«… a ressurreição da carne e a vida eterna»
A
pergunta mais séria que os seres humanos podem fazer a si mesmos é se a morte é
a última palavra, quer para a vida do indivíduo, quer para a colectividade
humana. Sabemos de forma absoluta que todos nós e todos aqueles com quem nos
preocupamos morreremos. A partir daquilo que a ciência nos diz, podemos estar
razoavelmente seguros que até a própria terra morrerá em algum momento do
futuro, sob a forma de gelo ou fogo. A ciência sugere ainda que o universo
inteiro está submetido à lei da entropia, o que quer dizer que até ele de
alguma forma se encaminha para algum tipo de morte cósmica. Para já, fiquemo-nos
por uns instantes com o conhecimento mais certo que temos acerca da morte: a
certeza de que todos os seres humanos terão de morrer.
Nalgumas
páginas atrás, afirmei que a morte é inaceitável. Rejeitemos firmemente a ideia
de que esta afirmação seja egoísta. É claro que eu não desejo morrer, mas
exercitando-me na ginástica estóica, eu até poderei assumir a perspectiva da
minha própria morte com uma certa dose de equanimidade. Mas aquilo que eu me
recuso a aceitar é a morte do filho do meu vizinho, e isso não tem nada de
«egoísta». A morte não é «natural», a não ser naquele mais que banal sentido de
ela estar inserida na nossa constituição biológica. A morte é um ultraje. E é
um ultraje que a fé desta criança na bondade do mundo seja traída, que o
sorriso desta criança, que por vezes ilumina o céu, acabe em sofrimento e
chegue a desaparecer da face da realidade. Nego-me a aceitar, recuso-me em
consentir neste ultraje. Mais: a minha recusa é para mim o mais ácido critério
para julgar qualquer mensagem religiosa: a minha postura negativa pode ou não
ser aprovada? Possuo alguma palavra de consolo para este meu vizinho
completamente esmagado?
Nas
linhas de abertura deste livro declarei que a fé religiosa, em última
instância, diz que a realidade, segundo os parâmetros humanos, tem um sentido.
E acrescentei que, esteja ou não esteja certa essa afirmação, que se tratava,
contudo, de uma afirmação «interessante». Desfiarei, de seguida, quatro
enunciados sobre religião que, contudo, não
são «interessantes». Ou, por outras palavras, se estes quatro enunciados
descrevem com rigor o que é a religião, então esqueçamos a religião.
§
Supõe-se que a religião, bem como a ética atribuída a Jesus são necessárias
como base da moralidade. Mas a religião não
é necessária para a moralidade e os ensinamentos éticos de Jesus (na medida em
que seja possível distingui-los daquilo que o judaísmo do seu tempo já
ensinava) não podem servir de guia prático, quer para a vida individual, quer
para a vida social. Não, obrigado.
§
A religião proporciona poderosos símbolos exigidos pela existência humana. Sim,
isso é verdade, mas também existem outras fontes para esses símbolos. Não, obrigado.
§
A religião exige submissão à vontade de Deus, independentemente do significado
que possa ter a morte do filho do meu vizinho. Sim, a religião implica
submissão à vontade de Deus, mas apenas com a condição de que não se entenda
esse Deus nem como autor nem como um passivo supervisor da morte dessa criança.
Dito de outro modo: eu submeto-me a um Deus que não
queira a morte desta criança. Qualquer outro tipo de submissão religiosa nega
implicitamente a bondade de Deus e a bondade da criação. Não,
obrigado.
§
A religião poderá tentar consolar-nos dizendo que seremos todos nós, incluindo
esta criança, absorvidos por uma espécie de oceano cósmico da divindade. Não me
interessam consolos. A única coisa que me interessa é esta
criança — única, insubstituível, infinitamente preciosa. Absorvê-la numa
realidade última na qual se perca toda a individualidade não é senão uma outra
versão da morte. Não, obrigado.
Diante
de todas as propostas religiosas totalmente «carentes de interesse», a fé
cristã afirma o valor único e o destino eterno desta
criança, de todas as crianças e da humanidade inteira. Esta afirmação está
contida, com a mais sólida densidade e concisão alguma vez imaginável, na
exclamação: «Cristo ressuscitou!» Eis a razão que faz da ressurreição o
fundamento, o início da fé cristã e faz com que ela se mantenha e continue a
sê-lo assim, caso queiramos manter a possibilidade desta fé nos nossos dias.
Com toda a razão pode Paulo afirmar: «Se
não há ressurreição dos mortos, também Cristo não ressuscitou. Mas se Cristo não ressuscitou, é vã a nossa pregação, e vã é
também a vossa fé.» (1 Cor 15, 13-14). Se é vã, nesse caso, Paulo – melhor,
Saulo – volta para Tarso, dedica-te tranquilamente ao teu ofício de fabricante
de tendas e cultiva o teu jardim de rosas.
Kant sugeria que uma das questões básicas da filosofia
consistia em «que podemos esperar?». Não sei se o é na filosofia, mas na
religião esta é a pergunta basilar. Podemos glosá-la em duas perguntas.
Que esperança resta ao indivíduo após a morte?
Que esperança há para o cosmos para lá da entropia?
No
seu (muito interessante) livro «Life
after Death?», Jay Robinson
usa as expressões «escatologia individual» e «escatologia cósmica» para se
referir, respectivamente, a estas duas questões. Abordá-las-emos de seguida,
separadamente. [CONTINUA]
Peter L.
Berger (Viena 1929-2017),
sociólogo e teólogo de reconhecido prestígio, director do «Institut on Religion
and World Affairs», Boston.
«Cuestiones sobre la fe – una afirmación
escéptica del cristianismo», Herder Barcelona, 2006.