teologia para leigos

11 de janeiro de 2021

Conversas no adro da Igreja - Jacques Gaillot & Eugen Drewermann

 



 

UM PROGRAMA DE ACÇÃO QUE RELEGA O

“AMOR DESINSTITUCIONALIZADO”

É UM PROGRAMA ANTI-JESUANO

 

 

A (Apresentador) - Monsenhor Gaillot, acha mesmo que a Igreja obscurece a esse ponto a imagem e a mensagem de Jesus de Nazaré?

 

JG (Jacques Gaillot) - Há algum tempo, fui convidado para um almoço nos arredores de Paris. Dirigi-me de metro para o local. Ao sair, verifiquei que chovia a cântaros. Abriguei-me num portal porque não levava nem gabardina nem guarda-chuva. Um homem veio ter comigo e perguntou-me se queria o seu impermeável. Respondi-lhe que ele também precisava dele: «Fique com ele. Sinto-me muito sensibilizado pelo seu gesto». Antes de ele ter continuado o seu caminho, soube que era judeu. Em seguida chega uma mulher com um guarda-chuva. Diz-me: «Monsenhor, abrigue-se no meu guarda-chuva, levo-o aonde tiver de ir». E lá fomos de braço dado, conversando. A certa altura diz-me: «Sabe quem é que lhe segura este guarda-chuva? É uma muçulmana». Disse para comigo: que sorte não ter levado nem gabardina nem guarda-chuva; assim, precisei dos outros. Se a Igreja não tem necessidade do próximo, se ela possui a verdade, se ela sabe o que é bom para os outros, não tem nada a receber. Quando se tem falta de qualquer coisa, aceita-se receber. O próprio Jesus começou por pedir de beber à Samaritana antes de lhe oferecer a água viva. A Igreja de hoje deve ser suficientemente simples para receber qualquer coisa da sociedade; em primeiro lugar, dos excluídos.

 

ED (Eugen Drewermann) - Jacques Gaillot, o que o senhor diz, mostra o erro que cometemos continuando a discutir a Igreja e continuando a permitir que a questão nos seja colocada. Estou convencido de que não é numa instituição que encontramos uma razão para nos mostrarmos humanos. Encontramo-la em nós próprios, na nossa capacidade de vibrar com o nosso próximo, nesta orientação do coração de que Jesus nos dá o exemplo. Se alguém me dissesse: mostro-me humano para contigo, emprestando-te a minha gabardina porque a Igreja o ordena, seria menos humano. É exactamente essa a opinião das pessoas. Encontramos pessoas maravilhosas como S. Francisco de Assis. Mas hoje o problema consiste no facto de termos durante demasiado tempo recorrido a personalidades como esta ‒ S. Francisco de Assis ‒ para desculpar outras figuras como Inocêncio III. Procedemos sempre como se meia-dúzia de santos fossem suficientes para reparar tudo o que a Igreja fez de horrível. É evidente que esses santos existem. Mas a razão pela qual existem pessoas tão maravilhosas já não é a Igreja. Fazem o que é humano fazer-se. Óptimo, se isto estiver de acordo com a Igreja. Mas, em caso de necessidade, fariam a mesma coisa sem a Igreja ou contra a Igreja, simplesmente porque são homens.

Todas as crianças alemãs conhecem a história tirada da obra de Lessing, “Nathan, o sábio”. Nesta peça de teatro, Sittah, judeu, explica a Saladino, muçulmano: «Não conheces os cristãos e não os queres conhecer. O orgulho dos cristãos não é o de serem homens, mas de serem cristãos. Gostam do que o seu salvador lhes dizia com humanidade, não por ser humano, mas porque foi ele que o disse. Foi uma sorte que tenha sido um homem de bem e que seja a sua virtude que lhes serve de exemplo». Sendo assim, já há mais de dois séculos que Lessing decidia afirmar peremptoriamente que, se os cristãos têm uma necessidade constante de uma instância exterior para lhes dizer o que devem fazer, isto é o suficiente para os impedir de alguma vez poderem chegar a ser humanos.

Se o importante, para eles, é pertencer a uma instituição e caminhar em grupo, isto faz com que nunca cheguem a ser pessoas. Têm então, à partida, um programa de acção que, no melhor dos casos, não suscita qualquer perigo, mas que aparece desde logo viciado na sua essência pelo simples facto de ignorar a liberdade. Esta definição já tem duzentos anos, e é a melhor e a pior descrição daquilo que hoje a Igreja romana representa. É preciso acabar com isso permitindo-nos ser homens. Ou a Igreja romana aprende a escutar os seus fiéis e se transforma (regressando ao Jesus dos Evangelhos), ou então permanece tal como está, ou seja, continua a endurecer transformando-se em museu. Entretanto, não nos compete a nós responder à questão (essa competência foi-nos roubada há muitos séculos pela casta sacerdotal…).

Aquilo de que o homem necessita urgentemente é d’o exemplo de Jesus de Nazaré: por toda a parte onde intervinha com bondade, as almas sentiam-se satisfeitas, os olhos humedeciam-se, os corações abriam-se; sobre este aspecto, nenhum problema. Mas aquilo que de certeza não precisamos é de uma instituição que se atravesse no nosso caminho, declarando que ela é a continuação viva de Cristo e erguendo as suas barreiras de potência mundial dissociada dos homens. Aquilo que, pelo contrário, Jesus queria era a relação pessoal com Deus: «Não façais com que vos chamem "pai", e ainda menos "mestre"», dizia Ele (Mateus 23,1-36). Ora, é precisamente este carácter imediato que o sistema da Igreja romana impede. Proclamando o reino de Deus, Jesus de Nazaré não se propunha fundar uma Igreja, mas fazer com que Deus estivesse próximo do homem.

Torna-se necessário fazer toda a justiça ao protestantismo quando, há quinhentos anos, declarava que uma Igreja, qualquer que ela fosse, devia deixar-se medir por este exemplo, em vez de exibir um Papa que não pode enganar-se, enquanto que a Bíblia podia sempre dar azo a mal-entendidos.

 

A - Senhor Drewermann, enquanto a fé permanecer como um processo colectivo e mantiver a dimensão elementar de um «nós», temos necessidade de uma comunidade, ou seja, de uma instituição ...

 

ED – Desse modo, estamos a cometer dois erros. O primeiro é o de nos interrogarmos continuamente sobre o que a Igreja faz e manda que se faça. O segundo erro é não entender que a única questão legítima é a de nos interrogarmos esta noite: o que é que fazemos nós da mensagem de Jesus? Que fazemos nós pelos três quartos da humanidade que têm fome? Que fazemos nós pelos milhões de animais que são torturados sistematicamente? Que fazemos nós pelos grupos da nossa sociedade que são marginalizados? Que fazemos nós dos poucos dias ou dos vinte anos que ainda nos restam para viver? Para Jesus é isso que se torna premente. Em relação a isso, a questão de saber o que é que faz a Igreja é perfeitamente secundária. É evidente que estou de acordo com a afirmação de que a fé deve ser vivida pelo menos a dois. Mas é muito mais importante saber que a fé cristã é antes de mais uma decisão que diz respeito a todos nós. Ninguém poderá dispensar-nos disso. Nas suas lições sobre a essência do cristianismo, Adolf von Harnack dizia a certa altura que a salvação não diz respeito nem ao povo nem ao Estado, mas unicamente ao indivíduo. E a primeira questão que se nos põe é a de sabermos se vivemos de tal maneira que, com isso, ajudamos verdadeiramente os outros no caminho da liberdade. Perguntando quem vem buscar-me do exterior, pela mão, à sombra de uma instituição que desejaria ter razão, invertem o problema.

 

A - Não se trata de ‘pegar na mão’, mas de saber se ‘temos necessidade’ de uma comunidade. Monsenhor Gaillot, não é isso que nós fazemos, cada vez que nos encontramos em conjunto para partilhar a refeição? «Onde dois ou três estiverem reunidos em meu nome, eu estarei no meio deles». Trata-se de uma missão essencial. Ou, para o dizer por outras palavras, quando Jesus diz: «Eu sou a verdade e a vida» pretende fornecer-nos uma perspectiva com a qual tudo se torna possível.

 

Jacques Gaillot - Sempre tive necessidade de uma comunidade para viver a minha fé. A minha primeira comunidade foi a família. A comunidade é para mim um espaço de liberdade que areja a minha fé. Actualmente vivo juntamente com excluídos. Recentemente, num domingo, celebrava a missa numa sala onde as famílias se reúnem todas as semanas. Estavam presentes mendigos, jovens sem trabalho, gente sem importância, sem esquecer, no entanto, um industrial que se encontrava de passagem, um grande editor e amigos jesuítas. O evangelho das bem-aventuranças inundava-lhes o coração. A palavra circulava. Um mendigo tomou a palavra: «Eu sou um pobre. Sinto-me feliz como sou. Sei que Deus está presente, que não me abandona. Todos os dias tenho aquilo que é preciso para viver. Mas há as crianças...». E, assim, o repasto eucarístico à maneira de Jesus constitui um momento muito intenso. Isto ajuda-nos a realizar aquilo que Deus espera de nós. Durante a semana todos retomam o tema e voltam a falar sobre o mesmo assunto. A comunidade é para mim qualquer coisa de necessário.

 

Eugen Drewermann - Julgo que não existe a menor divergência entre nós, a respeito deste ponto. (…)

 

Dialoque sur le parvis entre un êveque et un théologien” (Desclée de Brouwer, 1996) ou «Conversas no adro da Igreja», Jacques Gaillot & Eugen Drewermann, Editorial Notícias 1997.

 

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