UM PROGRAMA DE ACÇÃO QUE RELEGA O
“AMOR DESINSTITUCIONALIZADO”
É UM PROGRAMA ANTI-JESUANO
A (Apresentador)
- Monsenhor Gaillot, acha mesmo que a Igreja obscurece a esse ponto a imagem
e a mensagem de Jesus de Nazaré?
JG (Jacques Gaillot)
- Há algum tempo, fui convidado para um almoço nos arredores de Paris.
Dirigi-me de metro para o local. Ao sair, verifiquei que chovia a cântaros.
Abriguei-me num portal porque não levava nem gabardina nem guarda-chuva. Um
homem veio ter comigo e perguntou-me se queria o seu impermeável. Respondi-lhe
que ele também precisava dele: «Fique com ele. Sinto-me muito sensibilizado
pelo seu gesto». Antes de ele ter continuado o seu caminho, soube que era
judeu. Em seguida chega uma mulher com um guarda-chuva. Diz-me: «Monsenhor,
abrigue-se no meu guarda-chuva, levo-o aonde tiver de ir». E lá fomos de braço
dado, conversando. A certa altura diz-me: «Sabe quem é que lhe segura este
guarda-chuva? É uma muçulmana». Disse para comigo: que sorte não ter levado
nem gabardina nem guarda-chuva; assim, precisei dos outros. Se a Igreja não
tem necessidade do próximo, se ela possui a verdade, se ela sabe o que é bom
para os outros, não tem nada a receber. Quando se tem falta de qualquer coisa,
aceita-se receber. O próprio Jesus começou por pedir de beber à Samaritana
antes de lhe oferecer a água viva. A Igreja de hoje deve ser suficientemente
simples para receber qualquer coisa da sociedade; em primeiro lugar, dos
excluídos.
ED (Eugen Drewermann)
- Jacques Gaillot, o que o senhor diz, mostra o erro que cometemos continuando
a discutir a Igreja e continuando a
permitir que a questão nos seja colocada. Estou convencido de que não é numa
instituição que encontramos uma razão para nos mostrarmos humanos. Encontramo-la
em nós próprios, na nossa capacidade de vibrar com o nosso
próximo, nesta orientação do coração de que Jesus nos dá o exemplo. Se alguém
me dissesse: mostro-me humano para contigo, emprestando-te a minha gabardina
porque a Igreja o ordena, seria menos humano. É exactamente essa a opinião das
pessoas. Encontramos pessoas maravilhosas como S. Francisco de Assis. Mas hoje
o problema consiste no facto de termos durante demasiado tempo recorrido a
personalidades como esta ‒ S. Francisco de Assis ‒ para desculpar outras figuras como Inocêncio III. Procedemos sempre como se meia-dúzia de santos fossem
suficientes para reparar tudo o que a Igreja fez de horrível. É
evidente que esses santos existem. Mas a razão pela qual existem pessoas tão
maravilhosas já não é a Igreja. Fazem o que é humano fazer-se. Óptimo,
se isto estiver de acordo com a Igreja. Mas, em
caso de necessidade, fariam a mesma coisa sem a Igreja ou contra a Igreja, simplesmente porque são homens.
Todas as crianças
alemãs conhecem a história tirada da obra de Lessing, “Nathan, o sábio”.
Nesta peça de teatro, Sittah, judeu, explica a Saladino, muçulmano: «Não
conheces os cristãos e não os queres conhecer. O orgulho dos cristãos não é o
de serem homens, mas de serem cristãos. Gostam do que o seu salvador lhes dizia
com humanidade, não por ser humano, mas porque foi ele que o disse. Foi uma
sorte que tenha sido um homem de bem e que seja a sua virtude que lhes serve de
exemplo». Sendo assim, já há mais de dois séculos que Lessing decidia
afirmar peremptoriamente que, se os cristãos têm uma necessidade constante de
uma instância exterior para lhes dizer o que devem fazer, isto é o suficiente
para os impedir de alguma vez poderem chegar a ser humanos.
Se
o importante, para eles, é pertencer a uma instituição e caminhar em grupo, isto faz com que nunca cheguem a ser pessoas. Têm
então, à partida, um programa de acção que, no melhor dos casos, não suscita
qualquer perigo, mas que aparece desde logo viciado na sua essência pelo
simples facto de ignorar a liberdade.
Esta definição já tem duzentos anos, e é a melhor e a pior descrição daquilo
que hoje a Igreja romana representa. É preciso acabar com isso permitindo-nos
ser homens. Ou a Igreja romana aprende a escutar os seus fiéis e se transforma
(regressando ao Jesus dos Evangelhos), ou então permanece tal como está, ou
seja, continua a endurecer transformando-se em museu. Entretanto, não nos
compete a nós responder à questão (essa competência foi-nos roubada há muitos
séculos pela casta sacerdotal…).
Aquilo
de que o homem necessita urgentemente é d’o exemplo de Jesus de Nazaré: por toda a parte onde intervinha com bondade, as almas sentiam-se
satisfeitas, os olhos humedeciam-se, os corações abriam-se; sobre este aspecto,
nenhum problema. Mas aquilo que de certeza não precisamos é de uma instituição
que se atravesse no nosso caminho, declarando que ela é a continuação viva de
Cristo e erguendo as suas barreiras de potência mundial dissociada dos homens.
Aquilo que, pelo contrário, Jesus queria era a relação pessoal com Deus: «Não
façais com que vos chamem "pai", e ainda menos "mestre"», dizia Ele (Mateus 23,1-36). Ora, é
precisamente este carácter imediato que o sistema da Igreja romana impede.
Proclamando o reino de Deus, Jesus de Nazaré não
se propunha fundar uma Igreja, mas fazer com que Deus estivesse
próximo do homem.
Torna-se
necessário fazer toda a justiça ao protestantismo quando,
há quinhentos anos, declarava que uma Igreja, qualquer que ela fosse, devia deixar-se
medir por este exemplo, em vez de exibir um Papa que não pode enganar-se,
enquanto que a Bíblia podia sempre dar azo a mal-entendidos.
A - Senhor
Drewermann, enquanto a fé permanecer como um processo colectivo e mantiver a
dimensão elementar de um «nós», temos necessidade de uma comunidade, ou seja,
de uma instituição ...
ED – Desse modo,
estamos a cometer dois erros. O primeiro é o de nos interrogarmos continuamente
sobre o que a Igreja faz e manda que se faça. O segundo erro é não entender que
a única questão legítima é a de nos interrogarmos esta noite: o que é que fazemos nós da mensagem de Jesus? Que fazemos nós pelos três quartos da humanidade
que têm fome? Que fazemos nós pelos milhões de animais que são torturados
sistematicamente? Que fazemos nós pelos grupos da nossa sociedade que são
marginalizados? Que fazemos nós dos poucos dias ou dos vinte anos que ainda nos
restam para viver? Para Jesus é isso que se torna premente. Em relação a isso, a questão de saber o que é que faz a Igreja é perfeitamente
secundária. É evidente que estou de acordo com a afirmação de que a
fé deve ser vivida pelo menos a dois. Mas é muito mais importante saber que a fé cristã é antes de mais uma decisão que diz respeito
a todos nós. Ninguém poderá dispensar-nos disso. Nas suas lições
sobre a essência do cristianismo, Adolf von Harnack dizia a
certa altura que a salvação não diz respeito nem ao povo nem ao Estado, mas
unicamente ao indivíduo. E a primeira questão que se nos põe é a de sabermos se
vivemos de tal maneira que, com isso, ajudamos verdadeiramente os outros no
caminho da liberdade. Perguntando quem vem buscar-me do exterior, pela mão, à
sombra de uma instituição que desejaria ter razão, invertem o problema.
A - Não se trata
de ‘pegar na mão’, mas de saber se ‘temos necessidade’ de uma comunidade.
Monsenhor Gaillot, não é isso que nós fazemos, cada vez que nos encontramos em
conjunto para partilhar a refeição? «Onde dois ou três estiverem reunidos em
meu nome, eu estarei no meio deles». Trata-se de uma missão essencial. Ou, para
o dizer por outras palavras, quando Jesus diz: «Eu sou a verdade e a vida»
pretende fornecer-nos uma perspectiva com a qual tudo se torna possível.
Jacques Gaillot -
Sempre tive necessidade de uma comunidade para viver a minha fé. A minha
primeira comunidade foi a família. A comunidade é para mim um espaço de
liberdade que areja a minha fé. Actualmente vivo
juntamente com excluídos. Recentemente, num
domingo, celebrava a missa numa sala onde as famílias se reúnem todas as semanas.
Estavam presentes mendigos, jovens sem trabalho, gente sem importância, sem esquecer,
no entanto, um industrial que se encontrava de passagem, um grande editor e
amigos jesuítas. O evangelho das
bem-aventuranças inundava-lhes o coração. A palavra circulava. Um mendigo tomou
a palavra: «Eu sou um pobre. Sinto-me feliz como sou. Sei que Deus
está presente, que não me abandona. Todos os dias tenho aquilo que é preciso
para viver. Mas há as crianças...». E, assim, o repasto eucarístico à maneira
de Jesus constitui um momento muito intenso. Isto ajuda-nos a realizar aquilo
que Deus espera de nós. Durante a semana todos retomam o tema e voltam a falar
sobre o mesmo assunto. A comunidade é para mim qualquer coisa de necessário.
Eugen Drewermann -
Julgo que não existe a menor divergência entre nós, a respeito deste ponto. (…)
“Dialoque
sur le parvis entre un êveque et un théologien” (Desclée de Brouwer,
1996) ou «Conversas no adro da Igreja»,
Jacques Gaillot & Eugen Drewermann, Editorial Notícias 1997.
DESCARREGAR AQUI O LIVRO NA ÍNTEGRA