teologia para leigos

24 de outubro de 2020

EUTANÁSIA 12

 


 

LAURA FERREIRA DOS SANTOS

  (…) «Quanto ao número de pessoas que procurariam o suicídio medicamente assistido, Cassell não está muito preocupado, pois crê que a maior parte delas pretende manter-se ligada à vida o maior tempo possível, o que expli­caria o número reduzido de pedidos de suicídio medicamente assistido no Estado do Oregon (USA).

As reflexões de Cassell em torno da dor e do sofrimento permitem-nos avaliar melhor outros posicionamentos. Do lado de quem é contra o sui­cídio medicamente assistido nota-se por vezes a necessidade de enfatizar que, como o próprio Cassell assinala, «De um modo virtual, todas/os as/os doentes com doença grave podem estar fisicamente confortáveis» (Cohn & Lynn, in The case against: 245). Nas palavras de Leon Kass, «o número daquelas pessoas com dor realmente intratável é de facto bastante baixo» (in The case against: 23). Naturalmente, considerar-se que a dor só muito raramente é refractária a algum tipo de tratamento é tentar dizer-se que a legalização do suicídio medicamente assistido é uma medida desnecessá­ria. Nos casos mais graves, os seus adversários inclinam-se por vezes para o uso da sedação, basicamente a sedação controlada, não a terminal. Aliás, para alguns dos que admitem claramente a existência de um sofrimento exis­tencial, ou «profundo mal-estar emocional» (“emotional distress” - neste contexto, Cassell utiliza mais o termo distress do que o de suffering), a sedação controlada é também a alternativa que apresentam, não se interrogando sobre se esse procedimento respeitaria ou não as convicções ou valores da/o doente.

Não é essa, no entanto, a opção de uma das organizadoras do livro «The case against», Kathleen Foley, quando escreve no livro «a solo». Sendo decerto a autora que, neste livro, mais relevo dá ao facto de haver um inadequado tratamento ou alívio da dor e do sofrimento, os dados que apresenta são assustadores (cf. The case against: 298), aceitando que se diga que «o subtratamento» (undertreatment) da dor é «a forma mais comum de abuso dos/as doentes» (ibid.: 304). Aliás, em vez de colocar em primeiro lugar a saúde como principal fim da medicina, afirma que «O alívio do sofri­mento é reconhecido universalmente como uma finalidade fundamental do cuidado médico» (ibid.: 297).

Mas é com muita prudência que aborda a questão do «profundo mal-estar emocional». Admite claramente a sua existência, reconhece que é o sofrimento que «os/as médicos/as podem ser menos capazes de controlar com terapias médicas» (ibid.: 302), mas apresenta-o como estando ainda mal estudado, logo mal compreendido, quase como se fosse um enigma o modo como certos medos dos/as doen­tes graves contribuem para este profundo mal-estar existencial, mesmo na ausência de dor. Curiosa ou sintomaticamente, não dei conta de que o livro de Eric Cassell já referido figurasse nas notas deste capítulo, tal­vez por a sua abordagem abrir pistas para resolver este sofrimento pela via do suicídio medicamente assistido, algo que não se pretende.

Para os opositores da sua legalização, não parece ser muito adequado entrar pelas questões do sentido ou significado, como já se viu com Callahan, a não ser que se posicionem numa perspectiva religiosa, o que é actualmente pouco produtivo de um ponto de vista estratégico. Portanto, mais vale evitar as questões do sentido existencial do sofrimento e passar do domínio pessoal para o social, insistindo antes na impossibilidade de construir salvaguardas seguras. Por isso também, não admira que, quando o sofrimento existen­cial é admitido, só pareça haver um modo fundamental de lidar com ele: não discuti-lo, mas «sedá-lo», terminalmente se necessário, não obstante haver quem afirme que «Nalgumas situações clínicas, não consegue aliviar os sintomas do/a doente […]» (Dan W. Brock, in The case for: 133).

Se a sedação, como vimos, não é a opção de Foley quando escreve sozi­nha, pois apenas recomenda que o assunto seja melhor estudado, já quando conclui o livro juntamente com Herbert Hendin esta estratégia aparece­-nos recomendada para os doentes em morte iminente, com base no seu consentimento ou no do seu representante legal, para aliviar um «sofri­mento» apenas assim referido, sem qualquer especificação (cf. The case against: 326),

A problemática das estratégias a adoptar perante o sofrimento por parte de quem se opõe ao suicídio medicamente assistido permite-me introdu­zir aqui, embora de um modo rápido, a questão dos cuidados paliativos, pois são muitas vezes encarados como a melhor alternativa ao suicídio medicamente assistido. No entanto, nem sempre os cuidados paliativos, mesmo quando bons, são o oásis de auxílio que se poderia crer, mesmo deixando de lado a dor e o sofrimento refractários. Na filosofia subjacente a algumas destas instituições existe, como afirma Marcia Angell (e já Put­nam também assinalara em «Hospice or hemlock?», “Lar da Terceira Idade ou cicuta?”), «um orgulho profissional que fica muito próximo da hubris e da rigidez» (The case for: 22). Quer isto dizer que, por vezes, possuem uma convicção muito inabalável do que sig­nifica uma «boa morte», não deixando espaço para a concepção pessoal de quem está a morrer.

Finalmente, coloca-se do lado dos defensores da morte medicamente assistida a questão de saber se será legítimo avançar-se com a sua despe­nalização − e, de um modo mais alargado, com a despenalização das duas vertentes da morte assistida − quando nem todas as pessoas têm acesso a bons cuidados paliativos. Na parte conclusiva de The case for, Quill e Bat­tin respondem resolutamente que sim, para serem justos relativamente àqueles/as que, mesmo estando servidos/as por óptimos cuidados palia­tivos, pedem para morrer por se encontrarem em sofrimento intolerá­vel. Aliás, retomando o título sugestivo do livro de Constance Putnam, «Hospice or hemlock?», estes autores consideram, logo na «Introdução», que as duas possibilidades deveriam ser oferecidas às populações, numa situ­ação cumulativa e não disjuntiva. E, na «Conclusão», consideram que o que mais poderá beneficiar e proteger as pessoas não será uma proibição total, mas uma abertura completa em torno da discussão deste assunto, reclamando-se igualmente uma maior consciencialização do público em torno das questões de fim-de-vida.

 

3. Conclusão: o «conflito das razoabilidades»

 

Daniel Callahan afirma, como vimos, que do ponto de vista de uma razão instrumental, o suicídio poderia não ser qualificado de irracional, pois decorreria coerentemente das premissas de partida. No entanto, consi­derava-o não razoável, pelas razões que explicitei. Mas para além ser uma grave omissão tender a tratar todos os suicídios do mesmo modo, a ques­tão é que não há apenas uma forma de razoabilidade, embora essa ideia nos pudesse tornar o mundo menos problemático, assim como a nossa vivência nele. O facto é que, habitando nós em sociedades democráticas em que, como afirma Rawls, o facto do pluralismo razoável é a feliz rea­lidade em que nos movemos, pois é assim que a razão prática funciona quando se move dentro de instituições tendencialmente livres, a razoa­bilidade implica, como o mesmo Rawls escreve, estar-se disposto «a dis­cutir os justos termos que as outras pessoas propõem» (Rawls, 1993: 49). Ora, não é esta sensação que tenho ao ler Callahan e outros opositores do suicídio medicamente assistido. Nalguns casos, dir-se-ia entenderem que, dos defensores do suicídio medicamente assistido, se apoderou uma von­tade louca de matar «compassivamente» todos/as os/as cidadãos/ãs que se possa pensar estarem em sofrimento irreversível. Embora se deva reco­nhecer que Callahan não vai tão longe nas suas afirmações, vemos Kass dizer que «Eles/as vêem a encosta resvaladiça [slippery slope] e abraçam avi­damente o princípio que justificará descer inteiramente toda a encosta» (cf. The case against: 26).

Por outro lado, já se viu quanto o sentido da razoabilidade está ligado a formas diversas de perspectivar a organização social. Quanto mais dis­posto se estiver a reconhecer o «facto» do pluralismo razoável, mais formas aceitáveis de razoabilidade se poderão reconhecer, embora não tenha­mos que as assumir como nossas. Como escreve Rawls, «É irrealista − ou pior, levanta suspeição e hostilidade mútuas − supor que todas as nossas diferenças estão enraizadas apenas na ignorância e na perversidade [...]» (Rawls, 1993: 58).

Finalmente, e numa apreciação forçosamente breve, parece-me dever ser dito que a conjugação das considerações de Cassell sobre o sofrimento, enfatizando o seu carácter altamente particular, e as considerações de Rawls sobre «os fardos do juízo» (the burdens of the judgment), remetendo para tudo aquilo que condiciona a nossa experiência pessoal e os nossos juízos, tornando-os também por vezes muito pessoais sem que daí decorra qualquer insinuação de desrazoabilidade (cf. ibid.: 54-58), reforça a ideia de que, para se fazer justiça a esta diversidade humana de valores, convicções, sensibilidades e, consequentemente, modos diferentes de experimentar o sofrimento, não se pode enveredar pela imposição de regras sociais que obrigam algumas pessoas a morrerem de acordo com as convicções dos outros e não de acordo com as suas próprias convicções.

 

Fora das supostas tradições milenares sobre os deveres da profissão médica, não há apenas a possibilidade do caos, da desumanidade ou do assassinato. Há também lugar para uma humanidade maior

 

Pequeno excerto do Cap. IX (pp. 178-181) «“Dêem-me a liberdade e, se eu quiser, dêem-me a morte”. Pensar o suicídio medicamente assistido a partir de duas posições antagónicas» pertencente ao livro “A morte assistida e outras questões de fim-de-vida” de Laura Ferreira dos Santos, Edições Almedina S. A. 2015. ISBN 978-972-40-6106-1.

 

 

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La foi ce lourd fardeau…?!

 

«Ceci nous mène à expliciter le concept de foi.

«La tradition chrétienne l'a toujours souligné avec force: la foi n'est pas adhésion intellectuelle à un corps de doctrines, mais présence réelle de l'Esprit de Dieu dans les croyants. Recevoir la foi ne signifie pas, dès lors, qu'on adhère à une «vérité», mais bien plutôt implique un changement profond dans la manière de vivre.

«L'expérience de la foi est de celles qui font découvrir à une personne qu'elle n'est pas contrainte - tel le chameau dont parlait Nietzsche - à traîner ou à porter ce lourd fardeau: faire ce qui est bien et croire ce qui est vrai.

«Elle devient capable d'être simplement elle-même, parce qu'elle réalise qu'elle a été créée ‘pour son propre compte’. Non! Une telle expérience n'est pas d'ordre rationnel: elle est liée en profondeur à la découverte et à la reconnaissance du fait qu'on est aimé.

«Il n'est aucune raison qui rende compte du fait d'avoir été simplement créé par amour. C'est un don gratuit, qui rend la personne capable d'être elle-même. Dans le chapitre suivant, nous essaierons de caractériser le changement de perspective, faute duquel il est impossible de comprendre la Bonne Nouvelle qui libère

 

Gérard Fourez, “Pour libérer la foi”, Éditions J. Duculot  S.A. 1975, B-5800 GEMBLOUX, p. 20, ISBN 2-8011-0059-5.

 

 

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«Fora das supostas tradições milenares sobre ‘os deveres da profissão médica’, não há apenas a possibilidade do caos, da desumanidade ou do assassinato.

Há também lugar para uma humanidade maior

Laura Ferreira dos Santos

 

É com o depoimento de um dedicadíssimo cirurgião norte-americano ‒ Sherwin B. Nuland que decidi pôr fim às «entradas» (nesta biblioteca “A Sala de Cima”) sobre “A Morte Assistida”, tema que dá mais um passo, no seu processo parlamentar, com a votação de ontem na Assembleia da República (23 de Outubro de 2020), com a qual foi rejeitada a proposta de Referendo Nacional sobre a Despenalização da Eutanásia.

“A proposta de referendo sobre a despenalização da eutanásia foi chumbada com os votos contra do PS, BE, PCP, PEV e PAN, e de nove deputados do PSD e das duas deputadas não inscritas (Cristina Rodrigues e Joacine Katar Moreira). Na bancada social-democrata, os restantes deputados votaram a favor ao lado do CDS e do deputado único da Iniciativa Liberal. Maioria de deputados do PSD votou a favor [do Referendo], Rui Rio votou contra. André Ventura, do ‘Chega’, não votou por se encontrar em campanha eleitoral nos Açores. Não foram registadas abstenções.” (jornal PÚBLICO, 23/10/2020)

A “Humanidade Maior”, de que fala Laura Ferreira dos Santos ‒ mais um nome de Mulher que ficará para sempre associado a um (este) grande momento civilizacional em Portugal ‒ está bem patente no depoimento que se segue «Las lecciones de la experiencia» de Sherwin B. Nuland. Para mim que sou médico, para além do imenso prazer que tive em o ir saboreando enquanto o traduzia, o testemunho tocou-me profundamente. Por isso, sinto que devo dar graças a Deus por me ter proporcionado ter vindo a esta vida! Espero que este testemunho de S. B. Nuland não só contribua para a meditação espiritual dos que o vierem a ler, como também ajude a humanizar ainda mais a nossa Humanidade pelos relances e ramificações existenciais que ele suscita, com os quais nos surpreende e desafia. De nada valem as ideias e as opiniões se sempre virarmos a cara às nassas em que a vida humana é fértil.

 

 

 

 

 

 

AS LIÇÕES DA EXPERIÊNCIA

 

É muito frequente os rabinos terminarem a cerimónia fúnebre com esta frase: «Que a sua memória sirva de bênção». Trata-se de uma fórmula desconhecida para não judeus que também nunca ouvi nas igrejas cristãs. Ainda que ela exprima algo que é um desejo obviamente universal, este pensamento muito simples merece que reflictamos mais sobre ele, e não somente nos lugares consagrados ao culto.

A esperança que conferiu alguma paz a Robert DeMatteis [advogado de quarenta e nove anos, líder político de uma pequena cidade do Connecticut, de temperamento próprio de quem nunca aceitava ordens de ninguém, superobeso que entrava em pânico diante de batas brancas… e que S B Nuland teve de tratar de um cancro gigantesco, super-invasor e disseminado com origem na válvula ileocecal], a esperança para DeMatteis era poder deixar memória de si mesmo; ela também residia no significado que a sua vida poderia vir a ter para os que lhe sobreviessem. Bob teve sempre bem claro que a sua existência era evidentemente não apenas finita, como também podia terminar inesperadamente. Era nisso que residia a origem daquela horrível ansiedade que lhe causava tudo o que tivesse a ver com medicina, mas também a sua aceitação quando se deparou com a definitiva enfermidade.

Na morte, não há maior dignidade do que a da vida que a precedeu. Este é o tipo de esperança de que todos podemos vir a usufruir e é a mais duradoura esperança: ela reside no significado que teve a vida do indivíduo.

Existem fontes de esperança mais imediatas, mas algumas delas são inacessíveis. Como médico, sempre prometi aos meus doentes moribundos que faria todo o possível para lhe dar uma morte fácil, mas frequentemente vi essa esperança desvanecer-se, apesar dos meus esforços. Igualmente, num Centro de assistência a doentes terminais, onde o único objectivo é o alívio, a tranquilidade e a paz, muitas vezes esse objectivo falha. Tal como muitos dos meus colegas, mais de uma vez eu infringi a lei a fim de facilitar a ‘passagem’ de um doente, já que de outro modo eu nunca teria podido cumprir com a minha promessa, explícita ou implícita.

Uma promessa que podemos cumprir e uma esperança que podemos dar é que nunca deixaremos ninguém morrer só. De entre as múltiplas formas de morte solitária, seguramente, a mais desoladora produz-se quando (…).

 

Segue-se o texto integral:

AS LIÇÕES DA EXPERIÊNCIA de Sherwin B. Nuland