Aquando duma
muito breve visita a Portugal por parte da chanceler da Alemanha, recordo-me de
ter sugerido a um amigo meu que editasse num blog de religião (com apreciável consulta nacional), uma carta que
um economista havia redigido à chanceler. O conteúdo era por demais cordato e
tratava essencialmente de dar a conhecer a dolorosa realidade económica portuguesa,
bem como de apelar para a necessidade de algumas inflexões de política
económica comunitária de modo a evitar maiores desastres nacionais na Europa. Dizia
coisas como estas:
«Senhora Merkel, Chanceler da Alemanha - Venho
pedir-lhe, por ocasião da visita que em breve nos fará, para levar consigo, na
partida, uma breve mensagem aos seus concidadãos. Eis o que gostava que lhes
transmitisse. (…)
«Afinal os vossos excedentes, são os nossos défices,
os créditos dos vossos bancos são as
nossas dívidas. (…) À memória ocorrem-me tragédias passadas que deviam ser impensáveis. Concordará comigo
pelo menos num ponto: é preciso evitar esses inomináveis regressos ao passado.» (José Maria Castro Caldas, economista)
FONTE: «A
SALA DE CIMA», 05-11-2012
Muito me
surpreendeu que a resposta que justificava a negação da minha pretensão fosse
que, o conteúdo da dita carta, não se inscrevia no âmbito do conteúdo religioso
daquele blog.
Passaram já
mais de 50 anos sobre o Concílio Ecuménico Vaticano II, e dói-me que nós,
cristãos comprometidos com a "opção de vida" de Jesus, continuemos a
ter dificuldade em casar "fé" com "compromisso
político-partidário": ainda há quem ache que a linguagem da "fé"
vive de uma nascente própria (a vida de Deus) que nutre uma realidade
específica (a espiritualidade cristã), enquanto a linguagem das "realidades
temporais" provém duma realidade sociopolítica que não é rigorosamente a
mesma onde nasce a "fé" (a vida humana). Sempre pensei que esta
postura estava errada e que ela era inclusivamente a causa do definhamento do
catolicismo europeu (hoje mais que evidente, a caminho até duma condição de
"seita" maciçamente ignorada e desvalorizada pelos povos europeus). Para
mim, o que está vedado aos cristãos (e a qualquer ser humano, em geral) é a
tomada do poder pela violência: o compromisso político-partidário não deve
estar proibido a nenhum tipo de ministério cristão. Foi por causa dessa minha discordância,
que mais me convenci da necessidade imperiosa de não desistir de continuar a editar esta «base de dados de
teologia para leigos» («A SALA DE CIMA»).
Curiosamente,
se lermos o que diz a Gaudium et spes
(N. 36) a este respeito ficamos galhardamente surpreendidos: «No
entanto, muitos dos nossos contemporâneos parecem temer que a íntima
ligação entre a actividade humana e a religião constitua um
obstáculo para a autonomia dos homens, das sociedades ou das ciências.»
É surpreendente que «o próprio Concílio
contenha um texto que aponta com estranha energia e solenidade na direcção
justa: a autonomia da realidade criada.
Esse texto refere-se à nova
consciência de que aquilo que acontece no normal funcionamento do
mundo – quer ao nível da Natureza, quer ao nível da História – obedece a leis intrínsecas do próprio
mundo, sem que a esse nível (…) se devam procurar causas extra-mundanas, sejam
elas divinas para o que é bem, sejam demoníacas para o que é mal.»
Trata-se de um texto que «procura encontrar
a sintonia com as mais fundas inquietações/preocupações e as mais justas exigências
desde já presentes no mundo actual, bem como assinalar o âmbito universal da
sua extensão, não se limitando apenas às "coisas criadas", mas indo
também até à "própria sociedade" e, assim, proclama a rigorosa
necessidade de a levar a sério "em todos os campos do saber",
chegando a "deplorar" como perniciosas para a fé as atitudes
contrárias» [cito Andrés Torres Queiruga, «La teología
después del Vaticano II – diagnóstico y propuestas», Herder 2013,
ISBN 978-84-254-3211-8]:
"Se por autonomia das realidades
terrenas se entende que as coisas criadas e as próprias sociedades têm leis e
valores próprios, que o homem irá gradualmente descobrindo, utilizando e
organizando, é
perfeitamente legítimo exigir tal autonomia. Para além de ser uma
exigência dos homens do nosso tempo, trata-se de algo inteiramente de acordo com a vontade do
Criador. Pois, em virtude do próprio facto da criação, todas as coisas possuem consistência, verdade, bondade e leis próprias,
que o homem deve respeitar, reconhecendo os métodos peculiares de
cada ciência e arte. Por esta razão, a investigação metódica em todos os campos
do saber, quando levada a cabo de um modo verdadeiramente científico e segundo
as normas morais, nunca será realmente oposta à fé, já que as realidades profanas e as da fé têm
origem no mesmo Deus. Antes, quem se esforça com humildade e
constância por perscrutar os segredos da natureza, é, mesmo quando disso não
tem consciência, como que conduzido pela mão de Deus, o qual sustenta as coisas
e as faz ser o que são. Seja permitido, por isso,
deplorar certas atitudes de espírito que não faltaram entre os
mesmos cristãos, por não reconhecerem suficientemente a legítima autonomia da
ciência e que, pelas disputas e controvérsias a que deram origem, levaram
muitos espíritos a pensar que a fé e a ciência eram incompatíveis." [GS,
N. 36]
O texto que se segue (pouco importa se o autor é crente ou não...),
e que apenas pretende lançar luz sobre as causas da desgraça humana em que
acabou a implementação da austeridade pós-Crise de 2007/2008 (sobretudo na
Europa), bem como sobre as verdadeiras intenções humanas que lhe subjazem, deve
ser considerado como um texto profético, que apenas revela as leis
que regem a economia e a política dessa «ideia perigosa» (a austeridade), e que
nos permite (a crentes e a não crentes) adquirir uma consciência soberana acerca das «narrativas»
que nos querem fazer crer que tudo o que de mal nos tem recentemente vindo a
acontecer é inevitável…
caso queiramos regressar ao bem-estar social anterior de que gozávamos.
Não, não é verdade
que existam duas linguagens: a da narrativa crente e a da narrativa não crente. Isso é um estratagema (cf “Todos os políticos são bons samaritanos” – Prof. João Taborda da Gama)
que sempre e só beneficiou a direita e os interesses de uma certa igreja que só
sabe sobreviver apoiada no ombro do poder do dinheiro.
Termino com uma
frase que S.
Bernardo gostava de pronunciar quando lhe apontavam o seu pouco amor
à Igreja e lhe pediam que se calasse e fechasse a boca: «O que eu devo fechar não é a boca, mas os olhos
para que não tenha que ver o que vejo.» [refº p/ José Ignacio González
Faus, sj]
EUROPA:
- demasiado grande para resgatar?
A
política de austeridade permanente
Introdução
É
verdade que a Europa, especialmente os países que usam o euro, não está de
grande saúde orçamental. Mas, tal como nos Estados Unidos, não é verdade que isso resulte de uma orgia
de endividamento e de despesa pública. Só no caso da Grécia é que a
história do esbanjamento é plausível. Pura e simplesmente, tal não se aplica
aos outros Estados europeus. No entanto, hoje em dia, só ouvimos falar do
esbanjamento do governo grego e dos trabalhadores gregos preguiçosos e sem
competitividade como causa radical da chamada «crise da dívida soberana» da
Europa. Mais uma vez, sublinho «chamada», porque embora os quocientes de dívida
em relação ao PIB dos Estados europeus tenham crescido substancialmente, desde
o início da crise, de uma média de 70% em 2008 para 90% em 2012, esse é o resultado
da crise financeira que começou nos Estados Unidos em 2007, atingindo as costas
europeias em 2008 e empurrando a economia europeia para a recessão. Tal como
aconteceu nos Estados Unidos, a dívida privada de instituições financeiras altamente
alavancadas tornou-se dívida pública dos Estados por duas razões: uma já
familiar e a outra gerada pelo próprio projeto da união monetária europeia.
A
causa
familiar foi o congelamento, em 2008, do sistema bancário global que
causou a contração da economia europeia. Enquanto os Estados lutavam para tapar
esses buracos orçamentais, a dívida pública ocupou mais uma vez o lugar da
dívida privada quando os Estados resgataram e recapitalizaram os seus bancos
(em alguns casos), ao mesmo tempo que os seus "estabilizadores
automáticos" entravam em acção para suportar as suas economias (as
receitas fiscais caíram enquanto as transferências subiram em todos os casos).
Fundos soberanos já carregados de dívida que dantes não pareciam arriscados –
por exemplo, o quociente de dívida em relação ao PIB da Itália era de mais
de 100% em 2001 e ninguém parecia preocupar-se – de repente pareciam muito
arriscados à medida que o seu crescimento abrandava e, como consequência disso,
os juros das suas obrigações disparavam.
A
causa oculta
era o papel desempenhado pelos bancos europeus na geração da crise da dívida
soberana. No fim de 2008, parecia que os bancos europeus tinham escapado ao
pior da crise. À parte alguns bancos alemães e um ou outro banco belga aqui ou
ali que foram longe demais, o que a Europa teve – disseram, entre dentes,
políticos alemães – foi «uma crise da banca anglo-saxónica». Como disse o ministro
alemão das Finanças, Peter Steinbrük, a verdadeira causa da crise
financeira foi «a irresponsável ênfase, exagerada, no princípio do laissez-faire, nomeadamente ao dar às
forças do mercado a máxima liberdade possível em relação à regulação estatal,
no sistema financeiro anglo-americano». Dizia-se que, em contrapartida, o
modelo da banca europeia era muito mais sadio por causa das suas práticas
conservadoras, pelo que não havia necessidade da Europa atirar dinheiro para
cima do problema, como os Estados Unidos e o Reino Unido tinham feito. Como
disse a chanceler alemã Angela Merkel no fim de 2008, «o dinheiro
barato nos Estados Unidos foi um propulsor da crise. (…) Estou profundamente
preocupada (…) [com] o reforço dessa tendência (…) [e pergunto a mim mesma] se
não nos veremos daqui a cinco anos a enfrentar outra vez a mesma crise»[1].
Uma vez que pareceu ter passado o ponto crítico de liquidez imediata de 2008, o
diagnóstico da crise preferido pela potência dominante da Europa era que o
problema do continente se cingia a uma crise da despesa estatal. A política
correta era, por isso, fazer "cortes" nos orçamentos desses Estados
periféricos libertinos.
Há só
um problema neste diagnóstico: está errado! A crise corrente
da zona euro tem, na realidade, muito
pouco a ver com a libertinagem orçamental dos fundos soberanos da periferia,
apenas um dos quais [a Grécia], como
se assinalou, era significativamente libertino. Há uma crise nos mercados de
dívida soberana europeia: disso não há dúvida. Mas tratá-la como uma crise
provocada por consumo alimentado por dívida e despesa libertina do Estado é confundir
correlações (aconteceram ao mesmo tempo) com causas (despesa
descontrolada causada pela crise).
Como
vimos no caso dos EUA, a crise na Europa não tem quase nada a ver com os Estados
e tem tudo a ver com mercados. É uma crise do setor privado
que se tornou mais uma vez uma responsabilidade do Estado. Não tem quase nada a
ver com demasiada despesa do Estado e tem quase tudo a ver com os incentivos
que os bancos enfrentaram quando o euro
- uma máquina
financeira apocalíptica que os europeus construíram para si próprios
- foi introduzido. Para perceber porquê,
comecemos pela história oficial da crise europeia: como a crise atingiu a
Europa, o cisma ideológico acerca da despesa, a descoberta dos PIIGS e da
dívida governamental e o apelo à austeridade. Depois, mudamos de velocidade e
examinamos a razão pela qual há políticos europeus que andam a dizer conscientemente
coisas muito estúpidas, isto é, a razão pela qual escondem a verdadeira
história da crise e a verdadeira razão pela qual todos precisamos de ser
austeros.
A
crise atinge a Europa
A
maior economia da Europa, a Alemanha, viu os primeiros sinais de problemas
aproximarem-se em Agosto de 2007
quando o IKB, um mutuante sediado
em Düsseldorf, teve que ser resgatado depois de sofrer prejuízos nos seus
investimentos em subprime nos Estados
Unidos. A seguir a esse incidente, pareceu por momentos que os bancos alemães
tinham evitado a crise, até que o Estado teve que intervir e resgatar o banco Hypo Real Estate em 2008 com os
seus empréstimos hipotecários a clientes da Europa de Leste. Isso fez soar o
alarme de que outros grandes bancos alemães ainda estavam expostos ao Leste
através dos seus empréstimos a bancos austríacos, que, por sua vez, emprestaram
esse dinheiro – equivalente a 70% do PIB austríaco – a clientes hipotecários da
Europa de Leste cujas divisas estavam já a perder valor rapidamente.
Em
resposta, o governo alemão anunciou um fundo para resgate de bancos de 500
milhares de milhões de euros no fim de 2008.
A Alemanha voltou a ficar nervosa em 2009
quando vários Länderbanken – bancos público-privados de desenvolvimento
regional da Alemanha, que também tinham, ao que veio a verificar-se, investido
em ativos tóxicos dos EUA – tiveram problemas. Mas também trataram
facilmente dos seus prejuízos. No fim de 2009, o sistema bancário alemão estava
estável, se não saudável. O que preocupava os Alemães era que a crise de
crédito global não afetasse as suas exportações – a sua máquina de crescimento – e
não, propriamente, a exposição aos títulos hipotecários subprime dos EUA.
Esses
receios pareciam justificar-se quando, no quarto trimestre de 2008, as
exportações alemãs contribuíram com 8,1% para um total de 9,4% de declínio
anualizado do PIB. Em meados de 2009, o Bundesbank previa uma contração do PIB de 6%
até ao fim do ano. Uma procura suficientemente robusta na Ásia, todavia,
compensou os declínios na Zona Euro. As exportações alemãs, porém, recuperaram
rapidamente. As encomendas à indústria aumentaram ao longo de 2009, e em Agosto
a confiança dos investidores tinha atingido o seu ponto mais alto em três anos.
A Alemanha, ao que parecia, tinha-se esquivado às balas financeiras que
emanavam dos Estados Unidos. É verdade que a Alemanha tinha o seu próprio programa de incentivos
na forma original do seu programa automóvel de "dinheiro-por-ferro-velho",
um aumento das prestações familiares e, o que é mais significativo, subsídios
aos empregadores para não despedirem trabalhadores. Mas, ao contrário dos
Estados Unidos e do Reino Unido, não houve necessidade de ligar as bombas de bombear
dinheiro para alimentar a recuperação. Não é de admirar, então, que os Alemães
parecessem espantados quando os Estados Unidos e o Reino Unido fizeram
exatamente o mesmo.
Doze
meses keynesianos
Um
dos aspetos mais estranhos da transmissão da crise financeira dos Estados
Unidos à Europa foi a
súbita adoção da economia keynesiana por quase toda a gente, com a exceção do
Banco Central Europeu
(BCE) e do governo alemão. Recordando a (…)
Mark Blyth
«Austeridade – a história de uma ideia perigosa»,
Quetzal & Oxford University Press 2013, pp. 85-145. ISBN 978-989-722-129-3.
Mark
Blyth nasceu em Dundee, na Escócia. Doutorou-se em Ciência Política, nos EUA,
na Universidade de Columbia (NY), em 1999, e ensinou na Universidade John
Hopkins até 2009. Actualmente, é professor de Economia Política no Departamento
de Ciência Política da Universidade de Brown, em Providence, EUA.
Entre
outras obras e muitos artigos científicos dedicados às relações entre a
economia, política e relações internacionais e globalização, Mark Blyth é
também autor do aclamado «Great Transformations: Economic Ideas and Institutional
Changes in the Twentieth Century».
[pp. 45]
[1] Angela Merkel citada em Abraham
Newman, «Flight
from Risk: Unified Germany and the Role of Beliefs in the European Response to
the Financial Crisis», German Politics and Society 28, 2 (Verão de
2010): 158. Newman também cita Steinbrük como tendo dito que «está a ser
bombeado tanto dinheiro para o mercado que os mercados de capitais podiam
facilmente ser esmagados, o que resultaria num período global de inflação»,
ibid.