LAURA FERREIRA DOS SANTOS
As reflexões
de Cassell em torno da dor e do sofrimento permitem-nos avaliar melhor outros
posicionamentos. Do lado de quem é contra o suicídio medicamente assistido
nota-se por vezes a necessidade de enfatizar que, como o próprio Cassell
assinala, «De um modo virtual, todas/os as/os doentes com doença grave podem
estar fisicamente confortáveis» (Cohn & Lynn, in The case against: 245).
Nas palavras de Leon Kass, «o número daquelas pessoas com dor realmente
intratável é de facto bastante baixo» (in The case against: 23).
Naturalmente, considerar-se que a dor só muito raramente é refractária a algum
tipo de tratamento é tentar dizer-se que a legalização do suicídio medicamente
assistido é uma medida desnecessária. Nos casos mais graves, os seus
adversários inclinam-se por vezes para o uso da sedação,
basicamente a sedação controlada, não a terminal. Aliás, para alguns dos que
admitem claramente a existência de um sofrimento
existencial, ou «profundo mal-estar emocional» (“emotional
distress” - neste contexto, Cassell utiliza mais o termo distress do
que o de suffering), a sedação controlada é também a alternativa que
apresentam, não se
interrogando sobre se esse procedimento respeitaria ou não as convicções ou
valores da/o doente.
Não é essa,
no entanto, a opção de uma das organizadoras do livro «The case against», Kathleen
Foley, quando escreve no livro «a solo». Sendo decerto a autora que, neste
livro, mais relevo dá ao facto de haver um inadequado tratamento ou alívio da
dor e do sofrimento, os dados que apresenta são assustadores (cf. The case
against: 298), aceitando que se diga que «o
subtratamento» (undertreatment) da dor é «a forma mais comum de abuso dos/as
doentes» (ibid.: 304).
Aliás, em vez de colocar em primeiro lugar a saúde como principal fim da
medicina, afirma que «O alívio do sofrimento é reconhecido universalmente como
uma finalidade fundamental do cuidado médico» (ibid.: 297).
Mas é com
muita prudência que aborda a questão do «profundo mal-estar emocional». Admite
claramente a sua existência, reconhece que é o
sofrimento que «os/as médicos/as podem ser menos capazes de controlar com
terapias médicas» (ibid.: 302), mas apresenta-o como estando
ainda mal estudado, logo mal compreendido, quase como se fosse um enigma o
modo como certos medos dos/as doentes graves contribuem para este profundo
mal-estar existencial, mesmo na ausência de dor. Curiosa ou
sintomaticamente, não dei conta de que o livro de Eric Cassell já referido
figurasse nas notas deste capítulo, talvez por a sua abordagem abrir
pistas para resolver este sofrimento pela via do suicídio medicamente
assistido, algo que não se pretende.
Para
os opositores da sua legalização, não parece ser muito adequado entrar pelas
questões do sentido ou significado, como já se
viu com Callahan, a não ser que se posicionem numa perspectiva religiosa, o que
é actualmente pouco produtivo de um ponto de vista estratégico. Portanto, mais
vale evitar as questões do sentido existencial do sofrimento e passar do domínio pessoal para o social, insistindo antes na
impossibilidade de construir salvaguardas seguras. Por isso também,
não admira que, quando o sofrimento existencial é admitido, só pareça haver um
modo fundamental de lidar com ele: não discuti-lo, mas «sedá-lo»,
terminalmente se necessário, não obstante haver quem afirme que «Nalgumas situações clínicas, não consegue aliviar os
sintomas do/a doente […]» (Dan W. Brock, in The case for: 133).
Se a sedação,
como vimos, não é a opção de Foley quando escreve sozinha, pois apenas
recomenda que o assunto seja melhor estudado, já quando conclui o livro
juntamente com Herbert Hendin esta estratégia aparece-nos recomendada para os
doentes em morte iminente, com base no seu consentimento ou no do seu
representante legal, para aliviar um «sofrimento» apenas assim referido, sem
qualquer especificação (cf. The case against: 326),
A
problemática das estratégias a adoptar perante o sofrimento por parte de quem se opõe ao suicídio medicamente
assistido permite-me introduzir aqui, embora de um modo rápido, a questão dos cuidados paliativos, pois são
muitas vezes encarados como a melhor alternativa ao suicídio medicamente
assistido. No entanto, nem sempre os cuidados paliativos, mesmo quando bons,
são o oásis de auxílio que se poderia crer, mesmo deixando de lado a dor e o
sofrimento refractários. Na filosofia subjacente a algumas destas instituições
existe, como afirma Marcia Angell (e já Putnam também assinalara em «Hospice
or hemlock?», “Lar da Terceira Idade ou cicuta?”), «um orgulho profissional que fica muito próximo da hubris
e da rigidez» (The case for: 22). Quer isto dizer que,
por vezes, possuem uma convicção muito inabalável do que significa uma «boa
morte», não deixando espaço para a concepção
pessoal de quem está a morrer.
Finalmente, coloca-se do lado dos defensores
da morte medicamente assistida a questão de saber se será legítimo avançar-se
com a sua despenalização − e, de um modo mais alargado, com a despenalização
das duas vertentes da morte assistida − quando nem todas as pessoas têm acesso
a bons cuidados paliativos. Na parte conclusiva de The case for, Quill
e Battin respondem resolutamente que sim, para serem justos relativamente
àqueles/as que, mesmo estando servidos/as por óptimos cuidados paliativos,
pedem para morrer por se encontrarem em sofrimento
intolerável. Aliás, retomando o título sugestivo do livro de
Constance Putnam, «Hospice or hemlock?», estes autores consideram, logo
na «Introdução», que as duas possibilidades deveriam ser oferecidas às
populações, numa situação cumulativa e não disjuntiva. E, na
«Conclusão», consideram que o que mais poderá beneficiar e proteger as pessoas
não será uma proibição total, mas uma abertura completa em torno
da discussão deste assunto, reclamando-se igualmente uma maior
consciencialização do público em torno das questões de fim-de-vida.
3. Conclusão: o «conflito das razoabilidades»
Daniel
Callahan afirma, como vimos, que do ponto de vista de uma razão instrumental, o
suicídio poderia não ser qualificado de irracional, pois decorreria
coerentemente das premissas de partida. No entanto, considerava-o não
razoável, pelas razões que explicitei. Mas para além ser uma grave omissão
tender a tratar todos os suicídios do mesmo modo, a questão é que não há
apenas uma forma de razoabilidade, embora essa ideia nos pudesse tornar o mundo
menos problemático, assim como a nossa vivência nele. O facto é que, habitando
nós em sociedades democráticas em que, como afirma Rawls, o facto do pluralismo razoável é a feliz realidade em que nos movemos,
pois é assim que a razão prática funciona quando se move dentro de instituições
tendencialmente livres, a razoabilidade
implica, como o mesmo Rawls escreve, estar-se disposto «a discutir os justos termos que as
outras pessoas propõem»
(Rawls, 1993: 49). Ora, não é esta sensação que tenho ao ler Callahan e outros
opositores do suicídio medicamente assistido. Nalguns casos, dir-se-ia
entenderem que, dos defensores do suicídio medicamente assistido, se apoderou uma vontade louca de matar «compassivamente»
todos/as os/as cidadãos/ãs que se possa pensar estarem em sofrimento
irreversível. Embora se deva reconhecer que Callahan não vai tão longe nas
suas afirmações, vemos Kass dizer que «Eles/as vêem a encosta resvaladiça [slippery
slope] e abraçam avidamente o princípio que justificará descer
inteiramente toda a encosta» (cf. The case against: 26).
Por outro
lado, já se viu quanto o sentido da razoabilidade está ligado a formas diversas
de perspectivar a organização social. Quanto
mais disposto se estiver a reconhecer o «facto» do pluralismo razoável, mais
formas aceitáveis de razoabilidade se poderão reconhecer, embora não
tenhamos que as assumir como nossas. Como escreve Rawls, «É irrealista −
ou pior, levanta suspeição e hostilidade mútuas − supor que todas as nossas diferenças estão enraizadas apenas na
ignorância e na perversidade [...]»
(Rawls, 1993: 58).
Finalmente, e
numa apreciação forçosamente breve, parece-me dever ser dito que a conjugação
das considerações de Cassell sobre o sofrimento, enfatizando o seu carácter
altamente particular, e as considerações de Rawls sobre «os fardos do juízo» (the
burdens of the judgment), remetendo para tudo aquilo que condiciona a nossa
experiência pessoal e os nossos juízos, tornando-os também por vezes muito
pessoais sem que daí decorra qualquer insinuação de desrazoabilidade (cf. ibid.:
54-58), reforça a ideia de que, para se fazer justiça a esta diversidade
humana de valores, convicções, sensibilidades e, consequentemente, modos
diferentes de experimentar o sofrimento, não se pode
enveredar pela imposição de regras sociais que obrigam algumas pessoas a morrerem
de acordo com as convicções dos outros e não de acordo
com as suas próprias convicções.
Fora das
supostas tradições milenares sobre os deveres da profissão médica, não há
apenas a possibilidade do caos, da desumanidade ou do assassinato. Há também lugar para uma humanidade maior.»
Pequeno
excerto do Cap. IX (pp. 178-181) «“Dêem-me a
liberdade e, se eu quiser, dêem-me a morte”. Pensar o suicídio medicamente
assistido a partir de duas posições antagónicas» pertencente ao
livro “A morte assistida e outras questões de
fim-de-vida” de Laura Ferreira dos Santos, Edições Almedina S. A.
2015. ISBN 978-972-40-6106-1.
©
La foi ce lourd fardeau…?!
«Ceci nous
mène à expliciter le concept de foi.
«La
tradition chrétienne l'a toujours souligné avec force: la foi n'est pas
adhésion intellectuelle à un corps de doctrines, mais présence réelle de
l'Esprit de Dieu dans les croyants. Recevoir la foi
ne signifie pas, dès lors, qu'on adhère à une «vérité», mais bien
plutôt implique un changement profond dans la
manière de vivre.
«L'expérience
de la foi est de celles qui font découvrir à une personne qu'elle n'est pas
contrainte - tel le chameau dont parlait Nietzsche - à traîner ou à porter ce
lourd fardeau: faire ce qui est bien et croire ce qui est vrai.
«Elle
devient capable d'être simplement elle-même, parce qu'elle réalise qu'elle a
été créée ‘pour son propre compte’. Non! Une telle expérience n'est pas d'ordre
rationnel: elle est liée en profondeur à la découverte et à la reconnaissance
du fait qu'on est aimé.
«Il n'est
aucune raison qui rende compte du fait d'avoir été simplement
créé par amour. C'est un don gratuit, qui rend la personne capable
d'être elle-même. Dans le
chapitre suivant, nous essaierons de caractériser le changement de perspective, faute duquel il est impossible
de comprendre la Bonne Nouvelle qui libère.»
Gérard Fourez,
“Pour libérer la foi”, Éditions J. Duculot S.A. 1975, B-5800 GEMBLOUX, p. 20, ISBN
2-8011-0059-5.
©
«Fora das
supostas tradições milenares sobre ‘os deveres da profissão médica’, não há
apenas a possibilidade do caos, da desumanidade ou do assassinato.
Há também
lugar para uma humanidade maior.»
Laura Ferreira dos Santos
É com o depoimento de um dedicadíssimo cirurgião norte-americano ‒ Sherwin B. Nuland ‒ que decidi pôr fim às «entradas» (nesta biblioteca “A Sala de Cima”) sobre “A Morte Assistida”, tema que dá mais um passo, no seu processo parlamentar, com a votação de ontem na Assembleia da República (23 de Outubro de 2020), com a qual foi rejeitada a proposta de Referendo Nacional sobre a Despenalização da Eutanásia.
“A proposta de referendo sobre a despenalização da eutanásia foi
chumbada com os votos contra do PS, BE, PCP, PEV e PAN, e de nove deputados
do PSD e das duas deputadas não inscritas (Cristina Rodrigues e Joacine Katar
Moreira). Na bancada social-democrata, os restantes deputados votaram a favor
ao lado do CDS e do deputado único da Iniciativa Liberal. Maioria de deputados
do PSD votou a favor [do Referendo], Rui Rio votou contra. André Ventura, do
‘Chega’, não
votou por se encontrar em campanha eleitoral nos Açores. Não foram registadas
abstenções.” (jornal PÚBLICO, 23/10/2020)
A “Humanidade Maior”, de que fala Laura Ferreira dos Santos ‒ mais um nome de Mulher que ficará para sempre associado a um (este) grande momento civilizacional em Portugal ‒ está bem patente no depoimento que se segue «Las lecciones de la experiencia» de Sherwin B. Nuland. Para mim que sou médico, para além do imenso prazer que tive em o ir saboreando enquanto o traduzia, o testemunho tocou-me profundamente. Por isso, sinto que devo dar graças a Deus por me ter proporcionado ter vindo a esta vida! Espero que este testemunho de S. B. Nuland não só contribua para a meditação espiritual dos que o vierem a ler, como também ajude a humanizar ainda mais a nossa Humanidade pelos relances e ramificações existenciais que ele suscita, com os quais nos surpreende e desafia. De nada valem as ideias e as opiniões se sempre virarmos a cara às nassas em que a vida humana é fértil.
AS
LIÇÕES DA EXPERIÊNCIA
É muito frequente os rabinos terminarem a
cerimónia fúnebre com esta frase: «Que a sua memória sirva de bênção».
Trata-se de uma fórmula desconhecida para não judeus que também nunca ouvi nas
igrejas cristãs. Ainda que ela exprima algo que é um desejo obviamente
universal, este pensamento muito simples merece que reflictamos mais sobre ele,
e não somente nos lugares consagrados ao culto.
A esperança que conferiu alguma paz a Robert
DeMatteis [advogado de quarenta e nove
anos, líder político de uma pequena cidade do Connecticut, de temperamento
próprio de quem nunca aceitava ordens de ninguém, superobeso que entrava em
pânico diante de batas brancas… e que S B Nuland teve de tratar de um cancro
gigantesco, super-invasor e disseminado com origem na válvula ileocecal], a
esperança para DeMatteis era poder deixar memória de si mesmo; ela também
residia no significado que a sua vida poderia vir a ter para os que lhe
sobreviessem. Bob teve sempre bem claro que a sua existência era evidentemente
não apenas finita, como também podia terminar inesperadamente. Era nisso que
residia a origem daquela horrível ansiedade que lhe causava tudo o que tivesse
a ver com medicina, mas também a sua aceitação quando se deparou com a
definitiva enfermidade.
Na
morte, não há maior dignidade do que a da vida que a precedeu. Este é o tipo de esperança de que todos
podemos vir a usufruir e é a mais duradoura esperança: ela reside no
significado que teve a vida do indivíduo.
Existem fontes de esperança mais imediatas,
mas algumas delas são inacessíveis. Como médico, sempre prometi aos meus
doentes moribundos que faria todo o possível para lhe dar uma morte fácil, mas
frequentemente vi essa esperança desvanecer-se, apesar dos meus esforços.
Igualmente, num Centro de assistência a doentes terminais, onde o único
objectivo é o alívio, a tranquilidade e a paz, muitas vezes esse objectivo
falha. Tal
como muitos dos meus colegas, mais de uma vez eu infringi a lei a
fim de facilitar a ‘passagem’ de um doente, já que de outro modo eu nunca teria
podido cumprir com a minha promessa, explícita ou implícita.
Uma
promessa que podemos cumprir e uma esperança que podemos dar é que nunca
deixaremos ninguém morrer só. De entre as múltiplas formas de morte solitária,
seguramente, a mais desoladora produz-se quando (…).
Segue-se o
texto integral:
AS LIÇÕES DA EXPERIÊNCIA de Sherwin B. Nuland