A PRÁTICA DO AMOR
«Até aqui tenho falado
sobre aquilo que é necessário para a prática de qualquer arte. Agora passarei a
falar das qualidades específicas necessárias para amar. Tendo em conta aquilo
que disse anteriormente sobre a natureza do amor, a principal condição para se
atingir o amor é a capacidade de ultrapassar o narcisismo. A personalidade
narcísica só considera real aquilo que existe em si; os fenómenos do mundo
exterior não têm qualquer realidade em si, mas são vistos apenas como sendo úteis
ou perigosos para o eu. O pólo oposto ao do narcisismo é o da objectividade: trata-se
da capacidade de ver as coisas tal como elas são, objectivamente, e de separar
esta imagem objectiva daquela que é formada pelos nossos medos e desejos. Todas
as formas de psicose implicam uma incapacidade extrema de ser objectivo. Para o
louco, a única realidade que existe é a do seu mundo interior, dos seus medos e
dos seus desejos. Vê o mundo exterior como um símbolo do seu mundo interior, da
sua criação. Todos nós fazemos o mesmo quando sonhamos. Ao sonhar, produzimos
acontecimentos e encenamos tramas que são a expressão dos nossos desejos e dos
nossos medos (embora, por vezes, também sejam expressão das nossas intuições e
opiniões), e enquanto estamos a dormir estamos convencidos de que o produto dos
nossos sonhos é tão real quanto a realidade que vivemos quando estamos
acordados.
Um louco, tal como uma
pessoa a sonhar, é completamente incapaz de ter uma visão objectiva do mundo
exterior. Mas todos
nós somos mais ou menos loucos, ou estamos como que a sonhar; todos nós temos
uma visão subjectiva do mundo, distorcida pela nossa tendência narcísica.
Será preciso dar exemplos? Qualquer pessoa encontrará exemplos se observar
atentamente o seu comportamento, ou o dos seus vizinhos, ou lendo o jornal.
Eles variam conforme o grau de distorção narcísica da realidade. Por exemplo,
uma mulher liga para um médico dizendo que precisa de o ver nessa tarde. O
médico diz que não tem tempo nessa tarde, mas que a pode ver no dia seguinte. A
mulher responde: "Mas, Sr. Dr., eu moro a cinco minutos de distância do
seu consultório." Ela não consegue compreender a explicação do médico e a
ideia de que o facto de ela morar tão perto não tem nada a ver com a
disponibilidade dele. Ela experimenta a situação de uma forma narcísica: se
para ela é conveniente, também deve ser para ele. Para ela, a única realidade é ela mesma.
Menos extremas — ou
talvez apenas menos óbvias — são as distorções que ocorrem nas relações
interpessoais. Muitos pais encaram o comportamento das crianças dizendo que
elas são obedientes, que têm muito orgulho nelas, etc., em vez de o tentar
perceber do ponto de vista das crianças, de tentar perceber o que elas fazem e
sentem por si mesmas. Muitos maridos consideram as mulheres controladoras
apenas porque a ligação que têm com as suas mães os leva a interpretar qualquer
pedido como uma restrição. Muitas mulheres consideram os maridos inúteis ou
estúpidos porque os comparam às fantasias infantis de um príncipe encantado.
A falta de objectividade
no que diz respeito a outros países e culturas é óbvia. De um dia para o outro
constrói-se a imagem de uma nação como sendo malévola e perversa, enquanto se
mantém a ideia de que a nossa própria nação representa tudo o que há de bom e
de nobre. As acções dos inimigos são julgadas de acordo com um critério e as
nossas próprias acções de acordo com outro. Cada boa acção da parte do inimigo
é considerada um sinal de hipocrisia diabólica para nos enganar a nós e ao
mundo, enquanto as nossas más acções são vistas como males necessários,
justificados pelos nobres objectivos que cumprem. De facto, se considerarmos
tanto a relação entre países como a relação entre indivíduos, chegamos à
conclusão de que a objectividade é uma excepção e que a regra é um grau maior
ou menor de distorção narcísica.
A razão é aquilo que nos permite
pensar de forma objectiva e a atitude emocional subjacente à razão é a humildade. Ser objectivo e
racional só é possível a quem tenha uma atitude humilde e tenha abandonado os
sonhos infantis de omnisciência e omnipotência.
No que diz respeito à
arte de amar, isto significa que, já que o amor depende de uma certa ausência
de narcisismo, o amor implica o desenvolvimento da humildade, da objectividade
e da razão. Toda a nossa vida deve ser dedicada a este objectivo. A humildade e a
objectividade são indivisíveis, tal como o amor.
Não posso ser verdadeiramente objectivo em relação à minha família se não o
puder ser em relação a um estranho, e vice-versa. Se quero aprender a arte de
amar, devo tentar ser objectivo em qualquer situação e reparar naqueles casos
em que não consigo sê-lo. Devo tentar ver a diferença entre a minha imagem de
uma pessoa e do seu comportamento, distorcida pelo meu narcisismo, e a
realidade da pessoa tal como ela é independentemente dos meus interesses, das
minhas necessidades e dos meus temores. Ser capaz de ser objectivo e racional é
meio caminho andado para aprender a amar; mas deve ter-se esta capacidade em
relação a todas as pessoas com quem nos cruzamos. Quem quiser reservar a sua
objectividade para a pessoa amada e pensar que pode passar sem ela na sua
relação com todas as outras pessoas, depressa verá que não consegue nem uma
coisa nem outra.
A capacidade de amar
depende da capacidade de ultrapassar o narcisismo e a fixação incestuosa pela
mãe ou pelo clã; depende da nossa capacidade de crescer, de desenvolver uma
orientação produtiva na nossa relação com o mundo e connosco mesmos. Este
processo de libertação, de renascimento, de despertar, pressupõe uma condição
necessária: a fé. A prática da arte do amor implica a prática da fé.
O que é a fé? Será necessariamente uma
questão de acreditar em Deus ou em doutrinas religiosas? Será que a fé está
necessariamente em contraste com a razão e com o pensamento racional, ou
separada deles? Para começar a perceber a questão da fé temos de distinguir
entre a fé racional e a irracional. A fé irracional consiste numa crença, em
algo ou em alguém, que se baseia na submissão a uma autoridade irracional. Por
outro lado, a fé racional é uma crença que está enraizada na nossa experiência
do pensamento e do afecto. A fé racional não é antes de mais a crença em algo,
mas é uma questão de ter certezas e convicções firmes. A fé é uma
característica da personalidade na sua totalidade, mais do que uma crença
específica.
A fé racional tem o seu
fundamento na actividade emocional e intelectual criativa. No pensamento
racional, onde se supõe, regra geral, que a fé não tem lugar, a fé racional
desempenha um papel muito importante. Como é que um cientista, por exemplo, faz
uma nova descoberta? Será que começa por fazer experiências sucessivas,
recolhendo cada vez mais dados, sem ter uma visão de fundo daquilo que espera
encontrar? Só muito raramente foram feitas descobertas importantes deste modo.
Mas não se chega a conclusões importantes indo atrás de quimeras. Em qualquer
campo da actividade humana, o processo do pensamento criativo começa com aquilo
a que poderíamos chamar uma "visão racional", que é em si o resultado
de um esforço prévio de investigação, reflexão e observação. Quando o cientista
já recolheu dados suficientes, ou já tem uma formulação matemática que torna a
sua tese bastante plausível, pode dizer-se que conseguiu formular uma hipótese
de trabalho. Uma análise cuidadosa da hipótese e dos dados que a fundamentam,
para medir as suas consequências, levam à formulação de uma hipótese mais
segura e talvez até, mais tarde, à inclusão da hipótese numa teoria mais
abrangente.
A história da ciência
está repleta de exemplos de fé na razão e de visões da verdade. Copérnico, Kepler, Galileu e Newton tinham
todos uma fé inabalável na razão. Foi por ela que Giordano Bruno foi queimado
vivo e que Espinosa foi excomungado. A cada passo, desde a
concepção de uma visão racional até à formulação de uma teoria, a fé é
necessária: a fé na visão como sendo um fim racionalmente legítimo, fé na
hipótese como sendo uma proposição provável e plausível, e fé na teoria final,
pelo menos até se chegar a um consenso geral sobre a sua validade. Esta fé tem
por fundamento a experiência própria, a confiança nas capacidades intelectuais,
na observação e no discernimento. Enquanto a fé irracional consiste em aceitar
algo como verdade apenas porque uma autoridade ou uma maioria o afirma, a fé
racional fundamenta-se numa convicção independente baseada na observação e no
pensamento produtivos, independentemente da opinião da maioria.
O pensamento e a
capacidade de julgar não são os únicos campos da experiência onde a fé racional
se manifesta. Na esfera das relações humanas, a fé é uma qualidade
indispensável para qualquer amizade importante ou para qualquer relação
amorosa. "Ter fé" noutra pessoa significa ter a certeza que as suas
atitudes fundamentais, a sua personalidade e o seu amor são fiáveis e
imutáveis; que pode
mudar de opinião, mas que as suas convicções de base serão as mesmas;
que o respeito que tem pela vida e pela dignidade humana faz parte integrante
de si e não está sujeito a mudanças.
É de um modo semelhante
que temos fé em nós mesmos. Temos consciência da existência de um eu, de um centro imutável da consciência que permanece ao longo da
vida, nas mais diversas circunstâncias e apesar da mudança de sentimentos e de
opiniões. É este centro que é a realidade da palavra "eu" e no
qual se baseia a convicção da nossa identidade. Se não tivermos fé na
persistência do eu, a nossa sensação de identidade é ameaçada e passamos a
depender da aprovação de outras pessoas para dar fundamento à nossa sensação de
identidade. Só quem tem fé em si mesmo é capaz de ser fiel aos outros, porque
só uma pessoa assim poderá ter a certeza de ser amanhã aquilo que é hoje e que,
portanto, no futuro as suas acções e emoções serão semelhantes às que tem
agora. A fé em si mesmo é o que permite que se tenha a capacidade de fazer
promessas; já que, como dizia Nietzsche, o homem se define pela sua capacidade
de fazer promessas, a fé é uma das condições da existência humana. O que
importa em relação ao amor é a fé que se tem nesse amor, na sua capacidade de
gerar mais amor nos outros, na confiança que gera.
Um outro sentido da fé
diz respeito à fé que temos nas competências dos outros. A forma mais
rudimentar desta fé consiste na fé que uma mãe tem no seu bebé recém-nascido:
ela confia que ele vai viver, crescer, andar e falar. Mas o desenvolvimento da
criança neste aspecto ocorre de forma tão regular que a esperança nesse
desenvolvimento não parece exigir fé alguma. Já o mesmo não se passa com
aquelas competências que podem não se desenvolver: de a criança vir a amar, a
ser feliz, a fazer uso da sua inteligência, para não falar das competências
mais específicas, como é o caso dos dons artísticos. São sementes que germinam
e que só se manifestam se existirem as condições adequadas para o seu
desenvolvimento, e que, na ausência destas condições, podem ser oprimidas.
Entre estas condições, uma das mais importantes é que uma pessoa que desempenhe
um papel relevante na vida da criança tenha fé nas suas competências. É esta fé
que distingue a educação da manipulação. Educar significa ajudar a criança a
realizar as suas potencialidades (a raiz da palavra é e-ducare que significa,
literalmente, conduzir ou trazer à luz algo que está apenas potencialmente
presente). O oposto da educação é a manipulação, que se baseia na ausência de
fé no desenvolvimento das competências da criança e na convicção de que ela só
estará bem se os adultos lhe fornecerem o que é desejável e suprimirem o que
parece ser indesejável. Não é preciso ter fé num robô, já que ele não é um ser
vivo.
A fé nos outros tem o seu
ponto alto na fé na Humanidade. No mundo ocidental, esta fé foi expressa, em
termos religiosos, pela religião judaico-cristã. Na linguagem secular,
encontrou nos ideais sociais e políticos do humanismo dos últimos cento e
cinquenta anos a sua expressão mais plena. Tal como a fé na criança, baseia-se
na ideia de que as potencialidades do Homem são suficientes para, dadas as
condições necessárias, ele ser capaz de instituir uma ordem social que se
oriente segundo os princípios da igualdade, da justiça e do amor. O Homem ainda
não conseguiu instituir essa ordem e é por isso que a convicção de que é capaz
de o fazer requer fé. Mas, como todas as formas de fé racional, esta não se
pode limitar a ser uma esperança vaga; tem de se basear nos testemunhos das
conquistas da humanidade ao longo dos tempos e na experiência interior de cada
indivíduo, na sua experiência da razão e do amor.
Enquanto a fé irracional
tem por base a submissão a um poder que é sentido como sendo imensamente forte,
omnisciente e omnipotente, e na renúncia do poder e da força de cada um, a fé
racional baseia-se na experiência contrária. A fé racional resulta da
experiência e do pensamento de cada um. Temos fé nas nossas potencialidades,
nas dos outros e nas da Humanidade em geral apenas porque e na medida em que
vivemos o desenvolvimento das nossas potencialidades, porque testemunhamos a
realidade do crescimento em nós mesmos e a força da nossa própria razão e a
capacidade de amar. A produtividade é o fundamento da fé racional; viver de
acordo com a fé significa ter uma vida produtiva. Donde se conclui que a fé no poder, no sentido de domínio, e o uso
do poder são exactamente o
oposto da fé. Acreditar num poder extrínseco implica que
não se acredite no crescimento das nossas potencialidades latentes. É uma
previsão do futuro baseada apenas no presente; na verdade, trata-se de um erro
grave, profundamente irracional, que perde de vista as potencialidades do
ser humano e a sua capacidade de desenvolvimento. Não é possível ter uma fé
racional no poder. Existe a submissão ao poder e, da parte de quem tem poder,
existe o desejo de o manter. Embora para muitos o poder pareça ser a coisa mais
real que existe, a história da Humanidade tem provado que ele é a mais instável
das conquistas humanas. Visto que a fé e o poder se excluem mutuamente,
todos os sistemas políticos e religiosos, que na sua origem assentavam numa fé
racional, acabaram por se corromper e enfraquecer a partir do momento que se
apoiam no poder ou se aliam a ele.
Ter fé requer coragem, a
capacidade de correr riscos e de aceitar a dor e a desilusão. Quem insiste na segurança e na cautela como
condições primárias para viver, é incapaz de ter fé;
quem se isola num sistema de defesa, na segurança da possessividade e da
distância, transforma-se num prisioneiro. Amar e ser amado requer coragem,
a coragem de acreditar em certos valores — e de arriscar e apostar tudo nesses
valores.
Esta coragem é muito
diferente da coragem de que falava Mussolini, esse famoso fanfarrão, quando
usou o slogan "viver
perigosamente". O seu tipo de coragem é a coragem do niilismo.
Fundamenta-se numa atitude destrutiva em relação à vida, no desejo de rejeitar
a vida por se ser incapaz de a amar. A coragem do desespero é exactamente o
oposto da coragem do amor, tal como a fé no poder é o oposto da fé na vida.
Será necessário praticar algo, no que diz respeito à fé e à
coragem? Na verdade, é preciso praticar-se a fé constantemente. É
preciso ter fé para se educar uma criança, para adormecer, para iniciar
qualquer projecto. Mas nós estamos todos habituados a este tipo de fé. Quem não
tiver esta fé básica tende a preocupar-se excessivamente com os seus filhos, a
sofrer de insónias, a ser incapaz de trabalhar eficazmente; ou então a
suspeitar de tudo e de todos, a ser hipocondríaco, a ser incapaz de se
aproximar dos outros ou de fazer planos a longo prazo. Manter uma opinião
própria sobre alguém, mesmo quando a opinião pública ou mesmo uma nova
revelação contrariam essa opinião; ter a força das suas convicções, mesmo que
se seja pouco popular — tudo isto requer coragem e fé. Ver nas dificuldades,
nos obstáculos e nas tristezas da vida um desafio que nos fortalece, se o
ultrapassarmos, e não um castigo injusto que não nos devia acontecer a nós,
requer fé e coragem.
A prática da fé e da
coragem começa com os pequenos pormenores da vida quotidiana. O primeiro passo
consiste em reparar onde e quando se perde a fé em algo ou em alguém, examinar
as justificações que encobrem esta perda de fé, reconhecer quando se age com
cobardia e reconhecer as formas como justificamos essas cobardias. Reconhecer
que cada traição ou
desconfiança nos enfraquece, e que esta fraqueza leva a uma maior
desconfiança e a mais traições, e assim por diante, num círculo vicioso.
Só assim poderemos reconhecer que embora tenhamos, a nível consciente, medo de
não ser amados, aquilo de que temos realmente medo, embora seja
inconscientemente, é de amar. Amar significa comprometer-se sem garantias,
entregar-se completamente, na esperança de que o nosso amor faça com que a
pessoa amada nos ame também. O
amor é um acto de fé, e quem tem pouca fé também tem pouco amor.
O que poderemos dizer mais sobre a prática da fé? Se eu fosse um poeta ou um
pregador, poderia tentar dizer algo mais sobre o assunto. Mas como não sou, não
posso sequer tentar dizer mais nada, mas tenho a certeza que quem estiver mesmo
interessado poderá aprender a ter fé, tal como uma criança aprende a andar.
Há uma atitude
indispensável para a prática da arte de amar, que até agora só foi referida implicitamente
e que devemos discutir explicitamente, já que ela serve de base para a prática
do amor: trata-se da actividade.
Já disse anteriormente que por actividade não entendo o "fazer algo",
mas antes uma actividade interna,
o uso produtivo dos poderes de cada um. O amor é uma actividade; se eu amar,
estarei num estado constante de preocupação activa com a pessoa amada, mas não
só com ela. Eu serei incapaz de me relacionar activamente com a pessoa amada se
for preguiçoso, se não estiver num estado constante de consciência, de alerta,
de actividade. O sono é a única situação adequada para a inactividade; na
vigília, a preguiça não deve ter lugar. Hoje em dia, a maior parte das pessoas
vive numa situação paradoxal: quando estão acordadas estão meio a dormir e
quando estão a dormir, ou quando querem dormir, estão meio acordadas. Estar
totalmente acordado é a condição necessária para não estar, nem ser, aborrecido
— e esta é uma das condições básicas para se amar. Ser activo ao longo do dia,
em pensamentos e em sentimentos, com todos os sentidos e evitar a preguiça
interior, quer seja uma preguiça receptiva, egoísta ou simplesmente uma perda
de tempo, são condições indispensáveis para a prática da arte de amar. É uma
ilusão pensar que se pode ser produtivo na esfera do amor e improdutivo em
todos os outros domínios. A produtividade não permite esta divisão de tarefas.
A capacidade de amar requer um estado de intensidade, de consciência, de maior
vitalidade, que só pode resultar de uma orientação produtiva e activa noutras
esferas da vida. Quem não for produtivo noutros domínios da vida, não o será no
amor.
A arte de amar não se
pode limitar à aquisição e ao desenvolvimento das características e das
atitudes que descrevemos neste capítulo. A arte de amar está inevitavelmente relacionada com o domínio
social. Se amar significa ter uma atitude de amor em relação a todos,
se o amor é uma característica da personalidade, então ele deve existir não só
na nossa relação com a família e os amigos, mas também com os nossos colegas de
trabalho. Não existe uma "divisão de tarefas" entre o amor pelos que
nos são próximos e o amor por desconhecidos. Pelo contrário: a existência deste
último é a que permite a existência do primeiro. Se levarmos a sério esta
afirmação, teremos de efectuar mudanças drásticas nas nossas relações
sociais. Embora a maioria das pessoas apoie, em teoria, a ideia religiosa
de amar o próximo, as nossas relações são determinadas, na verdade, pelo princípio da justiça.
A justiça significa aqui não usar truques nem ser fraudulento no que diz
respeito à troca de bens e serviços e à troca de sentimentos. "Dar tanto quanto se recebe", quer
em relação aos bens, quer em relação ao amor, é a máxima ética dominante na sociedade capitalista.
Podemos até dizer que o desenvolvimento da ética da justiça é um contributo da
sociedade capitalista para o domínio da ética.
As razões de fundo desta
ética têm a ver com a própria natureza da sociedade capitalista. Nas sociedades
pré-capitalistas, a troca de bens era determinada pela força, pela tradição ou
por ligações pessoais como o amor e a amizade. Com o surgimento do capitalismo,
o "mercado" tornou-se o factor determinante. Quer no mercado de bens,
de trabalho ou de serviços, cada um troca o que tem para vender por aquilo que
quer comprar segundo as condições de mercado vigentes, sem recorrer à violência
ou à fraude.
A ética da justiça pode ser confundida com a ética da
máxima "faz aos outros o que gostavas que te fizessem a ti".
Esta máxima pode ser interpretada como querendo dizer "sê justo nas tuas
relações comerciais com os outros". Mas, na verdade, foi enunciada
originalmente como sendo uma versão mais popular da máxima bíblica: "Ama o
próximo como a ti mesmo." A
norma judaico-cristã do amor fraterno é totalmente diferente da ética da justiça.
Amar o próximo significa sentir-se responsável por ele, sentir-se unido a ele, enquanto
a ética da justiça implica que se esteja separado do próximo, distante
dele; que se respeite os seus direitos, mas não que se ame o próximo. Não é
por acaso que se tornou a máxima religiosa mais popular dos nossos dias; é a
única máxima religiosa que todos compreendem e desejam pôr em prática, porque
pode ser interpretada nos termos da ética da justiça. Mas a prática do amor deve começar com o
reconhecimento da diferença entre a justiça e o amor.
Surge aqui uma questão
importante. Se toda a nossa organização social e económica se baseia na busca
individual do que é melhor para si, se é governada pelo princípio do egoísmo
pontuado apenas pela ética da justiça, como poderemos então fazer negócio, agir
no contexto da sociedade contemporânea e, ao mesmo tempo, praticar o amor? Será
que a prática do amor não requer que abandonemos o domínio secular e
partilhemos a vida dos mais pobres entre os mais pobres? Esta pergunta foi
colocada e respondida de forma radical por monges cristãos e por pessoas como
Tolstoi, Albert Schweitzer e Simone Weil. Há até quem considere que na nossa
sociedade o amor e a vida secular normal são incompatíveis (Cfr. o artigo de
Herbert Marcuse, "The Social
Implications of Psychoanalytic Revisionism", Dissent, Nova Iorque,
1955). Chega-se à conclusão que falar de amor, hoje em dia, é participar de uma
grande fraude; diz-se que, neste
mundo, só um mártir ou um louco pode amar e que, por isso,
a discussão sobre o amor é apenas uma falsa moralização. Esta opinião
respeitável cede prontamente a uma racionalização cínica. Na verdade, ela é
partilhada por todos aqueles que pensam: "Gostaria de ser um bom cristão, mas, se
levasse a sério o Cristianismo, acabaria por morrer à fome."
Este "radicalismo" resulta num niilismo moral. Tanto os
"radicais" como as pessoas normais são autómatos que não conhecem o
amor, e a única coisa que os distingue é que os "radicais" têm
consciência do que são e da "necessidade histórica" da sua
existência.
Tenho a certeza de que a
incompatibilidade entre o amor e a vida "normal" só existe a um nível
abstracto. São os princípios básicos da sociedade capitalista
e do amor que são incompatíveis. Mas a sociedade moderna é, a
nível concreto, muito complexa. Por exemplo, um vendedor de uma mercadoria
inútil não pode sobreviver sem mentir; um técnico, um químico ou um médico,
podem. Da mesma maneira, um agricultor, um operário, um professor e vários
tipos de homens de negócios podem tentar praticar a arte do amor sem deixar de
funcionar do ponto de vista económico. Mesmo que se reconheça que os princípios
do capitalismo são incompatíveis com os do amor, temos de admitir que o
"capitalismo" é, em si mesmo, uma estrutura complexa em constante
mutação que ainda deixa espaço para o inconformismo e para a expressão
pessoal.
Não quero com isto dizer
que se deve esperar que o sistema social vigente se perpetue por um tempo
indefinido e que, simultaneamente, aconteça a realização do ideal do amor
fraterno. Quem for capaz de amar, hoje em dia, é necessariamente uma excepção à
regra; o amor é, necessariamente, um fenómeno marginal na sociedade ocidental
contemporânea. E não é por estarmos demasiado ocupados que não temos uma
atitude de amor pelo próximo; mas no espírito de uma sociedade centrada na
produção e sequiosa de bens de consumo, só um inconformista se saberá defender.
Quem estiver seriamente interessado no amor como sendo a única resposta
racional ao problema da existência humana deve concluir que são necessárias mudanças importantes e radicais na nossa
estrutura social, para que o amor se torne um fenómeno social e
não um fenómeno marginal e altamente individualizado. Nesta obra, podemos
apenas dar uma ideia da direcção que tomam essas mudanças (Tentei abordar esta
questão mais pormenorizadamente em "The
Sane Society", Rinehart & Co., Nova Iorque, 1955). A nossa
sociedade é gerida por uma burocracia administrativa e por políticos
profissionais; as pessoas são motivadas por processos de sugestão em massa;
produzir mais e consumir mais tornaram-se fins em si mesmos. Todas as actividades
devem estar subordinadas a objectivos económicos, os meios tornam-se fins; o
Homem transformou-se num autómato: bem vestido, bem alimentado, mas sem
qualquer interesse pela sua função e pela sua qualidade enquanto ser humano.
Para que o Homem seja capaz de amar, ele deve passar a ter primazia. A
maquinaria económica deve servir o Homem, não deve ser o Homem a servir a
economia. Ele deve ser capaz de partilhar experiência e trabalho, e não apenas
partilhar lucros. A sociedade deve ser organizada de tal forma que a natureza
social do Homem e a sua capacidade de amar não estejam separadas da sua
existência social, mas se unam a ela. Se for verdade, como tentei demonstrar,
que o amor é a única resposta sã e satisfatória para o problema da existência humana,
então qualquer sociedade que exclua o desenvolvimento do amor
deve, a longo prazo, desaparecer, porque está em contradição com as
necessidades básicas da natureza humana. Na verdade, falar de amor
não é só "moralizar" pela simples razão de que falar de amor é falar da necessidade suprema e
real de cada ser humano. O facto de esta necessidade ter sido
recalcada não quer dizer que ela não exista. Ao analisar a natureza do amor,
descobrimos a sua ausência, em termos gerais, do mundo contemporâneo, e criticamos
as condições sociais responsáveis por esta ausência. Ter fé na possibilidade do
amor como um fenómeno social e não como um fenómeno individual de excepção é
uma fé racional baseada na intuição daquilo que é a própria natureza humana.»
Erich Fromm
"A PRÁTICA DO
AMOR", in «A arte de amar» («The Art of Loving», Harper-Collins
Publishers, Inc.), Pergaminho [Bertrand], 12002, reimpresso em 2005,
pp. 119-133. ISBN 972-711-218-8.