ÉTICA CIVIL e VIRTUDES REPUBLICANAS
[…] Na hora de assinalar as possíveis causas desta manifesta degradação ética
que atravessa a sociedade espanhola, eu mencionaria particularmente duas. Em
primeiro lugar, a invasão de um capitalismo selvagem que arrasou a consciência
moral e conferiu verdade ao veredicto de Kenneth Galbraith: «A corrupção é
inerente ao sistema capitalista, porque as pessoas confundem a ética
de mercado com a ética propriamente dita, e porque o afã do enriquecimento anda
de mão dada com o capitalismo».[1] Segunda
causa: Espanha, ao contrário de outros países da Europa, não conheceu uma
autêntica revolução cultural relacionada com a Modernidade Ilustrada.
Concretamente, não se espalharam sistemas morais de tipo laico ou místicas de
serviço à colectividade ao nível da função pública. As referências éticas
ficaram ligadas, como habitualmente, aos princípios e imperativos morais da fé
católica. Tentativas secularizadoras de cariz moral não calaram fundo nas
massas, em grande parte por obra da reacção nacional-católica. A mais recente
dessas tentativas, unida à «Segunda República», sucumbiu às mãos do chamado
"Movimento nacional", de Julho de 1936. Quando a cultura nacional católica se
afunda e surge o estado laico, a anomia e o vazio ético tomaram conta das
consciências.
É extremamente urgente um forte movimento de remoralização da nossa cidadania
afectada por tão grave doença. Por todos os lados se ouvem vozes de alarme,
começando pela dos bispos espanhóis com o seu documento «La verdade os hará
libres» e seguindo pelas dos intelectuais e jornalistas responsáveis,
preocupados com o problema, entre eles Aranguren, Haro Tegglen, Sampedro, Rosa
Montero, Vázquez Montalbán, etc. Urge atalhar este decrescimento moral, criar
ou recriar uma ética civil ou cidadã, infundir virtudes republicanas, caso não
queiramos cair numa barbárie de instintos à solta, num darwinismo de
hominídeos. Não podemos esquecer a afirmação de Freud de que «a civilização
está estreitamente ligada ao controlo permanente dos nossos instintos».
Parece-me que não é totalmente descabido lembrar,
aqui, alguns enunciados relacionados com a chamada fundamentação da moral no ser humano. Várias são as
dimensões que constituem a essência e a existência humanas. O ser humano —
diz-se na antropologia — é um buscador de verdade e de clarificação. É um ser
possuidor de uma dinâmica de convivência e de comunicação espelhadas na
linguagem. É um ser temporal e histórico. A sua interioridade (o seu íntimo) impulsiona-o para o
absoluto e para o incondicionado. Por fim, é um ente moral, estructuralmente moral:
é-o estructuralmente e não apenas sociologicamente. O ético pertence
à sua constituição. «Que o homem seja uma realidade moral não é uma questão de ꞋregrasꞋ ou de ꞋnormasꞋ, mas tem a ver com a sua
própria estrutura formal como essência constitutivamente aberta. O homem … tem
de se encarregar da realidade. O homem não pode esquivar-se a
definir um sistema de possibilidades de realização … a moralidade é uma estrutura
radical e física do homem» — afirmações de Xavier Zubiri.[2] A antropologia
cultural ensina-nos que não existe cultura alguma que não reserve um lugar para
os valores e códigos éticos. Não há povo que careça das denominações
de «bom» e de «mau» referenciados a signos morais. A literatura do
mito, que nos faz recuar à mais antiga humanidade civilizada,
informa-nos que a consciência moral e o sentimento de culpabilidade sempre
acompanharam o ser humano.
Não quero entrar numa discussão filosófica sobre o
nada fácil tema dos valores.
À margem da controvérsia, parece que a noção de valor contém em si algo pelo
qual se opta (independentemente da argumentação) em virtude de uma dinâmica
interna que faz com que sintamos algo (o valioso) como importante, como
interessante, como gratificante, como preferível. Max Scheler, entre outras,
propôs uma divisão ou classificação e uma hierarquia de valores. No plano mais baixo (inferior)
estão os valores do agradável e desagradável; no plano mais alto (superior) por ordem ascendente, os valores vitais, os espirituais (o belo e o feio, ou
seja, os valores
estéticos; o justo e o injusto, ou seja, os valores éticos; o verdadeiro e o
falso, ou seja, os valores do conhecimento) e os valores religiosos (o sagrado e o
profano). Diante do imperativo moral exacto e normativo, os valores éticos seriam como estrelas
que, na noite escura, orientam a conduta do ser humano forçado a optar.
Quando na pessoa já existe uma dinâmica capaz de vencer
obstáculos na prossecução e realização de um determinado valor moral (verbi gratia, a justiça) podemos falar
de virtude.
Virtude, na sua raiz etimológica, quer dizer força. Na linguagem de S. Tomás de Aquino é o habitus operativus bonus. É a
sensibilidade e a opção pelos valores éticos convertidos em algo consanguíneo,
algo integrado na personalidade.
Os valores e as virtudes que agora nos interessam
têm carácter público, ou seja, cívico (civitas = cidade), político (polis = cidade), republicano (respublica = coisa pública). Têm como
referente a vida em colectividade organizada, necessária ao livre
desenvolvimento do ser humano. Os valores e as virtudes situam-se
para lá de uma referência centrada simplesmente no próprio sujeito (no indivíduo),
e vão mais além da chamada esfera privada (Cf. Alberto de Mingo Kaminouchi[3]).
É evidente que esta linguagem pressupõe algo
fundamental: ela é o negativo da ideia de que a realidade pública é algo
estranho ao ético. De facto, a ética (sinónimo de Moral[4]) já não
prescinde da inserção e referência pública, nem o público pode ser considerado
e vivido à margem do ético. Nem ética sem
política, nem política sem ética. Tornou-se um lugar-comum a
crítica ao abandono da linguagem ética — tão da tradição do socialismo espanhol
— pelo actual partido no poder e a sua substituição, nos seus políticos mais
ilustres, pela ética
da responsabilidade (uma alusão a Max Weber).[5] Creio que na maior parte das vezes, esta é a linguagem do
sofisma e da mentira. Por trás dela esconde-se o mais tosco
pragmatismo político. A tentativa de relegar a moral para a esfera do privado é
algo tipicamente burguês. Não é sem razão que Maquiavel é o pai do político
convertido no agente político autónomo, absoluto, à margem de qualquer
referência, para lá do bem e do mal. Os nossos políticos são descendentes mais
ou menos encapuzados do autor de «O Príncipe».
Há que - alto e bom som - dizer não a esse
maquiavelismo disfarçado de éticas da responsabilidade. Os cidadãos têm o
direito a julgar a índole moral ou imoral das metas a que se propõem aqueles
que ocupam hoje em dia o poder, os cidadãos têm o direito a pronunciarem-se
sobre a eticidade das políticas que os políticos põem em marcha. Os políticos
têm o sagrado dever de dar carne cívica aos valores humanos que fazem da
colectividade uma sociedade de seres racionais e livres, lugar da realização
dos direitos e liberdades cidadãs. «A verdadeira
política — ensinou-nos Kant — não
pode dar um passo sem ter rendido previamente a devida fidelidade à Moral».[6]
Tudo isto é verdade e deve ser defendido como tal.
Contudo, isso não impede que existam realidades que não podemos deixar de constatar;
trata-se de limitações e de resistências, sobretudo morais, que a conjuntura
concreta manifesta na hora de pôr em prática metas e métodos. Pensamos em
problemas sociopolíticos, tais como o terrorismo, o desemprego, a droga, a imigração,
etc. É verdade que a política é apresentada, por vezes, como a arte do
possível. Confessá-lo, por parte dos políticos, não é nenhuma desonra. Mas o
que nunca se pode fazer é erigir o mais vulgar pragmatismo, o esvaziamento
humanístico de um governo e uma certa organização política numa ética da
responsabilidade, no interesse pelo bem comum e pelo amor à pátria.
O ideal e a utopia de uma sociedade moral, de uma sociedade «da vinculação dos seres humanos
às leis da virtude» (Kant), pressupõe uma aposta numa não
separação entre o jurídico e o ético. É claro que o legislador
não é um director espiritual e portanto terá de tolerar certas doses de mal
moral a fim de não sufocar em excesso os âmbitos da liberdade cidadã. Mas a
razão jurídica deve ser fundamentalmente uma razão ética. Qualquer
ordenação jurídica pressupõe uma determinada antropologia, queira-o ou não.
O importante é que essa antropologia seja uma concepção do homem «à altura do
nosso tempo», como diria Zubiri. Qualquer ordem jurídica deve ter como meta
garantir e tornar reais os direitos e as liberdades da pessoa humana. Qualquer
constituição política deverá ter como referência primeira a inalienável
dignidade da pessoa humana. Acertadamente, são os direitos e liberdades das
pessoas os que abrem os conteúdos jurídicos da Constituição Espanhola.[7]
Passo, agora, a abordar o último destes postulados
de ética fundamental. Diz respeito à tensão entre o privado e o público já
anteriormente insinuado, entre o bem particular e o bem comum, entre o cidadão
e o estado. Toda a gente sabe como Hegel viu, no Estado, a conciliação real
desta esquizofrenia cívica originada entre duas leis: a lei que dimana do poder
e a lei que tem a sua origem na consciência do indivíduo. O exemplo clássico é
Antígona. A oposição entre juridicidade e moralidade é superada na eticidade,
que Ortega traduz acertadamente por civilidade. O carácter específico da civilidade
é a confiança através do Estado e através da devoção ao Estado, pai de todos
nós, «passagem de Deus pela terra».
Ninguém poderá estar de acordo com esta mistificação
e mitificação que Hegel faz do Estado, e do Estado em concreto. O século XX é
testemunha do caos humano a que levou semelhante concepção do poder.
Acertadamente, a «Declaração dos Direitos Humanos» de 1948 vê no Estado o
grande negador da pessoa humana, dos seus direitos e liberdades. Ela previne contra o absolutismo do poder. «Nada é imutável
— diria Jefferson — a não ser os inalienáveis direitos do Homem». Jefferson seria o anti-Hegel. Mas também não é correcto
converter o Estado no mal absoluto. Sempre pensei que, se o Estado pode ser um
mal, será, em todo o caso, um mal menor que o mal «da guerra de todos contra
todos», em que seguramente aos mais débeis caberá a pior das partes. Ao Estado,
às suas leis racionais, justas e equitativas, em consciência, devem os cidadãos obediência e respeito, a fim de contribuírem
para o bem comum. Digamos não ao estatismo
hegeliano, mas também não ao individualismo egoísta do vale-tudo do
burguês ou do pequeno-burguês entrincheirado e refugiado no privado, do género,
como se costuma dizer, «minha casa, minha missa e minha Maria Luísa». Com
razão, o próprio Hegel também criticava a burguesia alemã cristã desprovida de
sentido cívico e social.[8] No entanto,
há-de haver situações na vida pública em que teremos de optar por Antígona.
Refiro-me à objecção de consciência frente àquilo que se considere uma
desmesura do poder (diante de leis como a do serviço militar obrigatório, lei
sobre o aborto, etc.), desmesura que é enfrentada com uma consciência ética bem
informada, honesta e disposta ao diálogo.
Tratei, até aqui, de estabelecer uma série de
postulados fundamentadores de uma sensibilidade ética, e que convém recordar
num momento de crise que atravessa a nossa cultura. Resumamos esses postulados
fundamentadores, desta forma: consistiram esses princípios na condição moral
estructural do ser humano; na noção daquilo que são valores e virtudes morais;
no carácter irrenunciavelmente ético do agir político; na aposta por uma
sociedade moral; num ꞋnãoꞋ ao divórcio entre o jurídico e o ético; e, por fim,
no justo meio-termo que preserve a tensão entre o privado e o público.
Vou, agora, passar a algo especial quanto à sua
relação com o título da comunicação. Consiste em estabelecer uma ética de conteúdos concretos, de valores
com carácter cívico determinados, em estabelecer quais seriam as virtudes
republicanas ou democráticas. (Excerto)
Alfredo Tamayo Ayestarán, «Ética civil y virtudes republicanas», in "Fé y
Democracia», Jornadas C.P.S. – Cristianos por el Socialismo" Madrid 14-15
de Novembro de 1992, Editorial Popular 1993 (eds. Julio Lois Fernández, José
Ramón López de la Osa, Alfredo Tamayo Ayestarán), N. 187, pp. 29-42. ISSN:
0210-3559.
[10
pp.]
Indice completo de «Fé y Democracia» - N. 187
1 – Apresentación (José
María García-Mauriño, secretario-general de los CPS)
2 – Perspectiva social del cambio de valores en España en la década de
los 80 (José Ramón López de la Osa)
3 - Ética civil y virtudes
republicanas (Alfredo Tamayo Ayestarán)
4 – Aportación cristiana a
la democracia (Julio Lois Fernández)
5 – Crisis de la
participación democrática (Santiago Sánchez Torrado)
6 – Bases no éticas de las
actuales falsas democracias (Alberto Giraldez Dávila)
7 – Ética, democracia y
evangelio (Gregorio Galdós)
8 – La auto-eutanasia: «La anomia» (José Martín Adeba Hernaiz)
9
– Sugerencias Didácticas (Martín Valmaseda)
[1] «El País», 23 de Março de 1992.
[2] X. Zubiri, «Sobre el hombre», M 1986, p. 420s.
[3]
[NdT] Alberto de Mingo Kaminouchi, «O
surpreendente regresso da ética de Aristóteles»: "Grande
parte da filosofia política da Modernidade assumiu como missão sustentar a
legitimidade das regras do jogo, as quais protegem a liberdade e a igualdade de
oportunidades para todos, só que, agora, constatamos que há que levar o diálogo
ético para lá dum simples acordo acerca de regras e procedimentos." (…)
"O individualismo da nossa cultura tem causas estruturais e tem de ser
analisado também do ponto de vista político."; in «Introdución a la ética
cristiana», Sígueme 2015.
[5] M. Weber, «El político y el científico», M 1967, p. 160ss.
[6] I. Kant, «La paz perpetua», M 1979, p. 149.
[8] G. W. F. Hegel, «Theologisch
Jugendschriften», p. 223; veja-se G. Lukacs, «El joven Hegel y los problemas de la sociedad capitalista»,
Barcelona / México 1972.