RESSURREIÇÃO
1.
Dificuldade
de linguagem
Karl Rahner
costumava dizer que só recorrendo a uma «linguagem paradoxal» é que podemos
evocar a ressurreição, porque a mensagem cristã sobre a ressurreição supera qualquer
tipo de analogia possível face aos referentes já conhecidos. As nossas
disponibilidades linguísticas para evocar a promessa cristã da ressurreição são
muito limitadas. A expressão «ressurreição dos mortos» é um enorme desafio
linguístico. Para grandes teólogos do nosso século «ressurreição dos mortos» e
«Deus» são equivalentes. É o caso de Karl Barth [Suíça, 1886-1968] e Rudolf
Karl Bultmann [Alemanha, 1884-1976]. Talvez tenham razão. Já no AT é outorgado
a Deus o atributo de «ressuscitador de mortos».
Evocar o tema da
ressurreição é, portanto, tão difícil como falar de Deus. Só os poetas
conseguem realizar, com alguma seriedade, essa tarefa. Só isso pode explicar
que o AT e o NT evoquem o tema socorrendo-se de metáforas, parábolas, símbolos
e imagens literárias variadas. O II Livro dos Macabeus insere o tema da
ressurreição num contexto de martírio e de sofrimento. Os sete irmãos
torturados anunciam ao tirano que, para ele, não haverá ressurreição, vida
eterna. Para se evocar a ressurreição, foi necessário contar com um episódio
doloroso.[1]
Esta é a mesma
linha que os autores do NT irão seguir. Também eles darão força à teologia
narrativa: contam a história de Lázaro, do filho da viúva de Naim, da filha de
Jairo.[2]
A própria ressurreição de Jesus chega até nós através de um desenvolvimento narrativo
de grande alcance: narra-se a peregrinação das mulheres ao sepulcro, referem-se
relatos ingénuos sobre a vigilância militar do túmulo, fala-se de túmulo vazio
e de aparições do Ressuscitado. O próprio Paulo, que foi acusado de tudo e mais
alguma coisa menos de falta de capacidade teórica, serve-se, no seu magistral
capítulo 15 de 1Coríntios, de todo o tipo de metáforas, símbolos e hinos para
tornar inteligível a ressurreição.
A ressurreição,
quer a de Jesus, quer a do resto da humanidade, é o tema humano limite, é o
nosso último atrevimento diante da campa dos nossos entes queridos, é a nossa
maneira de lhes dizer que continuamos a querer-lhes muito. Diante das
pretensões da apologética católica tradicional, importa afirmar que a
ressurreição não será jamais um acontecimento demonstrado ou demonstrável. Pelo
contrário, pode-se aplicar-lhe a conclusão lapidar de Unamuno: «Aquilo que não é
digno de prova, não poderá ser provado ou des-aprovado».
Para falar da
ressurreição, a teologia, além de retornar sempre às fontes bíblicas, deve dar
uma olhadela à história da cultura, da arte e da filosofia. O teólogo estará,
assim, diante de um acúmulo de dados que testemunham uma inquietação e um apego,
quase desesperado, a um "plus"
para além das fronteiras da morte. Não se deve renunciar a nenhuma forma de
linguagem. A
linguagem sobre a ressurreição só se torna indigna quando se torna segura.
Um discurso sobre este tema que não contenha o máximo de vacilação seria,
paradoxalmente, pouco convincente.[3]
Os escritores
bíblicos privilegiarão sempre uma metáfora: a do despertar
do sono. Assim como os que estão dormindo despertam para a
consciência, assim os mortos despertarão para uma nova vida. O interesse dos
estudiosos do NT por esta e outras metáforas mostra-nos que resistem a
declarar a ressurreição como completamente inefável. Os seus
esforços por ultrapassar os limites da linguagem e conquistar um nome para o
inominável ganham toda a nossa simpatia.
2.
O
substrato antropológico
No Ocidente existe
uma tradição antropológica segundo a qual a ressurreição satisfaz uma das
exigências fundamentais do ser humano. É a «melancolia da
plenitude» de que fala Ernst Bloch. Os seres humanos — afirma essa
antropologia — vão muito para além do pobre limite das possíveis realizações
intra-históricas. Por outras palavras: superam sempre os limites da finitude e
esperam uma plenitude mesmo depois da morte. Este é um dado empírico adquirido:
o ser humano não encontra a sua autorrealização dentro da frágil contingência
na qual se desenrola a sua vida. O pano de fundo da morte ensombra o mínimo sinal de felicidade.
«A morte — escreve W. Pannenberg — questiona radicalmente
qualquer indício de sentido na vida individual». Exactamente porque a morte é
muda e cruel, o ser humano resiste a outorgar-lhe honras de última instância. O
ser humano lança-se assim à aventura de conceber uma outra vida, um além da
morte.
Esta foi uma missão
da filosofia: o ter-se convertido, durante séculos, em aliada da teologia. A própria
filosofia também nunca se resignou perante as realidades insuperáveis. Defendeu
que o mais importante para ser humano – a alma – não morreria. Platão ofereceu-nos
as provas dessa imortalidade. A mais importante delas é a que se refere ao
carácter eterno das ideias. Se as ideias que a alma capta são eternas, também
ela o será. Há uma semelhança prévia entre a alma e as ideias.
De facto, a ideia
da imortalidade
da alma pôs de parte, durante séculos, a esperança da
ressurreição dos mortos proclamada pelo cristianismo. Trata-se de um
deslocamento difícil de entender. A separação entre corpo e alma — subjacente à
filosofia platónica — é oposta à antropologia bíblica. Segundo esta, o ser
humano é, antes de tudo, unidade. A ideia de uma alma que, separada do corpo,
continua a viver noutras esferas é alheia à antropologia bíblica.
Existe, pois, uma "antropologia dos inquietos"
(chamemo-la assim), que encaixa bem com o anúncio da ressurreição. Para ela, a
ressurreição também é um postulado, uma exigência. Em sua defesa estão homens
como M. Scheler, A. Gehlen, M. Buber, K. Rahner e muitos outros. Todos eles
desejam radicalmente que não se interrompa para sempre a vida. Mas a todos
deveria ser lembrado, como escreve Javier Muguerza, que o desejo é «algo que os
poetas sabem bem ser susceptível de entrar em conflito com a ꞋrealidadeꞋ e,
portanto, poder ficar insatisfeito».
Mas nem todos os
impulsos do pensamento antropológico actual entoam o mesmo cantus firmus. Nem tudo são inquietações no seguimento de Pascal,
Kirkegaard ou Unamuno. Professa-se, também, a renúncia ao desejo de um «além».
Entre nós, espanhóis, Tierno Galván exprimiu-o com toda a clareza desejável:
«Eu vivo perfeitamente bem na finitude, e não preciso de mais». Seguindo a mesma direcção, o filósofo utilitarista J. Stuart Mill decide, tal como o seu admirado
mestre, procurar «unicamente o que é possível alcançar». Neste sentido,
escreve: «Vejo-me inclinado a pensar que, conforme a condição da humanidade vai
melhorando e os homens são cada vez mais felizes com as suas ideias e mais
capazes de encontrar uma felicidade não fundamentada no egoísmo, irão preocupar-se
menos com as promessas de uma vida futura». E acrescenta: «Precisamente, os que
nunca foram felizes são os que têm este desejo. Aqueles que possuíram a
felicidade podem suportar a ideia de deixar de existir; mas para quem nunca
viveu deve ser duro morrer.»
J. Stuart Mill
parece estar de acordo com Rilke: «Cada coisa no seu tempo. Exactamente no seu
tempo e nada mais. E também, nós em nosso tempo. E nunca mais.» Se alguém tenta
ir além, pensa J. Stuart Mill, é porque não é uma «alma generosa», porque está
«apegado ao seu próprio eu», é porque é incapaz «de se identificar com nenhuma
outra coisa que sobreviva a ele ou é incapaz de sentir que a sua vida se
prolonga nas jovens gerações e em todos aqueles que ajudam a continuar o
movimento progressivo dos assuntos humanos…».
Mais: nem sequer a
teologia se viu livre deste tipo de debates. A teóloga protestante Dorothee
Sölle
[Alemanha, 1929-2003][4],
comprometida com todas as causas nobres, qualifica de «ateia» a pergunta por um
«além». Eis as suas palavras: «A pergunta sobre se tudo termina com a morte é
uma pergunta ateia. Em que consiste esse «tudo» para ti? Tu não podes descrever
a tua própria morte com a fórmula «então tudo se acabou» na medida em que é
precisamente essencial à definição do cristão que ele não é tudo para si. Não
se acaba tudo: tudo continua. Continuam as minhas esperanças, os projectos em
comum que eu pus em marcha, as coisas que comecei e não tive tempo de terminar.
É verdade que eu já não comerei, mas continuar-se-á cozinhando e comendo pão e,
embora eu já não beba, continuar-se-á vertendo o vinho da fraternidade. Eu já
não respirarei como pessoa individual, como mulher do século XX, mas o ar
continuará existindo aí para todos».
Sölle não se
preocupa com a sua própria sobrevivência pessoal. Contenta-se com que os outros
continuem vivendo, com que não se interrompa essa corrente de fraternidade e
beleza que ela descobre na criação. É um acreditar em Deus em troca de nada.
Sölle é a representante de uma generosa renúncia à ressurreição. Ela não tem a sede de durar
que angustiava o nosso Unamuno. Não lhe importa que o seu eu desapareça. E não
está sozinha dentro do espectro protestante dos nossos dias. Não se pode negar
grandeza humana e religiosa a essa postura. Inclusivamente, pode-se encontrá-la
também num ou noutro teólogo católico, hoje. «Não é evidente — escreve J. M.
Pohier — que o melhor modo que Deus tem de me conservar na sua memória seja
fazer-me sobreviver». O importante é permanecer na memória de Deus. Para isso
não é necessário que Deus nos dê outra vida.
A finalidade deste capítulo
é oferecer uma amostra do quanto é inútil que se dogmatize a propósito do ser
humano. Enquanto alguns humanos desejam, com enorme vigor existencial, viver
sempre, outros encantam-se serenamente com um final definitivo. Isto sem
contar, claro, com os que considerariam uma diversão macabra todos os discursos
sobre a outra vida. Bastou-lhes esta. São homens que conheceram o cansaço de
existir e não desejam mais futuro, senão a libertação do presente.
De facto, alguns
textos de Paulo apontam para uma ressurreição restrita: apenas os que se salvarão
é que se levantarão do pó da terra; a condenação dos condenados consistirá em
que não ressuscitarão. A ressurreição deveria, portanto, identificar-se com a
salvação. Não haveria, pois, uma ressurreição «neutra» (W. Pannenberg)
subordinada ao juízo final. Se assim fosse, a ressurreição ficaria
desvalorizada e perderia o seu carácter salvífico. Semelhante forma de ver as
coisas parece mais plausível, e mais cristã, do que o discurso habitual sobre o
inferno. A ressurreição como antessala do inferno é — seja-me permitida a
expressão — uma triste piada, um presente envenenado. Seja como for,
biblicamente a ressurreição identifica-se com a salvação.
Apercebemo-nos
então que, o assunto que estamos a abordar, é de facto complexo. Está,
portanto, na hora de irmos às fontes, que irão ajudar a nos esclarecer. [CONTINUA]
Manuel
Fraijó
«Resurreción», in Nuevo Diccionario de Teología, (dir. Juan José Tamayo), Editorial
Trotta 2005.
[1]
Cf. Rubén Dri, «Devolver Jesus ao povo 5/5»,
nomeadamente o Ponto 2 «O triunfo da vida», no blog "A SALA DE
CIMA", 19-01-2017 [NdT]: «Mas,
antes, é necessário que analisemos quando é que surge esse assunto, em que
circunstância surge e que significa ele. Prescindindo de certas aproximações
anteriores, tal como as que se podem encontrar em Ezequiel e em Job, é sem
dúvida alguma no livro de Daniel – do século II aec – onde encontraremos pela primeira vez, de forma muito clara,
anunciada a mensagem da ressurreição».
[2]
Rubén Dri diz que estes casos narrados «não
são ressurreições mas ressuscitações» («Devolver Jesus ao povo 5/5», no
subcapítulo: "Porém,
que quer dizer ressurreição?", em A SALA DE CIMA, 19-01-2017:
[3]
Rubén Dri diz: «onde há prova não há fé»
(in «Devolver Jesus ao povo 5/5»), no
subcapítulo «3.4 Âmbito da compreensão».
Blog «A SALA DE CIMA», 19-01-2017 [NdT]: