«Há
que afirmar sem rodeios que existe um vínculo
indissolúvel entre a nossa fé e os pobres.» [EG, n. 48)
«Prefiro
uma Igreja acidentada, ferida e enlameada por ter saído pelas estradas, a uma
Igreja enferma pelo fechamento e pela comodidade de se agarrar às próprias
seguranças. Não quero uma Igreja preocupada em ser
o centro.» [EG, n. 49]
«Ao
lermos as Escrituras, fica bem claro que a proposta do
Evangelho não consiste só numa relação pessoal com Deus. E a nossa
resposta de amor também não deveria ser entendida como uma mera soma de pequenos
gestos pessoais a favor de alguns indivíduos necessitados, o que
poderia constituir uma «caridade à la carte», uma série de acções
destinadas apenas a tranquilizar a própria consciência. A proposta é o Reino de Deus (cf. Lc 4,
43); trata-se de amar a Deus, que reina no mundo.
Na medida em que Ele conseguir reinar entre nós,
a vida social será um espaço de fraternidade, de justiça, de paz, de dignidade para todos. Por isso, tanto o anúncio como a
experiência cristã tendem a provocar consequências sociais.
Procuremos o seu Reino: «Procurai primeiro o Reino de Deus e a sua justiça, e
tudo o mais se vos dará por acréscimo» (Mt 6, 33) [EG, n. 180].
ECONOMIA POLÍTICA DOS
DIREITOS HUMANOS
I PARTE
Introdução
Os
direitos humanos constituem uma das ideias mais felizes e férteis do nosso
tempo, personificando aos olhos de muitos dos pobres e dos oprimidos do planeta
a prodigiosa fórmula que lhes poderá propiciar a justiça e a dignidade indispensáveis
ao adorno do seu efémero percurso terreno. Desde as suas origens, e por muito
que a alguns eventualmente custe admitir, a ciência económica, no seu sentido
mais profundo, ou mais puro, ambicionou sempre alcançar o mesmo fim. Todavia, e
apesar desta inegável convergência de propósitos, inúmeros indícios sugerem que
a economia cultivaria uma certa antipatia para com os direitos humanos. Fará
sentido que os dois conceitos, que terão quiçá mais contribuído para o
progresso da humanidade – a economia para
libertar da necessidade, e os direitos
humanos para libertar do medo – exibam, no mínimo, uma tão pobre
afinidade? Para além de partilharem um objetivo comum, nós próprios, a economia
e os direitos humanos estão intimamente ligados por outros motivos ainda. Com
efeito, existe uma incontornável dimensão económica nos direitos humanos assim
como uma inequívoca dimensão de direitos humanos na economia. Por um lado, a
promoção dos direitos humanos exige a mobilização de recursos e, portanto, a
inevitável consideração de uma restrição de ordem económica. Por outro lado, a
eficácia e a eficiência das decisões económicas pressupõem um significativo
grau de liberdade do agente, só podendo este mesmo agente escolher a melhor solução
possível entre as várias que se lhe oferecem se, de facto, for livre de o
fazer. […]
O que
caracteriza, então, a corrente dominante da economia?
A
corrente dominante da economia, como qualquer outra escola de pensamento
económico, carateriza-se pela sua metodologia particular, pela sua
racionalidade particular e pelo seu particular arsenal analítico. A corrente
dominante é, então, individualista,
utilitarista e apontada ao
equilíbrio, e, finalmente, obcecada pela
formalização matemática. Sendo individualista, a economia dominante define os
seus objetivos em termos de prossecução do interesse pessoal de um indivíduo
isolado, sendo o bem-estar social medido, nestas circunstâncias, pela soma
aritmética dos níveis de bem-estar de cada indivíduo. Sendo utilitarista
e apontada ao
equilíbrio, a economia dominante está particularmente orientada para
a maximização da utilidade individual, ou seja, o rendimento expresso em moeda,
e para procurar o equilíbrio social da oferta e da procura, sendo o mercado,
com a sua parafernália automática, a instituição ideal para comandar este
processo. Finalmente, estando obcecada pela formalização matemática, a economia dominante
privilegia a análise quantitativa de causa e efeito, e reduz de modo irrealista
a complexidade da sociedade, de modo a descobrir leis científicas semelhantes
às que governariam o reino da natureza.
A
abordagem crítica que nos propomos fazer à economia também poderia, e
porventura deveria, ser levada a cabo em relação aos direitos humanos. Os direitos humanos são, de facto, tão passíveis de
discussão como os princípios económicos, não havendo razão superior para
que qualquer deles constituía um dado adquirido. No entanto, uma discussão
paradigmática sobre direitos humanos é uma tarefa que está muito para além das
competências do autor deste trabalho. Assim, limitar-nos-emos ao exame das
implicações para a economia - para a ciência económica - da tácita aceitação
dos direitos humanos como legislação internacional consuetudinária. Por outro
lado, também não abordaremos todos os direitos humanos. A análise da interação
entre economia e direitos humanos focará, essencialmente, os direitos
económicos, sociais e culturais, não só porque estes estão mais
intimamente relacionados com a economia, mas também porque, vistos sobretudo
como objetivos louváveis mais do que como legislação vinculativa, estes têm
sido claramente negligenciados quando
comparados com os direitos civis e políticos. Não obstante esta especial
incidência, os direitos civis e políticos não serão totalmente esquecidos,
sendo os dois últimos capítulos deste trabalho dedicados às interações da economia
com a democracia.
O
propósito essencial desta análise das interações da economia com os direitos
humanos consiste em identificar as implicações da valorização dos direitos
humanos para a definição, não só das políticas económicas, mas também do
próprio sistema de condução da economia. Os dois princípios que devemos ter em
consideração logo à partida são, em primeiro lugar, que os
direitos humanos são indivisíveis, isto é, que em teoria não existem
direitos mais importantes do que outros ou, dito de outro modo ainda, que não
existem direitos negligenciáveis; e, em segundo lugar, que os direitos humanos
podem e devem
ser interpretados simultaneamente como instrumentos e finalidades do progresso económico.
A
abordagem seguida neste trabalho é a da economia política, conceito
originalmente introduzido na ciência económica por Antoine de Montchrestien em 1615
na sua obra Traité
d’Économie Politique, e que associa dois conceitos distintos
herdados da antiguidade. O termo "economia" provém do grego antigo oikos nomos, a regra da casa, ou, numa
linguagem mais atual, a gestão da casa. Ao se lhe acrescentar a política, fabricando, assim, o conceito
de economia política, acrescenta-se também uma nova dimensão à definição
primeira de economia. Derivando a palavra "política" do grego politikos, que significa a arte de
governar a cidade, ou seja, de administrar a coisa pública, a economia
política significa, pois, que a dimensão da
casa é ampliada para abraçar uma comunidade mais ou menos vasta, extravasando claramente a
família em torno da qual se organizava a oikos nomos. Em suma, na sua forma
original o conceito de economia política pode ser entendido como objecto de
estudo, mas também como método analítico. No primeiro caso, a economia política
estudaria a economia nacional, ou ainda a inter-relação entre a esfera pública
e a esfera
privada, entre o Estado e o mercado. No segundo caso, a
economia política seria entendida como a aplicação do método económico à
análise dos fenómenos políticos ou, em alternativa, do método da ciência
política aos fenómenos económicos.
Em
virtude da inexistência de um relativo consenso em torno destes diferentes
modos de apreender a economia política, assumiremos aqui a visão heterodoxa do
conceito que considera esta mesma economia política sobretudo como um método de
análise da sociedade. O ponto de partida desta análise consiste em oferecer uma
alternativa ao tratamento tradicional dado pela economia da corrente dominante
aos fenómenos sociais. Por exemplo, para o economista político, o mercado não é
nem soberano nem natural, omnipotente e caído do céu, mas sim uma instituição
social, uma construção humana. A economia política introduz, ainda, na sua análise
os conceitos de poder, de conflito e de desigualdade, quer no contexto da luta
de classes, característica da visão marxista, quer no contexto menos sulfuroso
da concertação e da negociação entre interesses concorrentes.
Uma outra caraterística da economia
política consiste na recusa em separar a economia positiva da normativa,
e, portanto, na recusa em separar a eficiência da ética. Em contraste, a
economia dominante, para além de recorrer a uma definição de economia já de si
muito estreita, a de mero estudo da afetação de (…).
Prof. Manuel Couret Branco,
Universidade de Évora.
Economista licenciado por Paris-1 Panthéon-Sorbonne,
que se doutorou em Economia na École des
Hautes Études en Sciences Sociales, também em Paris. Leciona, no
departamento de Economia da Escola de Ciências Sociais da Universidade de Évora,
"História do Pensamento Económico", "Economia do Desenvolvimento",
"Economia da Política Social" e "Economia dos Direitos Humanos".
É autor, de entre outros livros e artigos científicos, dos livros «Economia com
Compromisso» e «Economia da Saúde e da Produção Animal» e do artigo «Direitos Económicos:
um desafio à Europa Social». ISBN 978-972-618-661-8 (Edições SÍLABO, Rua Cidade de Manchester, 2, 1170-100 LISBOA. T.: 218130345)
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