O Estado Social como projeto de sociedade
O modelo do Estado Social e a
remercadorização
Não é fácil resumir
em poucas linhas os fenómenos históricos mais marcantes que nas últimas décadas
contribuíram para o alastramento do neoliberalismo e o consequente aumento das
desigualdades em muitos dos países desenvolvidos. No entanto, não estaremos a
simplificar em demasia se identificarmos dois períodos bem distintos que
marcaram fundamentalmente a história da Europa ocidental a seguir à Segunda
Grande Guerra. Assim, nos primeiros 30
anos após a guerra, muitos países europeus viveram uma era de
prosperidade das suas economias, o que se refletiu, entre outros fatores, na
constituição de sociedades mais equitativas no que diz respeito à distribuição
de rendimentos e ao incremento da coesão social.
É claro que não se
pode dissociar a evolução deste modelo da conjuntura histórica internacional
marcada pela instauração do Plano Marshall
e pelo início da Guerra Fria que
opunha dois modelos de economia e de sociedade. Face à fortificação do bloco de
Leste comunista, a Europa ocidental e os seus líderes apostaram na consolidação
de um modelo capitalista de bem-estar social que assentava numa concertação
entre o trabalho e o capital. Neste modelo, o Estado Providência (ou Estado
Social) acabou por se tornar a almofada institucional de salvaguarda das
situações sociais mais vulneráveis, mas também um mecanismo de promoção da
igualdade de oportunidades. Os apoios prestados, por meio de diversos subsídios
concedidos (subsídio de desemprego, abonos de família, rendimento mínimo, etc.)
e a institucionalização dos sistemas de educação, de saúde e de segurança
social universais revelaram ser um modelo, com mais ou menos variantes,
bem-sucedido.
Na verdade, nesses
tempos de bonança, a Europa representava o modelo a copiar, não só pelos níveis
de crescimento económico e de prosperidade que conhecia, mas também pela
capacidade de construir instituições nacionais que protegiam as suas populações
dos diversos riscos sociais e ambientais associados à modernização. Foi também
no seio desta Europa ocidental que se começaram a dar os primeiros passos na
criação de instituições que visavam a coesão não só entre pessoas, mas
sobretudo entre países.
Não se pode assim
dissociar o milagre económico da Europa no período pós-guerra da importância
decisiva das instituições então criadas e que se foram consolidando. O progresso
económico associado à coesão social sempre foi a matriz estrutural
da Comunidade Europeia. (…)
As regras
estipuladas em Bretton
Woods começaram a esvanecer-se em meados dos anos 70, o período
que marca o início
da desregulamentação económico-financeira e da era neoliberal que
continua a tomar conta do mundo. Para além da alteração das regras que
parametrizavam o funcionamento dos mercados financeiros, este período
caracteriza-se pela intensificação da globalização económica,
expressa numa série de dinâmicas. Entre estas, destaca-se a deslocalização
das fábricas e da produção industrial prioritariamente para os países em vias
de desenvolvimento, onde proliferam contingentes enormes de mão-de-obra barata,
disponível e jovem.
Na maior parte dos
países europeus verifica-se que desregulação económico-financeira é, de certa
maneira, coincidente com uma forte pressão sobre o Estado Social, o que tem
levado ao seu progressivo desmantelamento, designadamente na compressão
dos subsistemas universais de segurança social e, também, dos subsistemas de
educação e saúde tendencialmente gratuitos.
O neoliberalismo,
que se propagou depois da queda do Muro de Berlim e do esboroar do bloco
soviético, não entrou na Europa somente por meio de uma misteriosa mão
invisível e liberalizante dos mercados, entrou fundamentalmente pela mão visível da política e dos acordos
políticos que se sucederam nos diversos Tratados europeus desde Maastricht.
Por motivos que não cabe aqui explorar, o modelo europeu foi deixando cair
muitos dos princípios basilares que levaram à sua constituição no pós-guerra.
Paradoxalmente, foi
no rescaldo da crise financeira de 2008 – que afetou profundamente os mercados
financeiros, salvos à última hora pela ação dos estados nacionais – que esta mão invisível se tornou ainda mais pesada
e demolidora. Os programas de austeridade concebidos em articulação pelas
diversas instituições comunitárias e internacionais (no caso de Portugal, a
denominada troika)
e os estados nacionais, para, presumivelmente, resolver o problema das dívidas
soberanas, são um exemplo claríssimo da forma institucionalizada como o neoliberalismo vai tomando
conta da política. Aliás, como bem demonstra a perspetiva de K. Polanyi
e de autores mais recentes (Veloso e Carmo, 2012), a expansão do modelo
neoliberal resulta mais de arquiteturas engendradas politicamente com a
conivência e a implicação das instituições públicas do que da ação direta dos
próprios mercados[1].
Como refere Loïc Wacquant
(2012), o neoliberalismo deve ser interpretado como um projeto político que,
apesar de tudo, ao contrário do que muitos defendem, não pretende o desmantelamento completo das
funções burocrático-administrativas dos estados. Pelo contrário, certos
sectores relacionados com a administração do Estado penal e securitário, mas
também do Estado «financeirizado», resgatador de tóxicos financeiros e
nacionalizador de bancos falidos, têm conhecido uma expansão assinalável
atestada, por exemplo, pelo aumento dos orçamentos para estas áreas. Ou seja,
este projeto político visa fundamentalmente a reconfiguração das funções do
Estado e não a redução ou limitação de todas as suas componentes. O programa de
resgate financeiro atualmente aplicado em Portugal é ilustrativo a este
respeito. Os alvos da
austeridade incidem fundamentalmente nas áreas da proteção social e laboral e
não tanto nos setores financeiro, da administração interna, da segurança e da
defesa.
Do ponto de vista
social, o impacto deste modelo político que se vai generalizando é assinalável.
Este, revela-se no recrudescimento das desigualdades em muitos
países europeus. A distribuição do rendimento não só se tornou mais assimétrica
entre os mais ricos e os menos favorecidos (Wilkinson e Pickett, 2010), como os
rendimentos oriundos do capital foram ganhando peso face aos do trabalho
(Harvey, 2011). Por seu turno, as denominadas classes
médias têm vindo progressivamente a conhecer uma estagnação do seu
capital económico (Cantante, 2013; Carvalho, 2013) que foi parcialmente compensada pelo
acesso generalizado ao crédito barato.
Mas com o despontar
da crise financeira e económica [2008], todos estes processos se aceleraram de
maneira inesperada, levando a que, entre outros aspetos, o crédito se tornasse
substancialmente mais caro e menos disponível para as famílias, as empresas e
os próprios estados. Não iremos contar o resto da história, que é bem conhecida
de todos. O que se pretende frisar é precisamente a alteração ocorrida no
suposto modelo europeu – que se revela no aumento das desigualdades e no
relativo empobrecimento das classes médias –, ao mesmo tempo que se verifica um
recuo estrutural nos sistemas de proteção social que caraterizam o Estado
Social. A engenharia
institucional, que nos primórdios da Comunidade Europeia foi tão importante
para articular as políticas de desenvolvimento económico com as políticas de
coesão social, é agora o veículo primordial do desmantelamento do Estado Social
e de aplicação do modelo «austeritário».
Trata-se de uma reorientação perversa cujos impactos
fazem retroceder os níveis de coesão social das sociedades, nomeadamente: no
aumento galopante do desemprego, na precarização acentuada da contratualização
e das condições de trabalho, na perda contínua do poder de compra, no aumento
dos níveis de endividamento, nos "cortes" irreversíveis sobre a
capacidade redistributiva do Estado e sobre as despesas e transferências
sociais, na degradação dos serviços públicos, no encerramento de escolas e de
serviços de saúde,… a lista poderia continuar.
Com a continuação
destas medidas e das suas profundas consequências no tecido social e económico,
caminharemos a prazo para um processo de subdesenvolvimento de cariz regressivo
com implicações tremendas na inversão dos níveis de bem-estar social alcançados
nos últimos anos em Portugal. (…)
Na verdade, se no essencial o Estado Social cumpriu o seu
papel, o mesmo não se poderá dizer em relação a muitos ramos da economia e do
tecido empresarial.
Por este motivo, não se deve encarar o esforço financeiro implicado na
instauração e consolidação do Estado Social como mera despesa, tal como não se
qualificam como despesas os custos que uma empresa tem em tecnologia ou em
recursos humanos qualificados. Em ambos os casos, trata-se, isso sim, de investimentos.
Fará sentido
classificar como despesa o dinheiro aplicado na escolarização geral da
população? E os recursos financeiros depositados nas campanhas de
vacinação que reduziram substancialmente o risco de morte dos bebés até ao
primeiro ano de vida, poderemos vê-los como mera despesa? Mais extraordinário
ainda é vê-los como um luxo ou um privilégio.
O princípio central
de organização do Estado Social é o de proporcionar as condições para a
construção de uma sociedade e uma economia de bem-estar capaz de conciliar eficácia económica com a solidariedade interclassista e
intergeracional. Este
primado efetiva-se através duma política redistributiva concreta que
promova a proteção social, expressa nomeadamente no pleno emprego e na redução
das desigualdades sociais. Ao implementar estes princípios e estas
políticas, o Estado Social está a contribuir, quer para o aumento da coesão
social e da qualidade de vida das populações, quer para que a sociedade e a
economia funcionem melhor, como bem o demonstraram R. Wilkinson e K. Pickett
(2010). Ou seja, o Estado Social detém também um papel funcional na organização
dos diversos setores sociais e económicos, não só porque promove o emprego e
tenta reduzir as desigualdades e os níveis de pobreza, mas também porque dota a
sociedade e a economia de mecanismos mais eficientes e eficazes de organização.
Seria difícil imaginar, por exemplo, o surgimento de
inovação na produção e na organização das empresas sem a preexistência de um
sistema de ensino superior público de cariz universal capaz de qualificar
especialistas competentes
nas mais diversas áreas do conhecimento. Como seria difícil imaginar as
empresas terem de lidar com uma população empregada crescentemente exposta ao
risco de adoecer, por falta de apoio médico e de tratamento proporcionado por
um sistema de saúde público universal. Se comungamos dos princípios enunciados
anteriormente, teremos grande dificuldade em imaginar estes e outros cenários
semelhantes. (…)
A
alternativa: qualificação, redistribuição e «desprivatização»
Tendo em conta a
argumentação anterior, consideramos que neste momento histórico não existe
outra possibilidade senão encarar duas vias, claras e oponentes, para o futuro
de Portugal. A primeira é a que está em curso e cujos traços essenciais
descrevemos nas páginas precedentes. Chamemos-lhe a via do «subdesenvolvimento parcial», assente
fundamentalmente na diminuição alargada dos direitos sociais, na compressão
salarial (sobretudo nos salários intermédios), na desregulamentação do mercado
de trabalho e no aumento da precariedade laboral, na redução da amplitude de
cobertura e de intervenção dos serviços e das funções do Estado Social, etc. A
resolução dos problemas económico-financeiros do país passa por se moldar as
instituições e a sociedade àquilo que, segundo esta perspetiva, o país deverá
realisticamente ambicionar, a saber: ser um pouco menos pobre e um pouco mais
qualificado que os países subdesenvolvidos, detendo uma economia com uma certa
capacidade de inovação orientada para alguns setores exportadores liderados por
apenas um punhado de grupos económicos. Ou, dito de outro modo, um país onde a
maioria da população e dos trabalhadores deverá ter como objetivo primordial viver uma vida
remediada.
De facto, para este
modelo, uma aposta em mais educação/qualificação não só é desnecessária como
representa um desperdício. Para
quê investir generalizadamente no incremento dos níveis de escolarização da
população, se a economia necessitará somente de um número muito limitado de especialistas
altamente qualificados? Para esta via, o esforço de escolarização deve cingir-se
sobretudo ao ensino básico e de cariz profissionalizante,
apostando-se nos baixos salários e no trabalho pouco qualificado. No entanto,
como já se demonstrou no ponto anterior, a viabilidade deste modelo depende de
uma estrutura demográfica de que o país não pode dispor nas próximas décadas.
A outra via, que
defendemos, e que designaremos por «qualificação e redistribuição», considera que
o investimento na modernização do país e na qualificação da população se
encontra inacabada e que, por isso, o caminho deverá ser o aprofundamento desse
esforço e não a sua regressão. O objetivo principal desta via não é o de se
ficar por uma economia remediada, mas o de investir decisivamente no potencial
humano, cultural e científico, no sentido de almejar um projeto de sociedade
capaz de se mobilizar a partir dos seus máximos e não de se remeter aos mínimos
possíveis. Não detendo uma demografia suficientemente jovem e volumosa para
concorrer com os países do Sudeste Asiático ou da América Latina, Portugal não tem outro remédio
senão continuar a apostar na qualificação dos seus recursos sociais e humanos e
na modernização multissectorial da economia.
A viabilidade desta
alternativa passa necessariamente pela centralidade do papel do Estado Social e
das suas instituições públicas. Como já foi referido, (…).
Renato Miguel do Carmo, sociólogo,
investigador auxiliar do CIES-IUL e do Observatório
das Desigualdades. É o organizador do livro «Portugal, Uma Sociedade de Classes: Polarização Social e
Vulnerabilidade» (Edições 70/Le Monde Diplomatique); com Luísa Veloso, «A Constituição Social da Economia»
(Mundos Sociais, 2012).
[pp.
12]
[1]
Aliás, como é sabido, a imposição destas receitas de austeridade não é
exclusiva ao espaço europeu e já ocorreram em sucessivas ocasiões, nos mais
variados países, principalmente no Hemisfério Sul, pela mão de instituições
internacionais, designadamente o FMI e o Banco Mundial (Stiglitz, 2004).