teologia para leigos

23 de agosto de 2015

ECONOMIA e DIREITOS HUMANOS - contra a actual lavagem ao cérebro

«Há que afirmar sem rodeios que existe um vínculo indissolúvel entre a nossa fé e os pobres.» [EG, n. 48)

«Prefiro uma Igreja acidentada, ferida e enlameada por ter saído pelas estradas, a uma Igreja enferma pelo fechamento e pela comodidade de se agarrar às próprias seguranças. Não quero uma Igreja preocupada em ser o centro.» [EG, n. 49]

«Ao lermos as Escrituras, fica bem claro que a proposta do Evangelho não consiste só numa relação pessoal com Deus. E a nossa resposta de amor também não deveria ser entendida como uma mera soma de pequenos gestos pessoais a favor de alguns indivíduos necessitados, o que poderia constituir uma «caridade à la carte», uma série de acções destinadas apenas a tranquilizar a própria consciência. A proposta é o Reino de Deus (cf. Lc 4, 43); trata-se de amar a Deus, que reina no mundo. Na medida em que Ele conseguir reinar entre nós, a vida social será um espaço de fraternidade, de justiça, de paz, de dignidade para todos. Por isso, tanto o anúncio como a experiência cristã tendem a provocar consequências sociais. Procuremos o seu Reino: «Procurai primeiro o Reino de Deus e a sua justiça, e tudo o mais se vos dará por acréscimo» (Mt 6, 33) [EG, n. 180].





ECONOMIA POLÍTICA DOS DIREITOS HUMANOS
I PARTE


Introdução


Os direitos humanos constituem uma das ideias mais felizes e férteis do nosso tempo, personificando aos olhos de muitos dos pobres e dos oprimidos do planeta a prodigiosa fórmula que lhes poderá propiciar a justiça e a dignidade indispensáveis ao adorno do seu efémero percurso terreno. Desde as suas origens, e por muito que a alguns eventualmente custe admitir, a ciência económica, no seu sentido mais profundo, ou mais puro, ambicionou sempre alcançar o mesmo fim. Todavia, e apesar desta inegável convergência de propósitos, inúmeros indícios sugerem que a economia cultivaria uma certa antipatia para com os direitos humanos. Fará sentido que os dois conceitos, que terão quiçá mais contribuído para o progresso da humanidade – a economia para libertar da necessidade, e os direitos humanos para libertar do medo – exibam, no mínimo, uma tão pobre afinidade? Para além de partilharem um objetivo comum, nós próprios, a economia e os direitos humanos estão intimamente ligados por outros motivos ainda. Com efeito, existe uma incontornável dimensão económica nos direitos humanos assim como uma inequívoca dimensão de direitos humanos na economia. Por um lado, a promoção dos direitos humanos exige a mobilização de recursos e, portanto, a inevitável consideração de uma restrição de ordem económica. Por outro lado, a eficácia e a eficiência das decisões económicas pressupõem um significativo grau de liberdade do agente, só podendo este mesmo agente escolher a melhor solução possível entre as várias que se lhe oferecem se, de facto, for livre de o fazer. […]



O que caracteriza, então, a corrente dominante da economia?

A corrente dominante da economia, como qualquer outra escola de pensamento económico, carateriza-se pela sua metodologia particular, pela sua racionalidade particular e pelo seu particular arsenal analítico. A corrente dominante é, então, individualista, utilitarista e apontada ao equilíbrio, e, finalmente, obcecada pela formalização matemática. Sendo individualista, a economia dominante define os seus objetivos em termos de prossecução do interesse pessoal de um indivíduo isolado, sendo o bem-estar social medido, nestas circunstâncias, pela soma aritmética dos níveis de bem-estar de cada indivíduo. Sendo utilitarista e apontada ao equilíbrio, a economia dominante está particularmente orientada para a maximização da utilidade individual, ou seja, o rendimento expresso em moeda, e para procurar o equilíbrio social da oferta e da procura, sendo o mercado, com a sua parafernália automática, a instituição ideal para comandar este processo. Finalmente, estando obcecada pela formalização matemática, a economia dominante privilegia a análise quantitativa de causa e efeito, e reduz de modo irrealista a complexidade da sociedade, de modo a descobrir leis científicas semelhantes às que governariam o reino da natureza.

A abordagem crítica que nos propomos fazer à economia também poderia, e porventura deveria, ser levada a cabo em relação aos direitos humanos. Os direitos humanos são, de facto, tão passíveis de discussão como os princípios económicos, não havendo razão superior para que qualquer deles constituía um dado adquirido. No entanto, uma discussão paradigmática sobre direitos humanos é uma tarefa que está muito para além das competências do autor deste trabalho. Assim, limitar-nos-emos ao exame das implicações para a economia - para a ciência económica - da tácita aceitação dos direitos humanos como legislação internacional consuetudinária. Por outro lado, também não abordaremos todos os direitos humanos. A análise da interação entre economia e direitos humanos focará, essencialmente, os direitos económicos, sociais e culturais, não só porque estes estão mais intimamente relacionados com a economia, mas também porque, vistos sobretudo como objetivos louváveis mais do que como legislação vinculativa, estes têm sido claramente negligenciados quando comparados com os direitos civis e políticos. Não obstante esta especial incidência, os direitos civis e políticos não serão totalmente esquecidos, sendo os dois últimos capítulos deste trabalho dedicados às interações da economia com a democracia.

O propósito essencial desta análise das interações da economia com os direitos humanos consiste em identificar as implicações da valorização dos direitos humanos para a definição, não só das políticas económicas, mas também do próprio sistema de condução da economia. Os dois princípios que devemos ter em consideração logo à partida são, em primeiro lugar, que os direitos humanos são indivisíveis, isto é, que em teoria não existem direitos mais importantes do que outros ou, dito de outro modo ainda, que não existem direitos negligenciáveis; e, em segundo lugar, que os direitos humanos podem e devem ser interpretados simultaneamente como instrumentos e finalidades do progresso económico.

A abordagem seguida neste trabalho é a da economia política, conceito originalmente introduzido na ciência económica por Antoine de Montchrestien em 1615 na sua obra Traité d’Économie Politique, e que associa dois conceitos distintos herdados da antiguidade. O termo "economia" provém do grego antigo oikos nomos, a regra da casa, ou, numa linguagem mais atual, a gestão da casa. Ao se lhe acrescentar a política, fabricando, assim, o conceito de economia política, acrescenta-se também uma nova dimensão à definição primeira de economia. Derivando a palavra "política" do grego politikos, que significa a arte de governar a cidade, ou seja, de administrar a coisa pública, a economia política significa, pois, que a dimensão da casa é ampliada para abraçar uma comunidade mais ou menos vasta, extravasando claramente a família em torno da qual se organizava a oikos nomos. Em suma, na sua forma original o conceito de economia política pode ser entendido como objecto de estudo, mas também como método analítico. No primeiro caso, a economia política estudaria a economia nacional, ou ainda a inter-relação entre a esfera pública e a esfera privada, entre o Estado e o mercado. No segundo caso, a economia política seria entendida como a aplicação do método económico à análise dos fenómenos políticos ou, em alternativa, do método da ciência política aos fenómenos económicos.

Em virtude da inexistência de um relativo consenso em torno destes diferentes modos de apreender a economia política, assumiremos aqui a visão heterodoxa do conceito que considera esta mesma economia política sobretudo como um método de análise da sociedade. O ponto de partida desta análise consiste em oferecer uma alternativa ao tratamento tradicional dado pela economia da corrente dominante aos fenómenos sociais. Por exemplo, para o economista político, o mercado não é nem soberano nem natural, omnipotente e caído do céu, mas sim uma instituição social, uma construção humana. A economia política introduz, ainda, na sua análise os conceitos de poder, de conflito e de desigualdade, quer no contexto da luta de classes, característica da visão marxista, quer no contexto menos sulfuroso da concertação e da negociação entre interesses concorrentes.

Uma outra caraterística da economia política consiste na recusa em separar a economia positiva da normativa, e, portanto, na recusa em separar a eficiência da ética. Em contraste, a economia dominante, para além de recorrer a uma definição de economia já de si muito estreita, a de mero estudo da afetação de (…).

Prof. Manuel Couret Branco, Universidade de Évora.
Economista licenciado por Paris-1 Panthéon-Sorbonne, que se doutorou em Economia na École des Hautes Études en Sciences Sociales, também em Paris. Leciona, no departamento de Economia da Escola de Ciências Sociais da Universidade de Évora, "História do Pensamento Económico", "Economia do Desenvolvimento", "Economia da Política Social" e "Economia dos Direitos Humanos". É autor, de entre outros livros e artigos científicos, dos livros «Economia com Compromisso» e «Economia da Saúde e da Produção Animal» e do artigo «Direitos Económicos: um desafio à Europa Social». ISBN 978-972-618-661-8 (Edições SÍLABO, Rua Cidade de Manchester, 2, 1170-100 LISBOA. T.: 218130345)


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