À
espera da chave da PT,
Altice
inaugura call center no Minho
Próximo centro de atendimento dos franceses abre no Verão na
Guarda. Altice reafirma compromisso de criar 4000 empregos.
jornal "Público" |
Na
semana antes de assumir a gestão da PT Portugal, o fundador português da
Altice, Armando Pereira, cumpriu o sonho de inaugurar o primeiro call center
da empresa em Vieira do Minho, a terra onde cresceu. Um projecto onde o investimento
francês, que segundo fonte próxima do processo ronda algumas "centenas de
milhares de euros", passa essencialmente pelos salários e formação (as instalações
foram cedidas pela autarquia vieirense).
Com
a abertura do centro em Vieira do Minho (operado pela Randstad Portugal, assim
como o da Guarda), a Altice começa a cumprir a promessa de criar 4000 empregos
no país – a mesma que fez a Paulo Portas em Outubro, quando os
responsáveis da empresa vieram a Portugal formalizar o interesse na PT. A mesma
também que Armando Pereira fez questão de recordar esta segunda-feira ao
ministro da Economia, António Pires de Lima, numa sessão solene no
(praticamente esgotado) auditório municipal, onde disse querer "fazer de
Portugal uma terra de futuro, esperança e crescimento".
Depois,
debaixo de um sol abrasador, a cerimónia oficial de inauguração
do centro teve direito a bênção pelo padre local e descerramento
de uma placa pelo ministro. O mesmo governante que, alguns minutos antes, na
sessão solene, não regateou nos elogios a Armando Pereira e à Altice, "a
empresa detida em 25% pelo herói de Vieira
do Minho".
FONTE:
ANA BRITO, jornal PÚBLICO, 26 de Maio 2015 (EXCERTOS da edição em papel)
Precários em Call Centers
(RTP "Sexta às
9", 31 Out. 2014)
«O desenvolvimento histórico da humanidade ocorreu a partir de dois factores que são inerentes à condição humana: a estreita dependência da espécie humana do meio físico donde emerge a vida e do qual ela faz parte, e a necessidade de pertença, por parte dos seres humanos, a uma realidade que os supera: a comunidade ou sociedade. Este destino comum a seres humanos, ambiente e sociedade é muito pouco claro, hoje, por causa do exercício irrestrito da racionalidade instrumental económica, no qual os fins individuais / sectoriais entram em colisão com a humanidade no seu todo, nomeadamente com as futuras gerações. […] Seja lá qual for o agir económico humano, os seus efeitos (…) têm consequências que não são neutras do ponto de vista ético.» [Horacio Fazio, «Economía, Ética y Ambiente (en un mundo finito)», Tese de Doutoramento em Filosofia na Univ. de Buenos Aires, 2005]
Os trabalhos de Sísifo num call
center…
«Procurar compreender o
trabalho que se realiza num call center
pode não ser tarefa fácil e com resultados assegurados. Há uma estrutura para o
funcionamento interno, onde os operadores estão na base hierárquica e os
directores no topo. Entre eles existem as pessoas que desempenham funções de
supervisão (…). Há ainda, em muitos casos, um grupo de pessoas responsáveis por
ouvir as chamadas e classificar os procedimentos dos trabalhadores. São os
chamados auditores
(…).»
"Eu fui chamada a atenção porque auditaram as
minhas chamadas há uns meses e embirraram porque fiz silêncio. O cliente disse
uma série de coisas disparatadas e eu estive em silêncio sem saber o que
responder. Nem havia resposta para aquilo e devo ter feito um silêncio mais
acintoso, tipo 'vamos lá a pensar isto em conjunto'. E depois quando voltei à
linha fi-lo como se estivesse a falar com uma criança de 3 anos e comecei a
desmontar tudo com o cliente. O cliente acabou por me pedir desculpa. Mas fui
chamada à atenção pela qualidade do que eu disse: «o silêncio que tu fizeste
foi estares a chamar nomes ao cliente». «Calma que aquilo que eu penso ainda é
meu, aí vocês não podem chegar», respondi." [Ana, 48 anos, operadora
há 26 anos]
«Na generalidade dos
call centers, os salários só são diferenciados através do sistema de prémios e
de complementos de função, também variáveis. O salário base corresponde
aproximadamente ao salário mínimo nacional para um horário de 8h de trabalho,
quer para a operação, quer para a formação ou supervisão. Na realidade, após o
cálculo dos complementos de função ou de prémios, formadores/as e, sobretudo,
supervisores/as obtêm uma base salarial maior. Subsídio de férias e 13º mês são
pagos em cada mês. (…) Invariavelmente, a conclusão é de perda de direitos,
remunerações inferiores e benefícios perdidos face aos horários de trabalho, às
pausas, marcação de férias, etc.»
"Inicialmente, pelo período de 5h recebia à
volta de 400 euros. [Noutro call center] para 6h diárias eram os mesmos 400
euros. Mais à frente, para 8h diárias eram também 400 euros. Quando estava ali,
para 4h diárias eram 250 euros." [Vítor, 31 anos, ex-operador]
«Algumas pessoas têm
contratos de 1 ano ou de 6 meses. Outras vêem (ou não) o seu contrato renovado
no final de cada mês, ano após ano. Para todas, o vínculo da empresa onde
prestam serviço com a ETT [Empresa de
Trabalho Temporário], determina a modalidade dos seus contratos. E mesmo
sendo os e as trabalhadoras parte interessada, mudam por vezes de ETT de forma
automática, celebrando novos contratos, perdendo férias e dias acumulados,
submetendo-se a contratos diferentes e frequentemente em piores condições, sem
terem uma palavra a dizer ou sem serem sequer ouvidas. Os momentos de renovação
de contrato são momentos de stress e dúvida para muitos (…). Contratos sem
termo, mesmo no caso de serem celebrados com uma ETT, são valorizados face aos
contratos a termo em que a dúvida da renovação permanece uma ameaça constante
ao trabalhador.»
"Legalmente temos direito a 10 minutos em
cada hora, mas eles só deixam fazer pausa de 2 em 2 horas. Como a generalidade
das pessoas trabalha 4 mais 4 horas, com uma hora de almoço, o que é que
acontece? Trabalha 2 horas e faz 10 minutos de pausa e depois trabalha mais 2
horas e vai almoçar. Qualquer pretexto é bom para nos roubar tempo."
[Josefa, 35 anos, operadora]
"Eu para 8 horas diárias tenho direito a 24
minutos de pausa. Quando chegamos temos de pedir logo pausa que vai para uma
fila de espera e que vai sendo dada conforme a quantidade de atendimento ou
serviço (…)." [Raquel, 41 anos, operadora]
«Nas empresas maiores,
os espaços de convívio são partilhados por outras empresas do mesmo grupo. Um call center pode funcionar no mesmo
edifício de um outro call center e
ambos trabalharem para a mesma empresa-cliente
ou para empresas diferentes dentro do
mesmo grupo económico. Pisos diferentes podem corresponder a empresas ou
companhias diferentes, sendo comuns os espaços de convívio (…). A obsessão
taylorista do cronómetro sobrevive e complexifica-se dentro de um call center. A informatização de toda a
informação, e também dos procedimentos de controlo do trabalho e dos tempos de
cada trabalhador transforma, uma vez mais, uma questão profundamente associada
à qualidade do trabalho, em números.
E são estes números que fazem variar o salário no fim do mês.»
"Se houver filas de espera [no atendimento]
muitas vezes chegas a ficar sem intervalo o que é ilegal (…). Só temos
intervalo quando nos permitem ter. Para ir à casa de banho temos de pôr a mão
no ar e consumir tempo de intervalo (…). Se ultrapassar o tempo de intervalo
num mês descontam no vencimento. Por outro lado, se trabalharem mais não te
pagam mais. E trabalhas sempre mais porque não consegues controlar as chamadas."
[Maira, 56 anos, operadora]
«Mas a internacionalização
dos call centers pode também ter
outros benefícios e ser determinada por outros factores, nomeadamente as
vantagens da concentração e rentabilização de serviços no caso de empresas que
operem a partir de uma realidade transnacional. Fernanda foi trabalhar para
Barcelona há 4 anos. Desde então, é operadora de uma empresa de aluguer de
automóveis, numa linha falada em português e destinada a clientes portugueses.
Atende essencialmente pessoas que querem alugar carros em Portugal, apesar de
também poder atender as linhas espanholas se necessário. O serviço onde está
trabalha para toda a Europa e organiza-se através de vários grupos
linguísticos. Ganha mais do que um operador em Portugal, com as mesmas funções,
mas menos que uma pessoa que tenha um trabalho equivalente na Alemanha, França
ou Reino Unido.»
"Os países que estão no centro são só
europeus. Esses são os países que nos pagam para atender as chamadas dos
respectivos países, mas fazemos obviamente reservas para todo o mundo. Por
exemplo, uma pessoa quer alugar um carro na Jamaica e telefona. Reservamos para
todo o mundo, mas é um call center europeu." [Fernanda, 32 anos,
operadora em Barcelona há 4 anos]
«As formas de
intermediação são múltiplas e colocam sempre terceiros numa relação que já
nunca é só entre trabalhador e patrão. Nesse sentido, o ‘patrão’ dilui-se em
várias entidades através da subcontratação, dos contratos múltiplos e das redes
de operação. A cadeia de comando é só uma linha que se sabe onde começa e nunca
onde acaba e que dificilmente é acompanhada com nitidez. Ela confunde-se com o
‘cliente’, ramifica-se em empresas de recursos humanos, passa por ETT’s que se
transformam noutras ETT’s, transferindo contratos e trabalhadores para novas
situações.»
"Desde que aqui estou há 3 anos que é a terceira
ETT. Fui-me inscrever numa, tive aquela proposta, fui à entrevista e entrei por
aquela empresa. Depois fiz um ou dois contratos e eles deram-me um outro
contrato já de uma empresa diferente. Nem sequer escolhemos. Aparece-nos um
contrato de uma empresa nova. Voltamos a assinar, voltamos a cumprir contrato.
(…) São eles que escolhem, vão buscar, não sei como é que funciona. Eles é que
nos apresentam os contratos já pelas novas empresas." [Lara, 31 anos,
operadora em part time, há 3 anos em call center, contratada através de uma ETT
por 30 dias]
CALL CENTERS: TRABALHO, DOMESTICAÇÃO,
RESISTÊNCIAS
João Carlos Louçã
Apresentação [Profª Inês Fonseca,
Antropóloga pela FCSH/UNL, Investigadora CNRS]
Num
texto intitulado «subdesarrollo y letras de ousadía» (onde faz uma crítica da
literatura latino-americana), o escritor uruguaio Mario Benedetti utiliza a
expressão "planificación de la ignorancia"
para referir os processos de hegemonia social, cultural e económica das classes
dominantes, que não só contribuem para manter num estado de analfabetismo uma
parte da população daqueles países, mas também impedem a emergência de qualquer pensamento
crítico. O autor acrescenta, igualmente, ser um dever dos
intelectuais o combate e a denúncia destes processos.
A
actual situação que se vive em Portugal, no que diz respeito aos cortes
orçamentais para a área da investigação – especialmente grave para as ciências
sociais – configura um quadro que não é muito diferente daquele descrito por
Benedetti para os países «subdesenvolvidos»
da América latina durante a década de 1960. As políticas e o discurso
neoliberais que nos estão a ser impostos (a pretexto da crise, que começou por
ser financeira e se transformou em económica), tendem a apresentar o país como
uma empresa (com os seus lucros, investimentos e custos), cujo objectivo de
gestão é o equilíbrio das contas e na qual todos os gastos em recursos humanos
são vistos como um custo e não como um investimento. Simultaneamente, temos
assistido a um crescente desinteresse e desinvestimento por parte dos decisores
políticos do nosso país pela investigação científica em geral (e pela área das
ciências sociais em particular). Consequentemente, as verbas utilizadas em
actividades de investigação na área da antropologia passaram a ser consideradas
um gasto inútil e os resultados dessas investigações são vistos como pouco
produtivos e sem qualquer aplicabilidade no mundo real (o das empresas).
Tal
como Benedetti, considero que uma sociedade que se paute pelos valores do
progresso e da democracia deve incentivar e integrar todas as formas de
pensamento crítico, permitindo não só um conhecimento da actualidade, mas
sobretudo uma reflexão sobre a realidade, as transformações que se estão a
produzir e os caminhos para onde estas nos levam. Nesse sentido, a contribuição
do pensamento antropológico, bem como a sãs análises científicas de todas as
áreas disciplinares que reflectem sobre os tempos que vivemos, são
absolutamente essenciais. Simultaneamente, as actuais transformações do sistema
capitalista mundial e as repercussões que têm vindo a ocorrer nas sociedades e
que, frequentemente, nos são apresentadas como uma inevitabilidade, exigem, do
meu ponto de vista, uma observação detalhada e uma análise reflexiva e crítica.
É
por esse motivo que a existência de uma antropologia implicada – que fale de temas
geralmente ignorados (como é o caso das actuais transformações no mundo do
trabalho), que se interesse e adopte o ponto de vista daqueles cuja voz
raramente é ouvida, questionando a naturalização da sociedade tal como ela está
organizada – é, nestes tempos de hegemonia neo-liberal que vivemos, uma
necessidade imperiosa.
A
investigação que aqui se publica faz parte dessa tradição, debruçando-se sobre
as condições de trabalho nas empresas de centrais de atendimento em Portugal, a
partir da perspectiva dos trabalhadores. Aliás, esse é um dos seus pontos
fortes: através de um trabalho de campo realizado com extremo cuidado e rigor
(com a recolha de um conjunto de depoimentos de trabalhadores de call centers), permite-nos o acesso aos
pontos de vista dos trabalhadores, às suas percepções, sentimentos e versões
sobre a realidade vivida nestes locais de trabalho. Ao contrário da maior parte
das investigações produzidas e da literatura publicada sobre este tema, que se
interessam predominantemente pelas formas de organização do trabalho no seio
desse tipo de empresas e pela integração destas nas economias nacionais e
mundial, o presente texto foca a sua atenção no que se está a passar com os trabalhadores
dos call centers, os seus percursos
de vida, as suas expectativas, a sua visão sobre o trabalho que realizam e
sobre as entidades que os empregam, etc..
A
observação do que se passa no mundo dos call
centers, em termos comparativos, permite-nos surpreender uma organização /
divisão internacional do trabalho com a repartição do mundo em duas regiões: uma, que aglomera os países de origem da
procura do serviço de atendimento aos clientes e outra,
que aglomera os países de acolhimento das empresas de call center. A realidade das centrais de atendimento corresponde
também à realidade de um mundo globalizado, com seus fluxos de pessoas,
capitais, bens e serviços, em que o sentido desses movimentos nos dá conta dos
desequilíbrios económicos existentes. Frequentemente, clientes finais, utentes
e empresas prestadoras dos serviços de atendimento pertencem a países diversos.
As subcontratações
em cascata e as deslocalizações, tendo por objectivo a diminuição
dos custos da mão-de-obra, são práticas recorrentes – ao ponto de, como nos
mostra esta investigação, os trabalhadores desconhecerem a identidade da sua
entidade patronal. Outras investigações, que se debruçam mais detalhadamente
sobre este fenómeno, descrevem situações de empresas de call center, que prestam serviço para empresas dos seus próprios
países e se instalaram onde a mão-de-obra era mais barata. Assim, hoje em dia,
quando ligamos para um número de apoio ao cliente de uma empresa de que somos
utentes no nosso país, frequentemente, somos atendidos por alguém instalado
noutro ponto do mundo. Este aspecto mostra como a realidade dos call centers acompanha as transformações
do sistema capitalista e se adapta perfeitamente às conjunturas que atravessa –
recentemente, por exemplo, surgiram notícias de um movimento migratório de desempregados espanhóis para
trabalhar (com salários de valores locais) nas empresas de atendimento
instaladas em Marrocos.
Sabemos
que, consoante as geografias e as conjunturas históricas, a situação dos
trabalhadores em call centers difere,
não só ao nível dos critérios de recrutamento da mão-de-obra (idade, níveis de
escolaridade, etc.), como também ao nível da manutenção (com maior ou menor
rotatividade) da mesma nos postos de trabalho. Assim, as observações realizadas
relativamente a estes contextos laborais permitem uma comparação com o que se
passa nos vários contextos geográficos, pois as práticas de gestão da
mão-de-obra destas empresas variam, revelando as especificidades das economias
e dos mercados laborais locais.
A
investigação realizada por João Carlos Louçã dá-nos conta essencialmente das
consequências deste tipo de situações para os trabalhadores, através da
observação das formas de intensificação do trabalho e da gestão (controlo) da
mão-de-obra, bem como das formas de resistência por parte dos trabalhadores. A
sua análise detalhada permite-nos concluir por uma regressão das formas de trabalho,
em que os direitos sociais associados ao trabalho são cada vez menos uma
realidade. O autor mostra-nos que, se a actualidade do trabalho realizado em call centers representa «um regresso ao
passado no que diz respeito às relações entre trabalho e capital», ela também
implica elementos novos, nomeadamente no que concerne a impossibilidade de construção de uma
identidade profissional (com uma enorme atomização dos trabalhadores),
o que, claramente, distingue os velhos dos novos proletários.
Finalmente,
com esta investigação podemos perceber que a flexibilidade das relações
laborais / precariedade imposta a estes trabalhadores é por eles entendida como
uma vantagem – este tipo de empregos tende a ser apresentado / visto como
provisório, uma etapa inicial da carreira futura, etc. No entanto, ela
revela-nos também, não só um mundo diferente – onde a diminuição dos direitos
laborais constitui um peso para os trabalhadores -, mas sobretudo aquilo que
aparenta ser "o mundo ao contrário"
(na expressão de Eduardo Galeano) – como é o caso de uma trabalhadora menos
jovem, desempregada de longa duração, que encontrou emprego num call center através de um jovem "call centrista" (seu filho).
CALL CENTERS: TRABALHO, DOMESTICAÇÃO,
RESISTÊNCIAS
João Carlos Louçã
O
exemplo dos call centers
"Sinto
que não tenho relação laboral com ninguém.
Sinto
que não há ninguém a quem eu possa reclamar do meu trabalho.
Vou
reclamar com quem? Com uma ETT que apenas aluga o meu trabalho a outra empresa
e
depois diz que a responsabilidade de pagar é de outra empresa?
O
trabalhador fica sem saber para onde se há-de virar.
Tem
direitos mas não sabe a quem os vai reclamar."
Renato, operador, 32 anos
Garantido
constitucionalmente, o direito a um trabalho digno, com horários estabelecidos, férias pagas
e descontos para Segurança Social é uma construção recente e que
resultou de um processo fundamental para a modernização de Portugal. A regulação do
Estado sobre as leis do mercado, estabelece um conjunto de direitos
associados aos contratos de trabalho e os procedimentos para a sua negociação
entre os parceiros sociais.
O
mercado livre da compra e venda de mão-de-obra, da angariação da força de
trabalho necessária para a realização da acumulação de capital, conhece os
limites impostos pela sociedade a cada momento. Limites que podem ser
considerados fundamentais para a dignidade humana e para a valorização do trabalho
como elemento de desenvolvimento pessoal, potencialmente emancipador e condição
de partida para a realização da justiça social. A deslocação destes limites nas
economias que competem globalmente, entre países e regiões com histórias muito
diferentes, ameaça direitos conquistados e a própria realidade do trabalho
enquanto fator de equilíbrio e coesão social. O mercado volta a ganhar espaço,
nos seus significados próximos de formas de abstração, que tudo justifica e que
tudo condiciona.
Exemplo
emblemático dessas formas de trabalho que nos aproximam dos países do Sul, onde
a construção de direitos associados ao trabalho nunca foi uma realidade
generalizada, os call centers em
Portugal podem simbolizar ritmos, processos e as formas contratuais deste
tempo. Um tempo
de mudanças profundas, mas também de todas as hipóteses em aberto,
onde os velhos paradigmas da lei da oferta e da procura e da auto-regulação dos
mercados, estão enredados em demasiadas contradições para se imporem sem formas
de resistência. Encontrar esses exemplos de resistência, na defesa dos direitos em risco
ou na construção de novas identidades do trabalho, foi um dos objectivos desta
investigação. Na convicção de que são essas formas de resistência que apontam
caminhos do futuro que merecem ser trilhados por uma Antropologia comprometida
com os direitos humanos e com raízes em todos os processos históricos que
apontaram caminhos para a emancipação.
No
Verão de 2012, uma nova reforma das leis
laborais foi implementada.[1]
Apresentada como fundamental para a flexibilização da estrutura do mercado de
trabalho no país, medida indispensável para garantir competitividade e
modernidade à economia, tal como todas as anteriores, esta reforma limita os
direitos do trabalho, as prestações devidas em caso de despedimento, as férias,
aumenta horários e transfere para as entidades empregadoras as modalidades de
sua aplicação. Em suma, aumenta os níveis de exploração e a desigualdade entre
capital e trabalho, procurando sustentação através de um contexto de crise
em que uma suposta rigidez das normas laborais e os excessos de garantias
seriam directamente responsáveis.
Ao
mesmo tempo, a realidade das Empresas de Trabalho Temporário (ETT) chega a novos mercados onde se vende a força
do trabalho, como no caso das ETT’s especializadas em contratar médicos
formados para venderem horas a instituições de saúde, privadas e públicas.
Inicialmente associadas a trabalhos razoavelmente desvalorizados e mal pagos,
sazonais e esporádicos, estas empresas passam a exercer a sua actividade também
em sectores altamente especializados e com enorme poder simbólico. Médicos e
restante pessoal de saúde subcontratados por uma ETT, sem vínculo formal à
instituição onde exercem, pode vir a ser a realidade generalizada de
muitos dos hospitais e clínicas na elaboração de diagnósticos, prestação de
cuidados de saúde ou de tratamentos vários. Diferentes setores profissionais,
com formação específica ou sem ela, poderão constituir-se, num futuro próximo, em
casos generalizados de recrutamento através de ETT’s, onde a precariedade é um
dado de partida incontornável. A intermediação destas empresas e a sua atuação
generalizada nos mercados de trabalho significará a generalização da precariedade
da mão-de-obra, e a subcontratação como instrumento para a flexibilização
absolutas das relações de trabalho.
Precariedade para uns, flexibilidade
indispensável das leis laborais para outros, são as duas faces de uma mesma
realidade que todos os dias acompanha o debate político, as propostas
legislativas ou as reações dos parceiros sociais, em visões diferentes do mesmo
mundo e das suas possibilidades de evolução. No contexto da crise económica internacional, iniciada
pela crise financeira de 2008, o trabalho, as formas como se trabalha,
os custos do trabalho e a sua valorização social, são colocados em questão na
aceleração de um processo com origens nos anos 80 do século XX, de des-regulação
das economias e das funções sociais do Estado, de liberalização dos mercados e
das suas regras de funcionamento, de hegemonia ideológica de um campo político
que procura no desenvolvimento do capitalismo financeiro a possibilidade do crescimento e da acumulação rápida de lucro.
O
caso dos call centers (ou "centrais de atendimento" na
tradução portuguesa muito raramente utilizada), é um exemplo paradigmático
desse novo campo nas relações laborais onde regridem, em grande medida, os
direitos conquistados pelas gerações do pós-guerra. Nesse sentido, é um exemplo
e um processo em curso das novas técnicas de gestão e de aplicação de
metodologias de recursos humanos que permitem antecipar tendências para outros
sectores terciários. Exemplo não exclusivo, mas revelador da transformação de uma realidade sustentada na
ideia de pleno emprego e de estabilidade profissional ao longo da vida. […]
João
Carlos Louçã
[pp. 18]
[1] Confª o
texto «A REFORMA LABORAL EM PORTUGAL»,
Prof. Jorge Leite (Professor Jubilado da FDUC e Prof. Convidado da FDULP). E o
texto «O TEMPO DO TRABALHO» do
Centro de Estudos Judiciários (www.cej.mj.pt/)
[NdE]