O FOSSO ENTRE O CLERO E O LAICADO
É mais que conhecida a actual crise do
sacerdócio na Igreja católica e a total ineficácia dos esforços levados a cabo,
ao nível oficial, para a superar. Os problemas relativos à escassez
de sacerdotes, a comunidades sem eucaristia, ao celibato, à ordenação das
mulheres, etc., ainda que de modo não exclusivo, condicionam em
grande medida a grave situação a que nos referimos. (É em termos sobreponíveis
que Edward Schillebeeckx nos introduz no seu livro «Plaidoyer pour le peuple de Dieu»,
Cerf 1987, p. 9; «A situação actual [acerca dos Ministérios na Igreja] é sentida por
muitos – simples fiéis ou membros do clero – como deplorável, quanto a muitos
pontos de vista» - NdT). Com progressiva frequência
vemos 'seculares' assumir o papel de guias
ou de líderes paroquiais, os
quais, por não estarem «ordenados», não podem celebrar a eucaristia com os seus
paroquianos como seria a sua obrigação.
Tal realidade não levantava problema de
espécie alguma na Igreja primitiva, onde a celebração eucarística dependia
apenas da comunidade. Os encarregados
da presidência da eucaristia – de acordo com a comunidade – não eram sacerdotes
«ordenados», mas paroquianos absolutamente normais. Hoje em dia
chamar-lhe-íamos 'seculares', ou seja, homens e inclusivamente mulheres, na sua
maioria casados, ainda que também os houvesse solteiros. O importante era a sua
nomeação pela comunidade. Pergunta-se: por que é que aquilo que outrora era possível não pode
sê-lo igualmente possível hoje?
Se Jesus, como se afirma, fundou o
sacerdócio da Nova Aliança, porque é que disso
não restou a mais pequena menção durante os primeiros quatrocentos anos da vida
da Igreja?
Diz-se também que Jesus fundou os sete
sacramentos que são administrados pela Igreja católica. Acontece que é difícil
prová-lo em mais do que um de entre estes sete casos, mas, pelo menos, naquilo
que diz respeito ao sacramento da ordem é totalmente impossível prová-lo. Bem
pelo contrário, Jesus mostrou, por palavras e por obras, que não queria
sacerdotes. Nem ele era sacerdote, nem nenhum
dos «Doze» o foi, nem tão-pouco Paulo.
Do mesmo modo é impossível atribuir a Jesus
a criação da ordem episcopal. Nada nos permite demonstrar que os Apóstolos,
para garantir a permanência da sua função, constituíram os seus sucessores em
bispos. O
ofício de bispo é, aliás como todos os demais ofícios na Igreja, criação da
própria Igreja, sendo bem conhecida a evolução histórica deles. É
evidente que a Igreja sempre pôde, e continua a poder, dispor livremente de
ambas as funções – episcopal e sacerdotal – podendo, portanto, mantê-las,
modificá-las ou suprimi-las.
A crise da Igreja
perdurará enquanto esta não se decidir a oferecer a
si própria uma nova constituição, que acabe de vez e para sempre com os dois
estatutos actuais: sacerdotes e seculares, ordenados e não-ordenados. Tudo deverá restringir-se a um único
«ofício», que inclui guiar a comunidade e celebrar a eucaristia com a
comunidade, função que poderá ser desempenhada por homens e
mulheres, casadas ou solteiros. Acabaríamos assim, de uma penada, com o
problema da ordenação das mulheres e com a questão do celibato.
Quanto à pretensão de se acabar com «as
duas classes» existentes na Igreja, sempre se contrapôs que as evoluções
estruturais ocorridas sempre o foram fundamentadas – ainda que indirectamente −
no Novo Testamento. O exemplo mais frequentemente mencionado é o do baptismo
das crianças, que não aparece expressamente no Novo Testamento, mas que nem por
isso o Novo Testamento o contradiz. Acontece que tais «evoluções estruturais» só podem ser consideradas
válidas caso estejam conformes aos enunciados básicos do Evangelho.
Caso se oponham a estes enunciados essenciais, devem ser consideradas
ilegítimas, insustentáveis e nocivas.
Tal raciocínio aplica-se, sem qualquer
dúvida, igualmente à Igreja «sacerdotal» ou clerical. Inquirindo os testemunhos
dos tempos bíblicos e do cristianismo primitivo chegamos à conclusão clara e
convincente de que o episcopado e o sacerdócio se desenvolveram à margem da
Escritura e foram posteriormente justificados como parte ou elemento
do dogma. Tudo parece indicar que, para a Igreja, é chegada a hora de regressar
ao seu ser próprio e original. (…)
Dedico o presente livro especialmente aos
fiéis das dioceses em que eu exerci directamente o meu ministério: Coira, Basileia
e Rottenburg-Stuttgart.
Herbert Haag,
Lucerna, Ano Novo de 1997.