teologia para leigos

21 de janeiro de 2021

A Igreja católica ainda tem futuro? - Herbert Haag


  

A IGREJA CATÓLICA AINDA TEM FUTURO?

Em defesa de uma nova Constituição para a Igreja católica

 

É com muita satisfação que escrevi expressamente para a edição portuguesa este prefácio ao meu livro «Nur ver sich andert bleibt sich treu», que em português aparece na colecção «Religiões» com o título «A Igreja Católica ainda Tem Futuro?»

Ele consta de três pontos fundamentais:

1. Jesus não fundou nem quis fundar uma Igreja.

2. Por isso, toda a estrutura ministerial remete para a própria Igreja. Jesus não criou nenhum cargo oficial. Assim, a Igreja pode proceder de modo totalmente livre com os ministérios. Pode mudar os actuais ou aboli-los e introduzir novos. Não deve tornar-se escrava dos ministérios que ela própria criou.

3. O mesmo vale para os sacramentos. Todos os sacramentos têm a sua origem na própria Igreja, e esta pode, neste domínio, proceder com liberdade: mudar o seu número, dispor do modo como relacionar-se com os sacramentos (por exemplo, se é necessária uma ordenação ou não para a celebração da Eucaristia).

Vou explicitar.

Este livro não nos vai libertar de todas as preocupações que a Igreja Católica nos causa presentemente um livro não consegue mudar a Igreja , mas pode apontar um caminho que a transformaria, se ela tivesse a sabedoria e a coragem de segui-lo. A Igreja cristã tem cerca de dois mil anos. As suas estruturas e a sua Constituição permaneceram, porém, praticamente as mesmas ao longo destes dois mil anos. Ora, já isto nos mostra que há algo aqui que não está certo. De facto, o homem, a sua vida, a sua história, as suas representações sociais, religiosas, políticas, são no ano 2001 completamente diferentes do que eram no ano 1001. Em 1001 ainda não se sabia nada do Brasil, e Portugal estava sob domínio árabe. Mas a Igreja, no essencial, manteve-se imóvel.

Houve vários factores que contribuíram para que a Igreja em nada mudasse. O principal foi que desde o século III se introduziu a ideia de que para o exercício de um ministério eclesial era precisa uma ordenação. Por isso, desde então já não há uma Igreja, mas duas: a Igreja do clero, que consta de Papa, bispos, padres e diáconos, os «sagrados», e a Igreja dos fiéis «normais», os «leigos». Todos os direitos e poderes estão com os do primeiro grupo; ao segundo, aos leigos, compete o cumprimento dos deveres.

É de admirar que esta situação tenha sido aceite obedientemente. De facto, era fácil ver que nos Evangelhos não existe uma só palavra referente a esta «ordenação sagrada». Jesus não queria que entre os seus discípulos houvesse diferenças entre os colocados mais acima e os situados mais abaixo. Esta é a sua divisa: «Não vos deixeis tratar por rabi, pois um só é o vosso Mestre, e vós sois todos irmãos» (Mateus 23, 8).

 

Jesus não quis fundar uma Igreja

O grande erro cometido consistiu em pensar-se que a Constituição hierárquica da Igreja foi querida por Jesus. Se assim tivesse sido, então não se poderia tocar nela. Se Jesus tivesse pretendido um Papa para a sua Igreja, ela teria de ter um Papa. Se Jesus tivesse desejado bispos com determinados direitos e deveres, esses bispos tinham de existir na sua Igreja. Se Jesus tivesse querido padres, tinha de haver padres. Nesta situação, a proposta de transferir para leigos os privilégios dos padres, por exemplo, a presidência na Eucaristia, teria de levar a uma divisão na Igreja.

Mas é preciso ir ainda mais longe. Devemos perguntar não apenas que forma de Igreja Jesus quis, precisamos de perguntar se Jesus quis pura e simplesmente uma Igreja. Ora, quanto a esta questão, há hoje unanimidade na investigação teológica e a resposta é: «não». Que Jesus não pode ter pensado na fundação de uma nova instituição torna-se claro pelo facto de que esperava como iminente o fim do tempo em que vivia. Deste fim próximo falam várias parábolas, bem como a palavra proferida por ele na última ceia com os discípulos: «Já não beberei do produto da videira até àquele dia em que o hei-de beber de novo no Reino de Deus» (Marcos 14,25).

Não é, pois, de admirar que a palavra «igreja» (ekklesia, em grego) não pertença à linguagem de Jesus. Nos quatro Evangelhos só se encontra duas vezes em São Mateus (16, 18 e 18, 17). É bem conhecida a passagem de Mateus (16, 18) em que Jesus denomina o discípulo Simão como uma pedra sobre a qual edificará a sua Igreja (ekklesia), mas hoje a investigação é unânime no reconhecimento de que ambas as passagens de Mateus têm origem pós-pascal e não são do Jesus histórico.

 

Instituição livre dos ministérios

Se Jesus nunca teve o propósito de fundar uma instituição, uma Igreja, então ainda menos podia prever uma determinada Constituição para essa instituição. O que aconteceu foi que a mensagem de Jesus foi levada a todo o mundo pelos seus discípulos e discípulas. Por toda a parte se formaram comunidades cristãs, em Jerusalém, Síria, Ásia Menor, Grécia, Roma, Itália, e desse modo surgiu a necessidade de se organizarem, o que, por sua vez, deu lugar a cargos de direcção. Desde o século III é uma instituição estável a estruturação em bispos (vigilantes), presbíteros (anciãos) e diáconos (servidores). Finalmente, quando Constantino, o Grande, em 313, no Édito de Milão, reconheceu o cristianismo em igualdade com as antigas religiões, a Igreja pôde adaptar os seus ministérios ao sistema romano de administração. Frente ao poder civil, desenvolveu-se um «poder sagrado», uma hierarquia.

É natural e evidente que a Igreja tenha formado um sistema de administração e instituído cargos. E porque não havia de aproveitar o sistema do Império Romano, apoiado numa experiência rica? Mas é preciso tornar completamente claro que todos estes cargos eclesiais foram criados por homens e nenhum foi criado por Jesus.

Foi a Igreja que deu a si própria a sua estrutura e organização, e os cargos que criou correspondiam às necessidades daquele tempo. A Igreja precisa, porém, de adaptá-los permanentemente às novas situações. Pode conservá-los, mudá-los ou aboli-los totalmente, segundo as exigências dos tempos. Os ministérios são para a Igreja e não, ao contrário do que pensam muitos hoje, os fiéis para os ministérios. Os ministros da Igreja devem estar ao serviço dos fiéis e não os fiéis ao serviço dos ministros da Igreja.

As necessidades dos fiéis são, portanto, a lei suprema na estrutura dos cargos eclesiais. Se essa necessidade for uma Igreja sem Papa, que seja uma Igreja sem Papa; se for uma Igreja sem bispos, que seja sem bispos; se for uma Igreja sem padres, que seja sem padres. A Igreja não só pode abolir os actuais cargos, mas também introduzir novos. Não pode capitular perante barreiras que ela própria ergueu (por exemplo, o celibato obrigatório), pelo contrário, deve afastá-las. O novo Código do Direito Canónico (Codex luris Canonici, N. 1752), de 1983, termina com a afirmação: «Salus animarum in Ecclesia suprema semper lex esse debet» (a salvação dos homens tem de ser sempre, na Igreja, a lei suprema). Isto quer dizer que a Igreja tem de colocar todo o poder que possui ao serviço dos seres humanos.

 

Sacramenta propter homines - também os sacramentos existem por causa dos seres humanos

Tal como no respeitante às estruturas da Igreja, também quanto aos sacramentos se julga que foram instituídos por Jesus. Segundo a tradição da Igreja, três coisas pertencem a um sacramento: é um sinal exterior que é mediador de uma graça interior e foi instituído por Jesus. Depois de muitas hesitações, o Concílio de Trento decidiu, no século XVI, que há sete sacramentos: baptismo, confirmação, eucaristia, penitência, unção dos enfermos, ordem e matrimónio. A Reforma só defendeu a existência de dois: o baptismo e a ceia, mas também do lado católico houve dúvidas quanto a alguns sacramentos. A unção dos enfermos é realmente um sacramento, que pode ser equiparado ao baptismo? Será o matrimónio um sacramento? Nunca houve dúvidas quanto ao baptismo e à ceia. No fim do Evangelho de Mateus há a ordem de baptizar dada por Jesus aos onze discípulos: «Ide a todos os povos, tornai todos os homens meus discípulos e baptizai-os em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo» (28, 29). E na última ceia com os discípulos, Jesus deu-lhes pão e vinho como seu corpo e sangue, e ordenou-lhes que o fizessem em sua memória (Lc. 22, 19; 1 Cor. 11, 24).

A actual investigação bíblica sabe que as narrativas da ceia no Novo Testamento estão fortemente influenciadas pelo modo como a Eucaristia era celebrada nas diferentes comunidades. Em linguagem técnica, diz-se que se trata de narrações que não contam o acontecimento histórico, mas o pensamento e a praxis da comunidade em que o Evangelho foi escrito, o que se chama formação da comunidade. Assim, as narrativas sobre a instituição do baptismo e da Eucaristia por Jesus são em parte formação da comunidade, isto é: a prática da Eucaristia não foi ordenada por Jesus, mas introduzida pelas comunidades. Sem entrarmos aqui em pormenores, podemos globalmente dizer que Jesus não instituiu nenhum dos sete sacramentos. Todos eles remetem para a prática das comunidades, são todos obra da Igreja.

 

A Igreja pode relacionar-se livremente com os sacramentos

Se todos os sacramentos foram instituídos pela Igreja, então ficam para sempre no âmbito da sua autoridade. Ela pode decidir por quem devem ser administrados e de que modo. Ao longo dos anos e dos séculos, vivemos neste domínio as transformações mais variadas. Ainda me lembro muito bem do tempo em que, se se queria comungar no dia seguinte, era pecado grave comer ou beber a mínima coisa a partir da meia-noite. Mais tarde, a Igreja aboliu esta determinação. Também houve um tempo durou vários séculos em que leigos presidiram à Eucaristia. Hoje, muitas comunidades têm de renunciar à Eucaristia, porque há falta de padres para presidir à celebração. A Igreja poderia mudar isto de uma penada, ficando o problema resolvido. A prescrição segundo a qual só um padre ordenado pode presidir à Eucaristia não provém de Jesus, pois, se assim fosse, a Igreja não poderia agir de modo diferente durante centenas de anos. A prescrição procede da Igreja, e esta torna-se escrava de leis que ela própria fez e que sem dificuldades poderia mudar.

 

O que não pode mudar na Igreja?

Se Jesus não fundou nenhuma Igreja nem instituiu nenhum sacramento, o que continua na Igreja que seja proveniente de Jesus? É ele o Senhor da Igreja, como permanentemente ouvimos? Sim e não. Quem levou a mensagem de Jesus a todo o mundo eram homens, seres humanos que estavam decididos a segui-lo como discípulas e discípulos e a formar uma comunidade, mas esta comunidade será sempre até ao fim dos tempos constituída por seres humanos e cometerá todos os erros que podem ser cometidos por seres humanos. É certo que Jesus estará sempre presente nesta comunidade, pois onde estiverem dois ou três reunidos em seu nome aí estará ele no meio deles (Mateus 18,20).

Jesus vê a comunidade dos seus discípulos e discípulas como comunidade de irmãos e irmãs, a qual tem como critério do seu comportamento a mensagem de Jesus. Tudo pode ser mudado na Igreja, só uma coisa é que não: a Palavra de Jesus, que lhe está confiada, Palavra que é a Boa Nova de Deus para os homens e para as mulheres. Noutros termos: Palavra referente à causa de Deus, que é a causa do ser humano. (…)

 

Herbert Haag (1915-2001), Biblista de renome internacional. Leccionou como Professor da Universidade de Tubinga.

Lucerna, 8 de Março de 2001

 

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 «Que Igreja (também) para as mulheres - Pe. João Alves, Diocese de Aveiro

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