teologia para leigos

7 de agosto de 2015

ESTADO-PROVIDÊNCIA: A VIA ÚNICA PARA PORTUGAL



O Estado Social como projeto de sociedade


O modelo do Estado Social e a remercadorização

Não é fácil resumir em poucas linhas os fenómenos históricos mais marcantes que nas últimas décadas contribuíram para o alastramento do neoliberalismo e o consequente aumento das desigualdades em muitos dos países desenvolvidos. No entanto, não estaremos a simplificar em demasia se identificarmos dois períodos bem distintos que marcaram fundamentalmente a história da Europa ocidental a seguir à Segunda Grande Guerra. Assim, nos primeiros 30 anos após a guerra, muitos países europeus viveram uma era de prosperidade das suas economias, o que se refletiu, entre outros fatores, na constituição de sociedades mais equitativas no que diz respeito à distribuição de rendimentos e ao incremento da coesão social.

É claro que não se pode dissociar a evolução deste modelo da conjuntura histórica internacional marcada pela instauração do Plano Marshall e pelo início da Guerra Fria que opunha dois modelos de economia e de sociedade. Face à fortificação do bloco de Leste comunista, a Europa ocidental e os seus líderes apostaram na consolidação de um modelo capitalista de bem-estar social que assentava numa concertação entre o trabalho e o capital. Neste modelo, o Estado Providência (ou Estado Social) acabou por se tornar a almofada institucional de salvaguarda das situações sociais mais vulneráveis, mas também um mecanismo de promoção da igualdade de oportunidades. Os apoios prestados, por meio de diversos subsídios concedidos (subsídio de desemprego, abonos de família, rendimento mínimo, etc.) e a institucionalização dos sistemas de educação, de saúde e de segurança social universais revelaram ser um modelo, com mais ou menos variantes, bem-sucedido.

Na verdade, nesses tempos de bonança, a Europa representava o modelo a copiar, não só pelos níveis de crescimento económico e de prosperidade que conhecia, mas também pela capacidade de construir instituições nacionais que protegiam as suas populações dos diversos riscos sociais e ambientais associados à modernização. Foi também no seio desta Europa ocidental que se começaram a dar os primeiros passos na criação de instituições que visavam a coesão não só entre pessoas, mas sobretudo entre países.

Não se pode assim dissociar o milagre económico da Europa no período pós-guerra da importância decisiva das instituições então criadas e que se foram consolidando. O progresso económico associado à coesão social sempre foi a matriz estrutural da Comunidade Europeia. (…)

As regras estipuladas em Bretton Woods começaram a esvanecer-se em meados dos anos 70, o período que marca o início da desregulamentação económico-financeira e da era neoliberal que continua a tomar conta do mundo. Para além da alteração das regras que parametrizavam o funcionamento dos mercados financeiros, este período caracteriza-se pela intensificação da globalização económica, expressa numa série de dinâmicas. Entre estas, destaca-se a deslocalização das fábricas e da produção industrial prioritariamente para os países em vias de desenvolvimento, onde proliferam contingentes enormes de mão-de-obra barata, disponível e jovem.

Na maior parte dos países europeus verifica-se que desregulação económico-financeira é, de certa maneira, coincidente com uma forte pressão sobre o Estado Social, o que tem levado ao seu progressivo desmantelamento, designadamente na compressão dos subsistemas universais de segurança social e, também, dos subsistemas de educação e saúde tendencialmente gratuitos.

O neoliberalismo, que se propagou depois da queda do Muro de Berlim e do esboroar do bloco soviético, não entrou na Europa somente por meio de uma misteriosa mão invisível e liberalizante dos mercados, entrou fundamentalmente pela mão visível da política e dos acordos políticos que se sucederam nos diversos Tratados europeus desde Maastricht. Por motivos que não cabe aqui explorar, o modelo europeu foi deixando cair muitos dos princípios basilares que levaram à sua constituição no pós-guerra.

Paradoxalmente, foi no rescaldo da crise financeira de 2008 – que afetou profundamente os mercados financeiros, salvos à última hora pela ação dos estados nacionais – que esta mão invisível se tornou ainda mais pesada e demolidora. Os programas de austeridade concebidos em articulação pelas diversas instituições comunitárias e internacionais (no caso de Portugal, a denominada troika) e os estados nacionais, para, presumivelmente, resolver o problema das dívidas soberanas, são um exemplo claríssimo da forma institucionalizada como o neoliberalismo vai tomando conta da política. Aliás, como bem demonstra a perspetiva de K. Polanyi e de autores mais recentes (Veloso e Carmo, 2012), a expansão do modelo neoliberal resulta mais de arquiteturas engendradas politicamente com a conivência e a implicação das instituições públicas do que da ação direta dos próprios mercados[1].

Como refere Loïc Wacquant (2012), o neoliberalismo deve ser interpretado como um projeto político que, apesar de tudo, ao contrário do que muitos defendem, não pretende o desmantelamento completo das funções burocrático-administrativas dos estados. Pelo contrário, certos sectores relacionados com a administração do Estado penal e securitário, mas também do Estado «financeirizado», resgatador de tóxicos financeiros e nacionalizador de bancos falidos, têm conhecido uma expansão assinalável atestada, por exemplo, pelo aumento dos orçamentos para estas áreas. Ou seja, este projeto político visa fundamentalmente a reconfiguração das funções do Estado e não a redução ou limitação de todas as suas componentes. O programa de resgate financeiro atualmente aplicado em Portugal é ilustrativo a este respeito. Os alvos da austeridade incidem fundamentalmente nas áreas da proteção social e laboral e não tanto nos setores financeiro, da administração interna, da segurança e da defesa.

Do ponto de vista social, o impacto deste modelo político que se vai generalizando é assinalável. Este, revela-se no recrudescimento das desigualdades em muitos países europeus. A distribuição do rendimento não só se tornou mais assimétrica entre os mais ricos e os menos favorecidos (Wilkinson e Pickett, 2010), como os rendimentos oriundos do capital foram ganhando peso face aos do trabalho (Harvey, 2011). Por seu turno, as denominadas classes médias têm vindo progressivamente a conhecer uma estagnação do seu capital económico (Cantante, 2013; Carvalho, 2013) que foi parcialmente compensada pelo acesso generalizado ao crédito barato.

Mas com o despontar da crise financeira e económica [2008], todos estes processos se aceleraram de maneira inesperada, levando a que, entre outros aspetos, o crédito se tornasse substancialmente mais caro e menos disponível para as famílias, as empresas e os próprios estados. Não iremos contar o resto da história, que é bem conhecida de todos. O que se pretende frisar é precisamente a alteração ocorrida no suposto modelo europeu – que se revela no aumento das desigualdades e no relativo empobrecimento das classes médias –, ao mesmo tempo que se verifica um recuo estrutural nos sistemas de proteção social que caraterizam o Estado Social. A engenharia institucional, que nos primórdios da Comunidade Europeia foi tão importante para articular as políticas de desenvolvimento económico com as políticas de coesão social, é agora o veículo primordial do desmantelamento do Estado Social e de aplicação do modelo «austeritário».

Trata-se de uma reorientação perversa cujos impactos fazem retroceder os níveis de coesão social das sociedades, nomeadamente: no aumento galopante do desemprego, na precarização acentuada da contratualização e das condições de trabalho, na perda contínua do poder de compra, no aumento dos níveis de endividamento, nos "cortes" irreversíveis sobre a capacidade redistributiva do Estado e sobre as despesas e transferências sociais, na degradação dos serviços públicos, no encerramento de escolas e de serviços de saúde,… a lista poderia continuar.

Com a continuação destas medidas e das suas profundas consequências no tecido social e económico, caminharemos a prazo para um processo de subdesenvolvimento de cariz regressivo com implicações tremendas na inversão dos níveis de bem-estar social alcançados nos últimos anos em Portugal. (…)

Na verdade, se no essencial o Estado Social cumpriu o seu papel, o mesmo não se poderá dizer em relação a muitos ramos da economia e do tecido empresarial. Por este motivo, não se deve encarar o esforço financeiro implicado na instauração e consolidação do Estado Social como mera despesa, tal como não se qualificam como despesas os custos que uma empresa tem em tecnologia ou em recursos humanos qualificados. Em ambos os casos, trata-se, isso sim, de investimentos. Fará sentido classificar como despesa o dinheiro aplicado na escolarização geral da população? E os recursos financeiros depositados nas campanhas de vacinação que reduziram substancialmente o risco de morte dos bebés até ao primeiro ano de vida, poderemos vê-los como mera despesa? Mais extraordinário ainda é vê-los como um luxo ou um privilégio.

O princípio central de organização do Estado Social é o de proporcionar as condições para a construção de uma sociedade e uma economia de bem-estar capaz de conciliar eficácia económica com a solidariedade interclassista e intergeracional. Este primado efetiva-se através duma política redistributiva concreta que promova a proteção social, expressa nomeadamente no pleno emprego e na redução das desigualdades sociais. Ao implementar estes princípios e estas políticas, o Estado Social está a contribuir, quer para o aumento da coesão social e da qualidade de vida das populações, quer para que a sociedade e a economia funcionem melhor, como bem o demonstraram R. Wilkinson e K. Pickett (2010). Ou seja, o Estado Social detém também um papel funcional na organização dos diversos setores sociais e económicos, não só porque promove o emprego e tenta reduzir as desigualdades e os níveis de pobreza, mas também porque dota a sociedade e a economia de mecanismos mais eficientes e eficazes de organização.

Seria difícil imaginar, por exemplo, o surgimento de inovação na produção e na organização das empresas sem a preexistência de um sistema de ensino superior público de cariz universal capaz de qualificar especialistas competentes nas mais diversas áreas do conhecimento. Como seria difícil imaginar as empresas terem de lidar com uma população empregada crescentemente exposta ao risco de adoecer, por falta de apoio médico e de tratamento proporcionado por um sistema de saúde público universal. Se comungamos dos princípios enunciados anteriormente, teremos grande dificuldade em imaginar estes e outros cenários semelhantes. (…)

A alternativa: qualificação, redistribuição e «desprivatização»

Tendo em conta a argumentação anterior, consideramos que neste momento histórico não existe outra possibilidade senão encarar duas vias, claras e oponentes, para o futuro de Portugal. A primeira é a que está em curso e cujos traços essenciais descrevemos nas páginas precedentes. Chamemos-lhe a via do «subdesenvolvimento parcial», assente fundamentalmente na diminuição alargada dos direitos sociais, na compressão salarial (sobretudo nos salários intermédios), na desregulamentação do mercado de trabalho e no aumento da precariedade laboral, na redução da amplitude de cobertura e de intervenção dos serviços e das funções do Estado Social, etc. A resolução dos problemas económico-financeiros do país passa por se moldar as instituições e a sociedade àquilo que, segundo esta perspetiva, o país deverá realisticamente ambicionar, a saber: ser um pouco menos pobre e um pouco mais qualificado que os países subdesenvolvidos, detendo uma economia com uma certa capacidade de inovação orientada para alguns setores exportadores liderados por apenas um punhado de grupos económicos. Ou, dito de outro modo, um país onde a maioria da população e dos trabalhadores deverá ter como objetivo primordial viver uma vida remediada.

De facto, para este modelo, uma aposta em mais educação/qualificação não só é desnecessária como representa um desperdício. Para quê investir generalizadamente no incremento dos níveis de escolarização da população, se a economia necessitará somente de um número muito limitado de especialistas altamente qualificados? Para esta via, o esforço de escolarização deve cingir-se sobretudo ao ensino básico e de cariz profissionalizante, apostando-se nos baixos salários e no trabalho pouco qualificado. No entanto, como já se demonstrou no ponto anterior, a viabilidade deste modelo depende de uma estrutura demográfica de que o país não pode dispor nas próximas décadas.

A outra via, que defendemos, e que designaremos por «qualificação e redistribuição», considera que o investimento na modernização do país e na qualificação da população se encontra inacabada e que, por isso, o caminho deverá ser o aprofundamento desse esforço e não a sua regressão. O objetivo principal desta via não é o de se ficar por uma economia remediada, mas o de investir decisivamente no potencial humano, cultural e científico, no sentido de almejar um projeto de sociedade capaz de se mobilizar a partir dos seus máximos e não de se remeter aos mínimos possíveis. Não detendo uma demografia suficientemente jovem e volumosa para concorrer com os países do Sudeste Asiático ou da América Latina, Portugal não tem outro remédio senão continuar a apostar na qualificação dos seus recursos sociais e humanos e na modernização multissectorial da economia.

A viabilidade desta alternativa passa necessariamente pela centralidade do papel do Estado Social e das suas instituições públicas. Como já foi referido, (…).


Renato Miguel do Carmo, sociólogo, investigador auxiliar do CIES-IUL e do Observatório das Desigualdades. É o organizador do livro «Portugal, Uma Sociedade de Classes: Polarização Social e Vulnerabilidade» (Edições 70/Le Monde Diplomatique); com Luísa Veloso, «A Constituição Social da Economia» (Mundos Sociais, 2012).

[pp. 12]







[1] Aliás, como é sabido, a imposição destas receitas de austeridade não é exclusiva ao espaço europeu e já ocorreram em sucessivas ocasiões, nos mais variados países, principalmente no Hemisfério Sul, pela mão de instituições internacionais, designadamente o FMI e o Banco Mundial (Stiglitz, 2004).