teologia para leigos

16 de agosto de 2015

A CRISE TEM A VER COM OS MERCADOS E O EURO

Aquando duma muito breve visita a Portugal por parte da chanceler da Alemanha, recordo-me de ter sugerido a um amigo meu que editasse num blog de religião (com apreciável consulta nacional), uma carta que um economista havia redigido à chanceler. O conteúdo era por demais cordato e tratava essencialmente de dar a conhecer a dolorosa realidade económica portuguesa, bem como de apelar para a necessidade de algumas inflexões de política económica comunitária de modo a evitar maiores desastres nacionais na Europa. Dizia coisas como estas:

«Senhora Merkel, Chanceler da Alemanha - Venho pedir-lhe, por ocasião da visita que em breve nos fará, para levar consigo, na partida, uma breve mensagem aos seus concidadãos. Eis o que gostava que lhes transmitisse. (…)
«Afinal os vossos excedentes, são os nossos défices, os créditos dos vossos bancos são as nossas dívidas. (…) À memória ocorrem-me tragédias passadas que deviam ser impensáveis. Concordará comigo pelo menos num ponto: é preciso evitar esses inomináveis regressos ao passado.» (José Maria Castro Caldas, economista)

FONTE: «A SALA DE CIMA», 05-11-2012

Muito me surpreendeu que a resposta que justificava a negação da minha pretensão fosse que, o conteúdo da dita carta, não se inscrevia no âmbito do conteúdo religioso daquele blog.

Passaram já mais de 50 anos sobre o Concílio Ecuménico Vaticano II, e dói-me que nós, cristãos comprometidos com a "opção de vida" de Jesus, continuemos a ter dificuldade em casar "fé" com "compromisso político-partidário": ainda há quem ache que a linguagem da "fé" vive de uma nascente própria (a vida de Deus) que nutre uma realidade específica (a espiritualidade cristã), enquanto a linguagem das "realidades temporais" provém duma realidade sociopolítica que não é rigorosamente a mesma onde nasce a "fé" (a vida humana). Sempre pensei que esta postura estava errada e que ela era inclusivamente a causa do definhamento do catolicismo europeu (hoje mais que evidente, a caminho até duma condição de "seita" maciçamente ignorada e desvalorizada pelos povos europeus). Para mim, o que está vedado aos cristãos (e a qualquer ser humano, em geral) é a tomada do poder pela violência: o compromisso político-partidário não deve estar proibido a nenhum tipo de ministério cristão. Foi por causa dessa minha discordância, que mais me convenci da necessidade imperiosa de não desistir de continuar a editar esta «base de dados de teologia para leigos» («A SALA DE CIMA»).

Curiosamente, se lermos o que diz a Gaudium et spes (N. 36) a este respeito ficamos galhardamente surpreendidos: «No entanto, muitos dos nossos contemporâneos parecem temer que a íntima ligação entre a actividade humana e a religião constitua um obstáculo para a autonomia dos homens, das sociedades ou das ciências

É surpreendente que «o próprio Concílio contenha um texto que aponta com estranha energia e solenidade na direcção justa: a autonomia da realidade criada. Esse texto refere-se à nova consciência de que aquilo que acontece no normal funcionamento do mundo – quer ao nível da Natureza, quer ao nível da História – obedece a leis intrínsecas do próprio mundo, sem que a esse nível (…) se devam procurar causas extra-mundanas, sejam elas divinas para o que é bem, sejam demoníacas para o que é mal.»

Trata-se de um texto que «procura encontrar a sintonia com as mais fundas inquietações/preocupações e as mais justas exigências desde já presentes no mundo actual, bem como assinalar o âmbito universal da sua extensão, não se limitando apenas às "coisas criadas", mas indo também até à "própria sociedade" e, assim, proclama a rigorosa necessidade de a levar a sério "em todos os campos do saber", chegando a "deplorar" como perniciosas para a fé as atitudes contrárias» [cito Andrés Torres Queiruga, «La teología después del Vaticano II – diagnóstico y propuestas», Herder 2013, ISBN 978-84-254-3211-8]:

"Se por autonomia das realidades terrenas se entende que as coisas criadas e as próprias sociedades têm leis e valores próprios, que o homem irá gradualmente descobrindo, utilizando e organizando, é perfeitamente legítimo exigir tal autonomia. Para além de ser uma exigência dos homens do nosso tempo, trata-se de algo inteiramente de acordo com a vontade do Criador. Pois, em virtude do próprio facto da criação, todas as coisas possuem consistência, verdade, bondade e leis próprias, que o homem deve respeitar, reconhecendo os métodos peculiares de cada ciência e arte. Por esta razão, a investigação metódica em todos os campos do saber, quando levada a cabo de um modo verdadeiramente científico e segundo as normas morais, nunca será realmente oposta à fé, já que as realidades profanas e as da fé têm origem no mesmo Deus. Antes, quem se esforça com humildade e constância por perscrutar os segredos da natureza, é, mesmo quando disso não tem consciência, como que conduzido pela mão de Deus, o qual sustenta as coisas e as faz ser o que são. Seja permitido, por isso, deplorar certas atitudes de espírito que não faltaram entre os mesmos cristãos, por não reconhecerem suficientemente a legítima autonomia da ciência e que, pelas disputas e controvérsias a que deram origem, levaram muitos espíritos a pensar que a fé e a ciência eram incompatíveis." [GS, N. 36]

O texto que se segue (pouco importa se o autor é crente ou não...), e que apenas pretende lançar luz sobre as causas da desgraça humana em que acabou a implementação da austeridade pós-Crise de 2007/2008 (sobretudo na Europa), bem como sobre as verdadeiras intenções humanas que lhe subjazem, deve ser considerado como um texto profético, que apenas revela as leis que regem a economia e a política dessa «ideia perigosa» (a austeridade), e que nos permite (a crentes e a não crentes) adquirir uma consciência soberana acerca das «narrativas» que nos querem fazer crer que tudo o que de mal nos tem recentemente vindo a acontecer é inevitável… caso queiramos regressar ao bem-estar social anterior de que gozávamos.

Não, não é verdade que existam duas linguagens: a da narrativa crente e a da narrativa não crente. Isso é um estratagema (cf “Todos os políticos são bons samaritanos” – Prof. João Taborda da Gama) que sempre e só beneficiou a direita e os interesses de uma certa igreja que só sabe sobreviver apoiada no ombro do poder do dinheiro.

Termino com uma frase que S. Bernardo gostava de pronunciar quando lhe apontavam o seu pouco amor à Igreja e lhe pediam que se calasse e fechasse a boca: «O que eu devo fechar não é a boca, mas os olhos para que não tenha que ver o que vejo.» [refº p/ José Ignacio González Faus, sj]





EUROPA:
- demasiado grande para resgatar?
A política de austeridade permanente




Introdução

É verdade que a Europa, especialmente os países que usam o euro, não está de grande saúde orçamental. Mas, tal como nos Estados Unidos, não é verdade que isso resulte de uma orgia de endividamento e de despesa pública. Só no caso da Grécia é que a história do esbanjamento é plausível. Pura e simplesmente, tal não se aplica aos outros Estados europeus. No entanto, hoje em dia, só ouvimos falar do esbanjamento do governo grego e dos trabalhadores gregos preguiçosos e sem competitividade como causa radical da chamada «crise da dívida soberana» da Europa. Mais uma vez, sublinho «chamada», porque embora os quocientes de dívida em relação ao PIB dos Estados europeus tenham crescido substancialmente, desde o início da crise, de uma média de 70% em 2008 para 90% em 2012, esse é o resultado da crise financeira que começou nos Estados Unidos em 2007, atingindo as costas europeias em 2008 e empurrando a economia europeia para a recessão. Tal como aconteceu nos Estados Unidos, a dívida privada de instituições financeiras altamente alavancadas tornou-se dívida pública dos Estados por duas razões: uma já familiar e a outra gerada pelo próprio projeto da união monetária europeia.

A causa familiar foi o congelamento, em 2008, do sistema bancário global que causou a contração da economia europeia. Enquanto os Estados lutavam para tapar esses buracos orçamentais, a dívida pública ocupou mais uma vez o lugar da dívida privada quando os Estados resgataram e recapitalizaram os seus bancos (em alguns casos), ao mesmo tempo que os seus "estabilizadores automáticos" entravam em acção para suportar as suas economias (as receitas fiscais caíram enquanto as transferências subiram em todos os casos). Fundos soberanos já carregados de dívida que dantes não pareciam arriscados – por exemplo, o quociente de dívida em relação ao PIB da Itália era de mais de 100% em 2001 e ninguém parecia preocupar-se – de repente pareciam muito arriscados à medida que o seu crescimento abrandava e, como consequência disso, os juros das suas obrigações disparavam.

A causa oculta era o papel desempenhado pelos bancos europeus na geração da crise da dívida soberana. No fim de 2008, parecia que os bancos europeus tinham escapado ao pior da crise. À parte alguns bancos alemães e um ou outro banco belga aqui ou ali que foram longe demais, o que a Europa teve – disseram, entre dentes, políticos alemães – foi «uma crise da banca anglo-saxónica». Como disse o ministro alemão das Finanças, Peter Steinbrük, a verdadeira causa da crise financeira foi «a irresponsável ênfase, exagerada, no princípio do laissez-faire, nomeadamente ao dar às forças do mercado a máxima liberdade possível em relação à regulação estatal, no sistema financeiro anglo-americano». Dizia-se que, em contrapartida, o modelo da banca europeia era muito mais sadio por causa das suas práticas conservadoras, pelo que não havia necessidade da Europa atirar dinheiro para cima do problema, como os Estados Unidos e o Reino Unido tinham feito. Como disse a chanceler alemã Angela Merkel no fim de 2008, «o dinheiro barato nos Estados Unidos foi um propulsor da crise. (…) Estou profundamente preocupada (…) [com] o reforço dessa tendência (…) [e pergunto a mim mesma] se não nos veremos daqui a cinco anos a enfrentar outra vez a mesma crise»[1]. Uma vez que pareceu ter passado o ponto crítico de liquidez imediata de 2008, o diagnóstico da crise preferido pela potência dominante da Europa era que o problema do continente se cingia a uma crise da despesa estatal. A política correta era, por isso, fazer "cortes" nos orçamentos desses Estados periféricos libertinos.

Há só um problema neste diagnóstico: está errado! A crise corrente da zona euro tem, na realidade, muito pouco a ver com a libertinagem orçamental dos fundos soberanos da periferia, apenas um dos quais [a Grécia], como se assinalou, era significativamente libertino. Há uma crise nos mercados de dívida soberana europeia: disso não há dúvida. Mas tratá-la como uma crise provocada por consumo alimentado por dívida e despesa libertina do Estado é confundir correlações (aconteceram ao mesmo tempo) com causas (despesa descontrolada causada pela crise).

Como vimos no caso dos EUA, a crise na Europa não tem quase nada a ver com os Estados e tem tudo a ver com mercados. É uma crise do setor privado que se tornou mais uma vez uma responsabilidade do Estado. Não tem quase nada a ver com demasiada despesa do Estado e tem quase tudo a ver com os incentivos que os bancos enfrentaram quando o euro - uma máquina financeira apocalíptica que os europeus construíram para si próprios - foi introduzido. Para perceber porquê, comecemos pela história oficial da crise europeia: como a crise atingiu a Europa, o cisma ideológico acerca da despesa, a descoberta dos PIIGS e da dívida governamental e o apelo à austeridade. Depois, mudamos de velocidade e examinamos a razão pela qual há políticos europeus que andam a dizer conscientemente coisas muito estúpidas, isto é, a razão pela qual escondem a verdadeira história da crise e a verdadeira razão pela qual todos precisamos de ser austeros.


A crise atinge a Europa

A maior economia da Europa, a Alemanha, viu os primeiros sinais de problemas aproximarem-se em Agosto de 2007 quando o IKB, um mutuante sediado em Düsseldorf, teve que ser resgatado depois de sofrer prejuízos nos seus investimentos em subprime nos Estados Unidos. A seguir a esse incidente, pareceu por momentos que os bancos alemães tinham evitado a crise, até que o Estado teve que intervir e resgatar o banco Hypo Real Estate em 2008 com os seus empréstimos hipotecários a clientes da Europa de Leste. Isso fez soar o alarme de que outros grandes bancos alemães ainda estavam expostos ao Leste através dos seus empréstimos a bancos austríacos, que, por sua vez, emprestaram esse dinheiro – equivalente a 70% do PIB austríaco – a clientes hipotecários da Europa de Leste cujas divisas estavam já a perder valor rapidamente.

Em resposta, o governo alemão anunciou um fundo para resgate de bancos de 500 milhares de milhões de euros no fim de 2008. A Alemanha voltou a ficar nervosa em 2009 quando vários Länderbankenbancos público-privados de desenvolvimento regional da Alemanha, que também tinham, ao que veio a verificar-se, investido em ativos tóxicos dos EUA – tiveram problemas. Mas também trataram facilmente dos seus prejuízos. No fim de 2009, o sistema bancário alemão estava estável, se não saudável. O que preocupava os Alemães era que a crise de crédito global não afetasse as suas exportações – a sua máquina de crescimento – e não, propriamente, a exposição aos títulos hipotecários subprime dos EUA.

Esses receios pareciam justificar-se quando, no quarto trimestre de 2008, as exportações alemãs contribuíram com 8,1% para um total de 9,4% de declínio anualizado do PIB. Em meados de 2009, o Bundesbank previa uma contração do PIB de 6% até ao fim do ano. Uma procura suficientemente robusta na Ásia, todavia, compensou os declínios na Zona Euro. As exportações alemãs, porém, recuperaram rapidamente. As encomendas à indústria aumentaram ao longo de 2009, e em Agosto a confiança dos investidores tinha atingido o seu ponto mais alto em três anos. A Alemanha, ao que parecia, tinha-se esquivado às balas financeiras que emanavam dos Estados Unidos. É verdade que a Alemanha tinha o seu próprio programa de incentivos na forma original do seu programa automóvel de "dinheiro-por-ferro-velho", um aumento das prestações familiares e, o que é mais significativo, subsídios aos empregadores para não despedirem trabalhadores. Mas, ao contrário dos Estados Unidos e do Reino Unido, não houve necessidade de ligar as bombas de bombear dinheiro para alimentar a recuperação. Não é de admirar, então, que os Alemães parecessem espantados quando os Estados Unidos e o Reino Unido fizeram exatamente o mesmo.


Doze meses keynesianos

Um dos aspetos mais estranhos da transmissão da crise financeira dos Estados Unidos à Europa foi a súbita adoção da economia keynesiana por quase toda a gente, com a exceção do Banco Central Europeu (BCE) e do governo alemão. Recordando a (…)

Mark Blyth
«Austeridade – a história de uma ideia perigosa», Quetzal & Oxford University Press 2013, pp. 85-145. ISBN 978-989-722-129-3.

Mark Blyth nasceu em Dundee, na Escócia. Doutorou-se em Ciência Política, nos EUA, na Universidade de Columbia (NY), em 1999, e ensinou na Universidade John Hopkins até 2009. Actualmente, é professor de Economia Política no Departamento de Ciência Política da Universidade de Brown, em Providence, EUA.

Entre outras obras e muitos artigos científicos dedicados às relações entre a economia, política e relações internacionais e globalização, Mark Blyth é também autor do aclamado «Great Transformations: Economic Ideas and Institutional Changes in the Twentieth Century».

[pp. 45]








[1] Angela Merkel citada em Abraham Newman, «Flight from Risk: Unified Germany and the Role of Beliefs in the European Response to the Financial Crisis», German Politics and Society 28, 2 (Verão de 2010): 158. Newman também cita Steinbrük como tendo dito que «está a ser bombeado tanto dinheiro para o mercado que os mercados de capitais podiam facilmente ser esmagados, o que resultaria num período global de inflação», ibid.