêmea pela qual se bateu, mas, em contrapartida, conserva a sua vida: sobrevive!

Os seres humanos, porém, não actuam assim! Por serem seres inteligentes, os seres humanos são os únicos a saber que o seu inimigo derrotado aprenderá com a derrota e melhorará as suas armas e a sua táctica de ataque, escolhendo melhor, da próxima vez, o momento e o lugar. No caso do Homem, o inimigo acabaria por surgir mais tarde e muito mais perigoso, caso fosse deixado vivo. E isso assusta e muito o ser humano. Tudo indica que, com o relato esquemático de Caim e Abel (Génesis 4) e ao longo de milhares de séculos, aparentemente os seres humanos só foram capazes de aprender que a única solução definitiva para o conflito é quando tudo fica marcado pelo fim físico do adversário. A única angústia aflitiva que essa acção provocaria seriam os sentimentos de culpabilidade. No entanto, e mais uma vez, acabamos confrontados com o factor medo. A partir desta análise é fácil entender tudo o resto em matéria de comportamento humano.

Vejam, por exemplo, a tranquilidade com que dentro de um B-52 um piloto norte-americano faz chover napalm sobre a selva de Ho-Chi-Minh enquanto toma café e, após ter conquistado terreno em Bangkok, vai revelar as películas de fotografia que fielmente registaram o desastre provocado no solo. Dirão vocês: De facto, não revela medo algum, tem nervos de aço enquanto empunha a alavanca de comando! No entanto, esse mesmo homem seria vítima do pior dos medos caso a sua amiga, em Detroit, o abandonasse ao vê-lo regressar a casa curvado com má fama de «cobarde». Por causa dela e do inimaginável horror subsequente, nunca se oporia à ordem de comando. Na sua condição de «Forças Especiais», ele teria de levar a cabo o seu maldito trabalho para o qual fora proposto. Não cumprir a ordem recebida seria a destruição da sua existência burguesa. As coisas são tão simples quanto isto: em alguns departamentos, em alguns níveis da cadeia de comando levantar um nada a ponta do véu sobre a verdade pode acarretar a ameaça de um aniquilamento existencial. E isso mete muito medo.

Todo aquele aluno que fizer referências à minha teologia não será ordenado pelo bispo de Colónia. Todo aquele que expuser e fizer propaganda dos meus livros em Salzburgo ouvirá dizer ao bispo de Salzburgo (via Innsbruck) que será melhor pensar duas vezes e decidir-se por mandar retirar os livros dos escaparates da livraria. Quem escrever livros na linha daquilo que eu proclamo ‒ como faz o meu velho amigo Peter Eicher ‒ deixará de ser convidado para debates, conferências ou congressos teológicos. Dá trabalho procurar superar e ver-se livre do medo; nada nos é dado de mão beijada.

Voltemos atrás à história do pecado original. Que terá que ver, essa história, com tudo o que acabei de dizer? É muito simples; tudo poderá ser sintetizado em meia dúzia de palavras. Na exegese especula-se muito sobre o que a serpente sabe, mas que não revela antes de começar a falar com a mulher. Aceitem por favor um comentário aos ‘mitos’ ‒ hoje em dia muito na moda ‒ os quais são herança da história das religiões de toda a humanidade que habita a face da terra e nos quais existem narrativas análogas à da Bíblia. Neles vemos a mesma serpente, apresentada sob a forma de um ser com um enorme corpo que cinge a Terra a toda à volta ‒ tal como ocorre na mitologia germânica (Midgard) ‒ e que, quando se contrai, aperta e angustia os habitantes da orbe. Ou então, à maneira de um caimão monstruoso, diante da Terra, com suas fauces abertas pronto a engoli-la, ameaçando mergulhá-la novamente no “caos primordial”.

No capítulo 175 do Livro dos Mortos do Egipto encontramos um diálogo comovedor entre Osíris, o deus da morte e da vida, e o deus criador Áton, o qual transcorridos todos os dias – depois de milhões de anos – voltará a transformar-se num corpo de serpente coberto de escamas radiosas cheias de reflexos esverdeados brilhantes, fluorescentes.

Há um momento em que o ser humano começa a tomar consciência do abismo sobre o qual todos os dias move os seus pés. Aquilo que a serpente diz no livro do Génesis, em si mesmo corresponde, por incrível que pareça, ao pesadelo de toda a religião instituída. Que ‘a tentadora’ compareça no Paraíso do mundo a tirar nabos da púcara sobre o que Deus disse ou deixou de dizer, dificilmente seria imaginável como algo fiável… Em inúmeros comentários bíblicos continua a descrever-se a serpente como uma cúmplice secreta da tribulação do homem no contexto das religiões da fertilidade. Noutros, é apresentada como um auxiliar de Deus. Mas aquilo que não pode deixar dúvidas é que a serpente também foi criada por Deus. Todo o mal brota das profundezas da própria criação. Não há fundamento algum para crer no Diabo, tal como o afirmou e demonstrou há várias décadas o especialista em Bíblia Herbert Haag, que por causa disso foi muito contestado. Entretanto, que se passa com a linguagem empregue sobre a serpente ou com o medo no coração?

O judeu Martin Buber traduz sagazmente e com bastante rigor a linguagem da tentação da serpe (oportunidade que infelizmente se desperdiçou na versão unitária e ecuménica da Bíblia): «É verdade que Deus disse ‒ pergunta a serpente ‒ que não devíeis comer fruto algum de nenhuma das árvores do jardim?» Cá entre nós, convenhamos que é exagerada esta proibição, e, no entanto, ela irá impregnar o mundo inteiro dum terror que ressoará sempre que estivermos tentados diante de tudo o que seja proibido. Faz lembrar os mitos da Grécia Antiga, quando Tântalo, por ter comido carne humana, é colocado junto a uma macieira por onde corre um regato de água. De cada vez que, morto de sede, se inclinava para sorver água, esta desviava-se das suas mãos e o mesmo se passava com os frutos: um golpe de vento afastava-os das suas mãos. Tântalo sofreu tormentosamente, por toda a eternidade.

Tudo leva a crer que a serpente está a querer insinuar: “Será possível que Deus também seja assim?! Criou todo este universo excessivo em sumptuosidade e formusura, e afinal procurava apenas um meio de torturar a humanidade?!!!” Tal representação é certamente tudo menos uma hipótese piedosa. Se, virando as costas a púlpitos e cátedras, alguma vez se lembrassem de fazer um inquérito acerca do conteúdo da nossa fé eclesiástica, a fim de saberem em que é que realmente acreditam os crentes em geral, com toda a probabilidade teriam um resultado muito parecido com o que uma actriz de cinema francês em certa ocasião disse: «Creio em tudo o que diverte, engorda ou é proibido.» Dito de outro modo: Deus será seguramente boa pessoa, porém nós entendemos que aquilo que é específico do religioso é aquilo que se interpõe como um curioso motivo de estorvo no nosso caminho rumo à vida. Mais adiante, numa frase pronunciada pela serpente, verifica-se que Deus, afinal, não havia proibido absolutamente nada; Ele simplesmente queria arrebatar ao homem a possibilidade de ser “conhecedor do bem e do mal” ‒ senhor exclusivo, absolutista, dono todo-poderoso que não admite partilhar saber e poder.

O que é que acontece quando o homem, envolto na ambivalência do medo, se depara com Deus? Acontecerá aquilo que aconteceu à Eva. Ela responderá “que não” à serpente: que Deus não tinha usado aquele tom de voz! Deus permitira tudo! Só da árvore colocada no centro do jardim é que tinha proibido que se comesse; inclusivamente, tinha proibido que se lhe tocasse (Génesis 3,2-3).

Todos os comentários bíblicos enfatizam bastante esta resposta de Eva. Mas, para que a possamos entender, vocês terão de se meter na pele de alguém que se esforça por se encontrar com Deus e que deixa de o poder apenas porque o tom do seu discurso parece que castiga até à morte o mero intuito de deslocar a mão em direcção à arvore proibida, como se isso constituísse uma transgressão do tabu estabelecido pelo próprio Deus. Caros amigos: vocês têm agora diante dos vossos olhos um Deus que anda atrás do Homem, o vigia e apenas tem como resposta única a morte. Deixaram de ter, diante de vós, um Deus com quem até se poderia tentar entabular uma conversa acerca do mandamento por Ele colocado sobre a mesa como hipótese... E, diante da mulher, está todo um universo em cujo centro existe algo que constitui um perigo gravíssimo pelo simples facto de te abeirares dele e o desejares! Vocês têm por diante uma pessoa que vos algema as mãos, a não ser que vocês se proíbam a si mesmos de fazer aquilo que está proibido. Imaginem o que é as pessoas andarem a vida toda de “mãos-no-ar” fugindo continuamente do medo, medo que não vos deixa de sedutoramente atrair sempre que vos venha à mente o objecto da sedução. Agora, vocês são capazes de compreender com relativa facilidade como os seres humanos conseguem num abrir e fechar de olhos fazer precisamente o contrário de tudo aquilo que até então se esforçaram por não fazer.

Este é o momento ideal para que compreendam, através da psicoterapia e da psicanálise, aquilo que ocorre dentro do ser humano. Compreender como muitas das conversas e encontros entre dois seres humanos, que se esforçam por se entender, fracassam logo nas primeiras palavras que soltam da boca para fora … apenas porque cada um deles está cheio de medo do outro. As coisas entre marido e mulher começam logo à partida mal ‒ refiro-me à tentativa de restabelecer um matrimónio que se rasgou ‒ apenas porque um deles sente que terá de se submeter e entregar ao outro. E isto ao ponto dum torvelinho de medos se atiçar de tal forma que faz imediatamente avivar a instabilidade interior e, a seguir, tornar completamente impossível tentar sequer implementar as “acções terapêuticas” mais simples! Todas as teorias que dizem que os seres humanos pecam por orgulho e desobediência se esfarelam diante dos dados do texto bíblico. No eco do texto bíblico surge enevoado um ser humano lutando desesperadamente por colocar Deus à margem de qualquer suspeita recordando palavra por palavra aquilo que Deus disse. Acontece que, como ele não consegue realizá-lo sem a deformação do medo, a tragédia da vida humana converte-se em algo quase inevitável. Na frase que, no texto bíblico, se segue de imediato, vocês a compreenderão sem dificuldade alguma. A serpente passa ao ataque!

Deus não falou nesses termos, mas tal como o livro do Génesis o refere (lembra a serpente): ‒ «Não, não morrereis, porque Deus sabe que no dia em que o comerdes [do fruto da árvore do meio do jardim] abrir-se-ão os vossos olhos e sereis como Deus, ficareis a conhecer o bem e o mal». (Gn 3,4-5) É assim, de súbito e inesperadamente, que a serpente garante ao Homem não só onde se encontra a vida e a riqueza da sua existência como ainda lhe oferece uma lição iniciática acerca de Deus. Quem são os governantes capazes de ameaçarem os seus súbditos com a morte se não apenas aqueles governantes que temem os seus próprios súbditos com um medo de morte!!! Os seres humanos já não deveriam temer a divindade, mas antes conhecer, como às suas próprias palmas das mãos, quanto é vacilante o trono dos tiranos que se aproveitam da morte para intimidar seus súbditos!!! Nada no céu e na terra resiste diante daquele Homem que ousa conhecer o bem e o mal. E sabermos que a Promessa divina consiste precisamente nisso…

A exegese mais grosseira dos capítulos iniciais do livro do Génesis continua até aos dias de hoje a ensinar um sem número de factos e explanações que só induzem perplexidade: o conhecimento acerca do bem e do mal significaria a pretensão de o ser humano poder definir por si próprio e autonomamente o que é bem e o que é mal ao nível moral. O texto bíblico não tem nada a ver com isso! Se Deus tivesse proibido a humanidade de aceder ao poder de distinguir o lado moral do bem e do mal reproduziria, sim, a teologia do idealismo alemão, teologia que é estranha aos textos bíblicos. Que o ser humano possa dispor dos conceitos de «bem» e de «mal» de forma mágica para daí tirar «conhecimento» e proveito, isso equivaleria a expulsar o texto bíblico do seu contexto trágico e a transferi-lo para o território da superstição.

Caso tenham curiosidade naquilo que realmente de seguida vai acontecer, então, por favor continuem a ler o texto do Génesis duas linhas mais abaixo: «Então, abriram-se os olhos aos dois e, reconhecendo que estavam nus, coseram folhas de figueira umas às outras e colocaram-nas, como se fossem cinturas, à volta dos rins.» (v. 7)

O problema da existência humana não tem a ver com aquilo que os seres humanos não conseguem alcançar. A astúcia da tentação consiste em que aquilo a que conseguem deitar a mão acaba por se tornar totalmente distinto daquilo que à partida lhes parecia. Nesta passagem bíblica, o significado de bem e de mal tem a ver com aquilo que o capítulo 2 (v. 18) já indicava. Por exemplo, não é bom que o ser humano viva sozinho, e, no entanto, isso não tem nexo algum com a moral… O significado da expressão é que, para um ser humano, não há coisa mais insuportável do que não encontrar alguém que lhe queira bem. Uma vida que nos consome no desespero e nos faz indiferentes e sonâmbulos a tudo e a todos é uma vida malgasta, desperdiçada: é uma vida sem sentido. Foi precisamente isso que imediatamente a seguir acabou por acontecer a Adão. O «mal» ou o «não-bem» não tem nada a ver com a “moral”, mas com uma deficiência destructiva (carregada, por vezes, de muita ambiguidade) que impregna tudo aquilo a que o ser humano aspira. O «bem», pelo contrário, é o conjunto de tudo aquilo que faz feliz um ser humano.

O que é que acontece quando Adão e Eva se apercebem que estão nus? Não acontece nada de diferente do que já antes sabiam enquanto criaturas, só que sem a vergonha dessa realidade («Estavam ambos nus, tanto o homem como a mulher, mas não sentiam vergonha»: Génesis 2,25). Porém, agora essa realidade converte-se na verdadeira dialéctica da existência humana. Enquanto um par de olhos benevolentes, bondosos e compreensíveis nos contemplam, podemos mostrar-nos tal qual somos, inclusivamente, tal qual eramos à nascença: desnudados. O amor (que significa “entregarmos a outrem todos as nossas armas” ficando totalmente desarmados perante o totalmente diferente de nós…), esse Amor, feito de uma entrega confiante, até ao nível corporal nos ensina a renunciar a todo o tipo de receio ou vergonha e a viver inclusivamente a própria nudez como um estado de embriaguez e de felicidade. Não ter vergonha de se ser tal qual se é faz parte obrigatória de um amor oblativo, de um amor que se entrega totalmente ao outro. «Ter vergonha» significa que não se está totalmente na relação … Significa que se está à defesa! E em quem está à defesa não devemos depositar inteiramente a nossa confiança. Quando «… o SENHOR Deus formou o homem do pó da terra e lhe insuflou pelas narinas o sopro da vida» (Génesis 2,7), quando depois o levou para o centro do jardim do Éden, lhe ofereceu uma mulher em tudo igual a ele («uma só carne») os seres humanos não sentiam vergonha (Génesis 2, 25), porque estavam diante de Alguém (Deus) que lhes inspirava confiança plena!

Prossigamos um pouco mais; por fim, surge a “porta estreita do retorno” diante da qual está um anjo com uma espada flamejante. Afinal, existia um motivo para a felicidade: existia uma felicidade «desenvergonhada». Quão longe estamos nós de tudo isto! Quando ouvimos dizer que a primeira coisa que Deus faz, quando regressa ao jardim do mundo, foi revelar o amor como uma maldição, no fundo está a querer dizer que o homem tenderá a dominar a mulher, razão pela qual o patriarcalismo, motivado pelo medo (e pela fragilidade) do homem, será o primeiro castigo infligido pelo homem à mulher. O amor rapidamente se transformará então numa grilheta, numa corrente de exercício de poder. Tudo o que depois o texto bíblico diz não é mais do que aquilo que se ouve em qualquer consultório de aconselhamento matrimonial e de terapia familiar. Dificilmente alguém poderá acreditar que poderá ser amado tal qual é e, portanto, ei-lo que se embeleza mais e mais com folhas de figueira, acabando por se adornar com o maior número possível de títulos distintivos e de prémios conquistados: proezas que ele soma àquilo que verdadeiramente é. É mais do que provável que tudo isso acabe por o fazer distinto daquilo que ele verdadeiramente é. Sendo assim, quando é que será permitido que digamos toda a verdade contida no nosso coração se não naqueles lugares e momentos em que um par de olhos clementes e bondosos nos contemplam e apenas desejam que vivamos tal qual somos, ficando muito agradecidos simplesmente pelo facto de existirmos tal qual somos? É esta a pergunta que Lutero ainda faz hoje ao Deus clemente.

Como superar o abismo do medo de não passarmos de pó, apenas pó, amorfos, inconsistentes, caducos e moldados por um qualquer par de mãos? Como encontrarmos a nossa dignidade a partir de tanto pó e regressarmos, finalmente, à grandeza da luz estelar, que apesar de tudo continuamos a ser…?

Será possível perceber a existência da guerra no nosso século e tudo o que ela tem de brutalidade, de egoísmo de grupo, com as suas mil formas de destruição? Eu afirmo que é. Basta que façamos o percurso que começa na história primitiva da tradição yahvista[5]. Entramos, agora, no campo da religiosidade.

Um dos motivos porque fui condenado em Março deste ano, e que fez com que eu não pudesse continuar a ser presbítero, é a acusação de eu ter atacado a «teologia do sacrifício». Na verdade, eu faço-o por uma boa razão: porque foi desse modo («culto sacrificial») que começaram os filhos de Adão e Eva (Génesis 4,1-16), dispondo-se a “sacrificar”, apenas com a finalidade de ganhar os favores de um Deus que se tinha tornado ambivalente (Génesis 4, 4-5). Aquilo que se lê aí, no relato bíblico, vai contra a nossa vida. Não é possível que alguém o aceite. Não é justo fazer isso a alguém que leva e oferece tudo aquilo que de mais produtivo foi capaz ao ofertório do sacrifício ‒ ainda por cima cheio de vontade e de disposição sem nada reservar para si ‒, tendo entregue tudo como reparação de um crime cometido em tempos passados: a destruição de um tabu! Não seria possível, ao menos, que lhe fosse restituído o prestígio de poder voltar a ser um humano merecedor da Graça? Quem não pensaria assim?

Porém, estando nós nestas elucubrações, damo-nos conta de que a nosso lado o nosso irmão ou a nossa irmã fazem precisamente o mesmo percurso, tecendo o mesmo enastrado à volta do altar de Deus: a espiral da desgraça. Se esses outros tão desgraçados como eu vivessem numa galáxia outra e sua existência até me fosse desconhecida, eu nunca me sentiria ameaçado e até seria capaz de lhes ter consideração. Mas, enquanto meus irmãos, ainda por cima tão parecidos comigo, tão próximos de mim e dotados das mesmas qualidades que eu, isso faz com que todo o problema entre no terreno da concorrência até que todos acabem convertendo-se em inimigos mortais… (As “beatas invejosas” são um exemplo ilustrativo e corriqueiro em todas as igrejas…)

Creio que toda a mensagem de Jesus de Nazaré consiste em pegar as pessoas pela mão com toda a complacência do céu e em ensiná-las a reencontrar o caminho do paraíso perdido. Jesus envia-nos um anjo sem a espada da justiça e do castigo. Se formos capazes de nos apercebermos da quantidade de medo que existe no fundo de cada humano rapidamente todos nós sentiremos, com uma clareza luminosa, que os humanos só têm futuro a partir de uma bondade compreensiva que faça caminho connosco. Nenhum veto moral resolve a tragédia da condição humana. Toda a moral e toda a lei chegam demasiado tarde[6], caso o diagnóstico seja aquele que acabo de descrever.

Caso tentem fazê-lo por vós mesmos, entrarão na água, pisarão a serpente do nada na esperança de poderem conseguir atravessar o mar. Nesse momento, impõe-se-vos uma escolha: ou se apercebem da violência do vento e da força da ondulação do mar e encher-se-ão do medo que vos levará ao fundo e, nesse caso, não haverá salvação; ou então ficarão imóveis contemplando com os olhos o Homem que vos olha a partir da margem e apenas vos diz: «Vem! Atravessa o medo e verás que consegues.» Eis tudo o que foi a vida de Jesus. É por isso que Jesus foi ‘luz da luz’: porque abriu os olhos ao cego, porque teve a valentia de tocar os corpos de dez homens deformados pela lepra. A ternura foi mais forte do que o gueto da precaução de não se abeirar demasiado para não ser contado entre os intocáveis, os impuros (Lucas 17,11-19).

Procurem fazer isso e verão que rapidamente se encontrarão no olho do furacão da mesma perturbação, do mesmo desespero. Até hoje, Igreja alguma admitirá que vocês se tornem “amigos de pecadores e publicanos” … sem condições ou contrapartidas. Imaginem por um instante que ficaram apenas diante da ovelha «número cem». Esqueçam as restantes e o que se passa com elas, pois eu vos garanto que nunca chegariam a saber nada delas, mesmo que as vissem dez anos a fio. A única coisa que lhe poderá fazer ‒ pelo simples facto de a acompanhar ‒ é animá-la, dizendo-lhe que tem direito a aproveitar de tudo o que lhe ocorrer viver. E invista nisso muito tempo. Distante dessa pessoa, ou seja, a partir de fora, nunca chegaria a saber como tudo deve ser nem como tudo tem de ser. É a partir dessa pessoa, por meio dessa pessoa que aprenderás o modo como Deus fala! Dia após dia, lentamente, você aprenderá como Deus fala, como tudo deve ser e como tudo tem de ser! O nosso Deus é o Deus da Vida e por isso só se revela na História da Humanidade.

O Evangelho de Lucas apresenta-nos a parábola de um homem que é um «cobrador de impostos» («publicano») que acaba de sair do Templo, a caminho de casa, “justificado”. No interior do Templo não fez nada, não formulou nenhum propósito de correção ou emenda (como acontece na oração católica), nem sequer de conversão. Toda a sua conversão consiste em ter confiado em Deus num momento de total desamparo. Ao mesmo tempo, mas com postura e estilo bem distintos, estava lá também um fariseu que se despedia de Deus com a clara consciência de ter tudo cumprido e em ordem, porém (na opinião de Jesus) não justificado por Deus. Eis a profecia de Jesus de Nazaré. Vocês, quanto mais se adentrarem por esse encalce específico de Jesus mais se adentrarão ao mesmo tempo no olho do tufão.

Toda a burocracia eclesiástica vive de fixar aquilo que é bom e aquilo que é mal, bem como da aplicação dos castigos previstos nas transgressões das leis que essa mesma burocracia impõe. No entanto, aquilo que é por demais precioso no final do Sermão da Montanha (Mateus 7,1-5) são estas palavras: «Não julgueis, para que Deus não tenha de vos julgar», uma fórmula que bem poderia advir da psicanálise. Todas as normas que impomos aos outros acompanham-nos até pela noite fora; fazem parte do nosso superego compulsivo, regulador da nossa própria vida. Devemos ser tão bondosos para com os outros como de igual modo e grau para connosco. Que confiança temos quanto à nossa própria ‘nudez’? E depois vêm estas palavras maravilhosas de Mateus 5: «Bem-aventurados os que sofrem» (v. 10), e em Lucas «Bem-aventurados os que choram.» (Lucas 6,21)

Se entendi alguma coisa do Novo Testamento e da mensagem de Jesus durante os milhares de conversas com as pessoas, isso foi sem dúvida a verdade destas sentenças de Jesus nas Bem-aventuranças. Quantas vezes ouvi da boca de gente que entrava alegre pela porta do consultório que tinham vergonha de chorar? Nunca se atreveram a tal, a confessá-lo… Sentiam que as lágrimas as deixavam mal, por dentro. Mas, para essas pessoas, chorar acabava por ser uma bênção, pois era como se abrissem as portas da liberdade a sentimentos que andavam a tramar, a congelar a sua vida. Só existe uma única modalidade de felicidade. Essa consiste em poder ser pobre, em poder ser mendigo, em poder estar faminto, em poder estar indefeso. A Promessa (de Jesus) radica nisso. A paz chegará não dos que estão fortemente armados, mas dos impotentes e débeis. A bondade da compaixão não virá dos ricos, mas dos pobres. Todo aquele que planifique a sua vida para a levar de uma maneira bem guarnecida até ao fim não terá, segundo Jesus, recursos para deitar a mão às necessidades dos que padecem fome. Nos nossos dias, 50 milhões de pessoas morrem de fome a cada ano que passa: são mais do que todos aqueles que morreram durante os seis anos que levou a segunda guerra mundial! Que monstruosidade de sofrimento para esses! Se ao menos pudéssemos chorar de dor e de compaixão estaríamos um pouco mais perto de Jesus de Nazaré.

Porém, experimentem isso a sério, levem isso a sério e devolvam a Jerusalém a miséria não compensada dos povos. Digam à Igreja que não se trata de termos um Código que nos seus dois grossos tomos contêm apenas e unicamente imposições de penas e castigos. Impossível conciliar tudo isso com Mateus 7,1-5, onde está escrito: «Não julgueis!» Vocês verão que, na sequência de uma certa perturbação eclesial, rapidamente vos deixam ao abandono sob o pretexto de certos erros cristológicos, argumentando que Jesus quis uma humanidade sem fronteiras. E se vocês argumentarem que aquilo que verdadeiramente cura o ser humano é a confiança baseada na verdade ‒ a qual é incompatível com os juramentos! ‒ então, vocês estarão a mexer e a abanar com a estabilidade e a consistência férrea de todo o funcionariado da Igreja, o qual se fundamenta em dezenas de juramentos de fidelidade ao Magistério. E, já agora, acrescentem-lhes que um Magistério dessa índole nunca foi desejado por Jesus ‒ «Quanto a vós, não vos deixeis tratar por 'mestres', pois um só é o vosso Mestre, e vós sois todos irmãos. E, na terra, a ninguém chameis 'Pai', porque um só é o vosso 'Pai': aquele que está no Céu. Nem permitais que vos tratem por 'doutores', porque um só é o vosso 'Doutor': Cristo. O maior de entre vós será o vosso servo. Quem se exaltar será humilhado e quem se humilhar será exaltado.» (Mateus 23,8-12) ‒ e, nessa altura, vocês compreenderão o quanto a Igreja, em dois mil anos, se afastou da simplicidade da mensagem de Jesus de Nazaré, por causa de coisas como o “papado infalível” e a erudição da teologia.

Hans Küng disse que só pode protestar quem tem esperança. Quanto a esta Igreja romana tal como está constituída, eu não tenho a mínima esperança. Apenas posso dizer, tal como disse Thomas Müntzer: «Porém, do povo eu não duvido!». Acontece que ali onde se encontra o povo não existe Igreja instituída. Quatro quintos da actual República Federal da Alemanha, paguem ou não o imposto eclesial, na verdade estão fora da Igreja. Mas, onde deveríamos estar ‒ segundo o espírito de Jesus ‒ a não ser com estes? São como ovelhas sem pastor! Onde deveríamos estar se não fosse ao lado dessa gente que está em conflito com as leis eclesiásticas?

O livro «Kleriker» [em português: «Funcionários de Deus»] dediquei-o a uma mulher que me transcreveu, numa máquina de escrever clássica com teclas mecânicas, o meu texto manuscrito daquele livro, apesar de ter ficado cega devido à diabetes. Ela abandonou a Igreja; pura e simplesmente. E porquê? Encontrando-se grávida e por causa do bebé, para que ele não nascesse fora do casamento, casou-se aos 17 anos com um alcoólico em estado avançado. Separaram-se ao fim de cinco anos, tempo marcado por muito sangue, condição de que eu não tinha tido conhecimento; ela encobria e justificava os hematomas dizendo que se embebedara e caíra chocando contra um armário. Posteriormente, casou-se com outro homem, que um dia ameaçou o anterior marido: «Se voltas a molestar esta senhora, moo-te de pancada!» Era o seu segundo matrimónio fora da Igreja. O seu filho tomou conhecimento disso quando começou a sua preparação para a comunhão: «O teu apelido não é o mesmo do teu pai actual. Tu vais passar a chamar-te como se chama o teu (primeiro) pai». Uma bomba explodiu dentro daquela criança! Foi o cúmulo! Inadmissível!

Por saber como ninguém ‒ pela proximidade que já referi ‒ que a mulher cega que transcreveu o livro «Kleriker» se encontra bem perto de Jesus, eu concebo e continuo a bater-me pela necessidade de mudar pedra-a-pedra a Igreja.

O mesmo se passa na Física com a experiência de Michelson: uma única experiência pode deitar por terra toda uma bela teoria de Galileu. Efectivamente, a Igreja talvez acreditasse que Galileu não deixava de estar equivocado. As suas comparações eram demasiado simplistas. Segundo a Teoria da Relatividade e da Física Quântica é tudo mais complicado. Ela só tinha descrições de campo, mas nenhuma “constante de duração”. Seguindo esta analogia, também poderíamos aprender muitas coisas em matéria de «moral».

Para finalizar, com tudo isto pretendo que vocês aprendam também uma coisa. Talvez valha a pena protestar, no sentido que Albert Camus lhe atribuiu: simplesmente, pela coragem de combater tudo o que mata. Não existe a menor esperança de que a morte seja vencida, mesmo que eu venha a viver mais trinta anos e complete os 82 que Herbert referiu com ironia. Digamos que teríamos de protestar contra tudo o que é mortífero e a favor da vida. O protesto é uma parcela do absurdo, bem sabemos. Porém, o protesto permite-nos ter esperança no Homem, mas nunca nas instituições. A nossa vida não pode depender de se tais ou tais instituições se reformem ou não. Uma lei, pela qual todos vós suspirais ardentemente e que qualquer Papa até poderá aprovar do pé para a mão quando menos se espera ‒ é o caso do acesso ao sacerdócio por parte da mulher, o fim do celibato masculino ou o que quer que queiram … ‒ isso não passaria de uma palhaçada, uma farsa! As pessoas adultas, os homens de cinquenta anos, … será que têm de pedir permissão ao Santo Padre para poder ter os sentimentos que de facto têm? Será que eles sinceramente esperam que lhes seja permitido sentir ‒ talvez aos 82 anos… ‒ aquilo que já sentiam aos 42? É essa a solução para os problemas de que sofre a Igreja?

A mim, parece-me que não deveríamos aguardar que cada pessoa deva fazer aquilo que Deus deve dizer para ela fazer na sua vida. A alternativa a uma Igreja enferma não é uma outra Igreja distinta ou melhor, mas pessoas livres. Eu fundo a minha confiança nessas pessoas. Deus não quer escravos!





Eugen Drewermann

Tubinga, 9 de Novembro de 1992



Herbert Haag e Eugen Drewermann, “No os dejéis arrebatar la libertad – por un diálogo abierto en la Iglesia”, Herder, Barcelona 1994, pp. 67-101.

 

 

 

AGORA, O DIÁLOGO ENTRE HAAG E DREWERMANN

 

 



[1] Certos trechos de Lucas Lc 13,10-17 + Lc 13,24-30 e de Mateus são uma violentíssima bofetada em todas as hierarquias, em todos os eclesiásticos de todos os tempos. E, no entanto, esses Evangelhos, se lidos “a secas” na Liturgia, nunca produziriam alvoroço algum na Assembleia dominical católica, pois seriam sempre “recebidos” como peças de antiguidade, linguagem fanática e memórias conturbadas de disputas violentas na Palestina dos judeus, ‘corpos estranhos’ totalmente deslocados do nosso tempo moderno, parlamentar e liberal. É ou não é verdade que isso é a prova provada de que a Igreja hierárquica Institucional conseguiu aquilo com que sonham todos os que ambicionam o exercício absoluto do poder: anestesiar a multidão com histórias do passado a fim de a manipular a seu bel prazer? Ai de vós, doutores da Lei e fariseus hipócritas, porque fechais aos homens o Reino do Céu! Nem entrais vós nem deixais entrar os que o querem fazer. Ai de vós, doutores da Lei e fariseus hipócritas, que devorais as casas das viúvas, com o pretexto de prolongadas orações! Por isso, sereis mais rigorosamente julgados.” (Mateus 23,13-14)

[2] Palavras de improviso e sem manuscrito que acabam por revelar (como é manifesta…) a falta de um retoque de aprimoramento por parte do autor. Tome-se, pois estas linhas, como estão: possuídas pelo quanto terá sido difícil querer transmitir as realidades concretas e diversas do seu empenhamento pastoral nunca prescindindo das emoções a elas estreitamente ligadas, dimensão tão importante quanto elas constituírem apenas o núcleo do seu discernimento pastoral.

[3] Herbert Haag tinha escrito um volume sobre o tema do «Mal» intitulado, em castelhano, «El Diablo – su existência como problema» (Herder, 178).

[4] A Tese de Doutoramento em Teologia Bíblica de frei Armindo Vaz, defendida na Pontifícia Universidade Gregoriana, diz o seguinte: «a transgressão primordial descrita na narração [bíblica] o acto de comer o fruto proibido sempre fora entendida como ‘pecado moral’, causa original de todos os males do mundo. No entanto, este mito de origem não permite entender essa transgressão como ‘pecado’». Cf. Armindo dos Santos Vaz (sacerdote carmelita teresiano), “O sentido último da vida projectado nas origens”, Edições Carmelo, Marco de Canaveses 2011, ISBN 978-972-640-126-1. editorial@carmelo.pt  Tf.: 255 531 354.

[5] Chegados aqui, convém reservar um tempo para a leitura meditada do livro de Erich Fromm «Y sereis como dioses» (Paidos); «Yo shall be as gods. A radical interpretation of the Old Testament and its tradition» (New York). Num tempo em que “Deus está morto”, E. Fromm interroga: «Quem poderá ocupar o lugar da religião num mundo em que o conceito de Deus pode já estar morto, mas em que se terá de continuar a viver a realidade experiencial que está por trás d’Ele?» E. Fromm é o interlocutor por excelência de E. Drewermann, sobretudo pelos seus antecedentes intelectuais judaicos familiares e pessoais (ainda que ele não fosse ‘praticante’).

[6] Como é possível que o Cardeal português Tolentino Mendonça tenha proferido (esta barbaridade?!) de que a Modernidade falhou ao ter sido incapaz de legislar a Fraternidade? Cito: «Comentando também as características da “bandeira do projeto de modernidade”, consignadas nos atributos da liberdade, igualdade e fraternidade, o cardeal Tolentino considerou que as “sociedades democráticas acolheram a liberdade e a igualdade”, mas “a fraternidade ficou de fora”, como “não se pudesse legislar, como se não pudesse ser operacionalizada como um dever, como uma proposta ética, concreta a efetivar nas sociedades”.» (7MARGENS/Agência Ecclesia, 13 de Janeiro de 2021) Estou em crer que a citação noticiosa, imputada ao Autor, não é totalmente rigorosa e fiel ao seu espírito … porque o Amor (Fraterno ou sexual ou qualquer outro tipo de Amor) é, por natureza, não institucionalizável, sob pena de, na sua raiz, deixar de ser o que é. [NdT/pb]