teologia para leigos

12 de maio de 2015

PRECÁRIOS EM PORTUGAL 6 [CALL CENTERS & SELVA LABORAL]

 À espera da chave da PT,
Altice inaugura call center no Minho

Próximo centro de atendimento dos franceses abre no Verão na Guarda. Altice reafirma compromisso de criar 4000 empregos.
jornal "Público"
Na semana antes de assumir a gestão da PT Portugal, o fundador português da Altice, Armando Pereira, cumpriu o sonho de inaugurar o primeiro call center da empresa em Vieira do Minho, a terra onde cresceu. Um projecto onde o investimento francês, que segundo fonte próxima do processo ronda algumas "centenas de milhares de euros", passa essencialmente pelos salários e formação (as instalações foram cedidas pela autarquia vieirense).
Com a abertura do centro em Vieira do Minho (operado pela Randstad Portugal, assim como o da Guarda), a Altice começa a cumprir a promessa de criar 4000 empregos no país – a mesma que fez a Paulo Portas em Outubro, quando os responsáveis da empresa vieram a Portugal formalizar o interesse na PT. A mesma também que Armando Pereira fez questão de recordar esta segunda-feira ao ministro da Economia, António Pires de Lima, numa sessão solene no (praticamente esgotado) auditório municipal, onde disse querer "fazer de Portugal uma terra de futuro, esperança e crescimento".
Depois, debaixo de um sol abrasador, a cerimónia oficial de inauguração do centro teve direito a bênção pelo padre local e descerramento de uma placa pelo ministro. O mesmo governante que, alguns minutos antes, na sessão solene, não regateou nos elogios a Armando Pereira e à Altice, "a empresa detida em 25% pelo herói de Vieira do Minho".

FONTE: ANA BRITO, jornal PÚBLICO, 26 de Maio 2015 (EXCERTOS da edição em papel)

Precários em Call Centers
 (RTP "Sexta às 9", 31 Out. 2014)

«O desenvolvimento histórico da humanidade ocorreu a partir de dois factores que são inerentes à condição humana: a estreita dependência da espécie humana do meio físico donde emerge a vida e do qual ela faz parte, e a necessidade de pertença, por parte dos seres humanos, a uma realidade que os supera: a comunidade ou sociedade. Este destino comum a seres humanos, ambiente e sociedade é muito pouco claro, hoje, por causa do exercício irrestrito da racionalidade instrumental económica, no qual os fins individuais / sectoriais entram em colisão com a humanidade no seu todo, nomeadamente com as futuras gerações. […] Seja lá qual for o agir económico humano, os seus efeitos (…) têm consequências que não são neutras do ponto de vista ético[Horacio Fazio, «Economía, Ética y Ambiente (en un mundo finito)», Tese de Doutoramento em Filosofia na Univ. de Buenos Aires, 2005]





Os trabalhos de Sísifo num call center…

«Procurar compreender o trabalho que se realiza num call center pode não ser tarefa fácil e com resultados assegurados. Há uma estrutura para o funcionamento interno, onde os operadores estão na base hierárquica e os directores no topo. Entre eles existem as pessoas que desempenham funções de supervisão (…). Há ainda, em muitos casos, um grupo de pessoas responsáveis por ouvir as chamadas e classificar os procedimentos dos trabalhadores. São os chamados auditores (…).»

"Eu fui chamada a atenção porque auditaram as minhas chamadas há uns meses e embirraram porque fiz silêncio. O cliente disse uma série de coisas disparatadas e eu estive em silêncio sem saber o que responder. Nem havia resposta para aquilo e devo ter feito um silêncio mais acintoso, tipo 'vamos lá a pensar isto em conjunto'. E depois quando voltei à linha fi-lo como se estivesse a falar com uma criança de 3 anos e comecei a desmontar tudo com o cliente. O cliente acabou por me pedir desculpa. Mas fui chamada à atenção pela qualidade do que eu disse: «o silêncio que tu fizeste foi estares a chamar nomes ao cliente». «Calma que aquilo que eu penso ainda é meu, aí vocês não podem chegar», respondi." [Ana, 48 anos, operadora há 26 anos]


«Na generalidade dos call centers, os salários só são diferenciados através do sistema de prémios e de complementos de função, também variáveis. O salário base corresponde aproximadamente ao salário mínimo nacional para um horário de 8h de trabalho, quer para a operação, quer para a formação ou supervisão. Na realidade, após o cálculo dos complementos de função ou de prémios, formadores/as e, sobretudo, supervisores/as obtêm uma base salarial maior. Subsídio de férias e 13º mês são pagos em cada mês. (…) Invariavelmente, a conclusão é de perda de direitos, remunerações inferiores e benefícios perdidos face aos horários de trabalho, às pausas, marcação de férias, etc.»

"Inicialmente, pelo período de 5h recebia à volta de 400 euros. [Noutro call center] para 6h diárias eram os mesmos 400 euros. Mais à frente, para 8h diárias eram também 400 euros. Quando estava ali, para 4h diárias eram 250 euros." [Vítor, 31 anos, ex-operador]


«Algumas pessoas têm contratos de 1 ano ou de 6 meses. Outras vêem (ou não) o seu contrato renovado no final de cada mês, ano após ano. Para todas, o vínculo da empresa onde prestam serviço com a ETT [Empresa de Trabalho Temporário], determina a modalidade dos seus contratos. E mesmo sendo os e as trabalhadoras parte interessada, mudam por vezes de ETT de forma automática, celebrando novos contratos, perdendo férias e dias acumulados, submetendo-se a contratos diferentes e frequentemente em piores condições, sem terem uma palavra a dizer ou sem serem sequer ouvidas. Os momentos de renovação de contrato são momentos de stress e dúvida para muitos (…). Contratos sem termo, mesmo no caso de serem celebrados com uma ETT, são valorizados face aos contratos a termo em que a dúvida da renovação permanece uma ameaça constante ao trabalhador.»

"Legalmente temos direito a 10 minutos em cada hora, mas eles só deixam fazer pausa de 2 em 2 horas. Como a generalidade das pessoas trabalha 4 mais 4 horas, com uma hora de almoço, o que é que acontece? Trabalha 2 horas e faz 10 minutos de pausa e depois trabalha mais 2 horas e vai almoçar. Qualquer pretexto é bom para nos roubar tempo." [Josefa, 35 anos, operadora]
"Eu para 8 horas diárias tenho direito a 24 minutos de pausa. Quando chegamos temos de pedir logo pausa que vai para uma fila de espera e que vai sendo dada conforme a quantidade de atendimento ou serviço (…)." [Raquel, 41 anos, operadora]


«Nas empresas maiores, os espaços de convívio são partilhados por outras empresas do mesmo grupo. Um call center pode funcionar no mesmo edifício de um outro call center e ambos trabalharem para a mesma empresa-cliente ou para empresas diferentes dentro do mesmo grupo económico. Pisos diferentes podem corresponder a empresas ou companhias diferentes, sendo comuns os espaços de convívio (…). A obsessão taylorista do cronómetro sobrevive e complexifica-se dentro de um call center. A informatização de toda a informação, e também dos procedimentos de controlo do trabalho e dos tempos de cada trabalhador transforma, uma vez mais, uma questão profundamente associada à qualidade do trabalho, em números. E são estes números que fazem variar o salário no fim do mês.»

"Se houver filas de espera [no atendimento] muitas vezes chegas a ficar sem intervalo o que é ilegal (…). Só temos intervalo quando nos permitem ter. Para ir à casa de banho temos de pôr a mão no ar e consumir tempo de intervalo (…). Se ultrapassar o tempo de intervalo num mês descontam no vencimento. Por outro lado, se trabalharem mais não te pagam mais. E trabalhas sempre mais porque não consegues controlar as chamadas." [Maira, 56 anos, operadora]


«Mas a internacionalização dos call centers pode também ter outros benefícios e ser determinada por outros factores, nomeadamente as vantagens da concentração e rentabilização de serviços no caso de empresas que operem a partir de uma realidade transnacional. Fernanda foi trabalhar para Barcelona há 4 anos. Desde então, é operadora de uma empresa de aluguer de automóveis, numa linha falada em português e destinada a clientes portugueses. Atende essencialmente pessoas que querem alugar carros em Portugal, apesar de também poder atender as linhas espanholas se necessário. O serviço onde está trabalha para toda a Europa e organiza-se através de vários grupos linguísticos. Ganha mais do que um operador em Portugal, com as mesmas funções, mas menos que uma pessoa que tenha um trabalho equivalente na Alemanha, França ou Reino Unido.»

"Os países que estão no centro são só europeus. Esses são os países que nos pagam para atender as chamadas dos respectivos países, mas fazemos obviamente reservas para todo o mundo. Por exemplo, uma pessoa quer alugar um carro na Jamaica e telefona. Reservamos para todo o mundo, mas é um call center europeu." [Fernanda, 32 anos, operadora em Barcelona há 4 anos]


«As formas de intermediação são múltiplas e colocam sempre terceiros numa relação que já nunca é só entre trabalhador e patrão. Nesse sentido, o ‘patrão’ dilui-se em várias entidades através da subcontratação, dos contratos múltiplos e das redes de operação. A cadeia de comando é só uma linha que se sabe onde começa e nunca onde acaba e que dificilmente é acompanhada com nitidez. Ela confunde-se com o ‘cliente’, ramifica-se em empresas de recursos humanos, passa por ETT’s que se transformam noutras ETT’s, transferindo contratos e trabalhadores para novas situações.»

"Desde que aqui estou há 3 anos que é a terceira ETT. Fui-me inscrever numa, tive aquela proposta, fui à entrevista e entrei por aquela empresa. Depois fiz um ou dois contratos e eles deram-me um outro contrato já de uma empresa diferente. Nem sequer escolhemos. Aparece-nos um contrato de uma empresa nova. Voltamos a assinar, voltamos a cumprir contrato. (…) São eles que escolhem, vão buscar, não sei como é que funciona. Eles é que nos apresentam os contratos já pelas novas empresas." [Lara, 31 anos, operadora em part time, há 3 anos em call center, contratada através de uma ETT por 30 dias]






CALL CENTERS: TRABALHO, DOMESTICAÇÃO, RESISTÊNCIAS

João Carlos Louçã



Apresentação [Profª Inês Fonseca, Antropóloga pela FCSH/UNL, Investigadora CNRS]

Num texto intitulado «subdesarrollo y letras de ousadía» (onde faz uma crítica da literatura latino-americana), o escritor uruguaio Mario Benedetti utiliza a expressão "planificación de la ignorancia" para referir os processos de hegemonia social, cultural e económica das classes dominantes, que não só contribuem para manter num estado de analfabetismo uma parte da população daqueles países, mas também impedem a emergência de qualquer pensamento crítico. O autor acrescenta, igualmente, ser um dever dos intelectuais o combate e a denúncia destes processos.

A actual situação que se vive em Portugal, no que diz respeito aos cortes orçamentais para a área da investigação – especialmente grave para as ciências sociais – configura um quadro que não é muito diferente daquele descrito por Benedetti para os países «subdesenvolvidos» da América latina durante a década de 1960. As políticas e o discurso neoliberais que nos estão a ser impostos (a pretexto da crise, que começou por ser financeira e se transformou em económica), tendem a apresentar o país como uma empresa (com os seus lucros, investimentos e custos), cujo objectivo de gestão é o equilíbrio das contas e na qual todos os gastos em recursos humanos são vistos como um custo e não como um investimento. Simultaneamente, temos assistido a um crescente desinteresse e desinvestimento por parte dos decisores políticos do nosso país pela investigação científica em geral (e pela área das ciências sociais em particular). Consequentemente, as verbas utilizadas em actividades de investigação na área da antropologia passaram a ser consideradas um gasto inútil e os resultados dessas investigações são vistos como pouco produtivos e sem qualquer aplicabilidade no mundo real (o das empresas).

Tal como Benedetti, considero que uma sociedade que se paute pelos valores do progresso e da democracia deve incentivar e integrar todas as formas de pensamento crítico, permitindo não só um conhecimento da actualidade, mas sobretudo uma reflexão sobre a realidade, as transformações que se estão a produzir e os caminhos para onde estas nos levam. Nesse sentido, a contribuição do pensamento antropológico, bem como a sãs análises científicas de todas as áreas disciplinares que reflectem sobre os tempos que vivemos, são absolutamente essenciais. Simultaneamente, as actuais transformações do sistema capitalista mundial e as repercussões que têm vindo a ocorrer nas sociedades e que, frequentemente, nos são apresentadas como uma inevitabilidade, exigem, do meu ponto de vista, uma observação detalhada e uma análise reflexiva e crítica.

É por esse motivo que a existência de uma antropologia implicada – que fale de temas geralmente ignorados (como é o caso das actuais transformações no mundo do trabalho), que se interesse e adopte o ponto de vista daqueles cuja voz raramente é ouvida, questionando a naturalização da sociedade tal como ela está organizada – é, nestes tempos de hegemonia neo-liberal que vivemos, uma necessidade imperiosa.

A investigação que aqui se publica faz parte dessa tradição, debruçando-se sobre as condições de trabalho nas empresas de centrais de atendimento em Portugal, a partir da perspectiva dos trabalhadores. Aliás, esse é um dos seus pontos fortes: através de um trabalho de campo realizado com extremo cuidado e rigor (com a recolha de um conjunto de depoimentos de trabalhadores de call centers), permite-nos o acesso aos pontos de vista dos trabalhadores, às suas percepções, sentimentos e versões sobre a realidade vivida nestes locais de trabalho. Ao contrário da maior parte das investigações produzidas e da literatura publicada sobre este tema, que se interessam predominantemente pelas formas de organização do trabalho no seio desse tipo de empresas e pela integração destas nas economias nacionais e mundial, o presente texto foca a sua atenção no que se está a passar com os trabalhadores dos call centers, os seus percursos de vida, as suas expectativas, a sua visão sobre o trabalho que realizam e sobre as entidades que os empregam, etc..

A observação do que se passa no mundo dos call centers, em termos comparativos, permite-nos surpreender uma organização / divisão internacional do trabalho com a repartição do mundo em duas regiões: uma, que aglomera os países de origem da procura do serviço de atendimento aos clientes e outra, que aglomera os países de acolhimento das empresas de call center. A realidade das centrais de atendimento corresponde também à realidade de um mundo globalizado, com seus fluxos de pessoas, capitais, bens e serviços, em que o sentido desses movimentos nos dá conta dos desequilíbrios económicos existentes. Frequentemente, clientes finais, utentes e empresas prestadoras dos serviços de atendimento pertencem a países diversos. As subcontratações em cascata e as deslocalizações, tendo por objectivo a diminuição dos custos da mão-de-obra, são práticas recorrentes – ao ponto de, como nos mostra esta investigação, os trabalhadores desconhecerem a identidade da sua entidade patronal. Outras investigações, que se debruçam mais detalhadamente sobre este fenómeno, descrevem situações de empresas de call center, que prestam serviço para empresas dos seus próprios países e se instalaram onde a mão-de-obra era mais barata. Assim, hoje em dia, quando ligamos para um número de apoio ao cliente de uma empresa de que somos utentes no nosso país, frequentemente, somos atendidos por alguém instalado noutro ponto do mundo. Este aspecto mostra como a realidade dos call centers acompanha as transformações do sistema capitalista e se adapta perfeitamente às conjunturas que atravessa – recentemente, por exemplo, surgiram notícias de um movimento migratório de desempregados espanhóis para trabalhar (com salários de valores locais) nas empresas de atendimento instaladas em Marrocos.

Sabemos que, consoante as geografias e as conjunturas históricas, a situação dos trabalhadores em call centers difere, não só ao nível dos critérios de recrutamento da mão-de-obra (idade, níveis de escolaridade, etc.), como também ao nível da manutenção (com maior ou menor rotatividade) da mesma nos postos de trabalho. Assim, as observações realizadas relativamente a estes contextos laborais permitem uma comparação com o que se passa nos vários contextos geográficos, pois as práticas de gestão da mão-de-obra destas empresas variam, revelando as especificidades das economias e dos mercados laborais locais.

A investigação realizada por João Carlos Louçã dá-nos conta essencialmente das consequências deste tipo de situações para os trabalhadores, através da observação das formas de intensificação do trabalho e da gestão (controlo) da mão-de-obra, bem como das formas de resistência por parte dos trabalhadores. A sua análise detalhada permite-nos concluir por uma regressão das formas de trabalho, em que os direitos sociais associados ao trabalho são cada vez menos uma realidade. O autor mostra-nos que, se a actualidade do trabalho realizado em call centers representa «um regresso ao passado no que diz respeito às relações entre trabalho e capital», ela também implica elementos novos, nomeadamente no que concerne a impossibilidade de construção de uma identidade profissional (com uma enorme atomização dos trabalhadores), o que, claramente, distingue os velhos dos novos proletários.

Finalmente, com esta investigação podemos perceber que a flexibilidade das relações laborais / precariedade imposta a estes trabalhadores é por eles entendida como uma vantagem – este tipo de empregos tende a ser apresentado / visto como provisório, uma etapa inicial da carreira futura, etc. No entanto, ela revela-nos também, não só um mundo diferente – onde a diminuição dos direitos laborais constitui um peso para os trabalhadores -, mas sobretudo aquilo que aparenta ser "o mundo ao contrário" (na expressão de Eduardo Galeano) – como é o caso de uma trabalhadora menos jovem, desempregada de longa duração, que encontrou emprego num call center através de um jovem "call centrista" (seu filho).




CALL CENTERS: TRABALHO, DOMESTICAÇÃO, RESISTÊNCIAS

João Carlos Louçã



O exemplo dos call centers

"Sinto que não tenho relação laboral com ninguém.
Sinto que não há ninguém a quem eu possa reclamar do meu trabalho.
Vou reclamar com quem? Com uma ETT que apenas aluga o meu trabalho a outra empresa
e depois diz que a responsabilidade de pagar é de outra empresa?
O trabalhador fica sem saber para onde se há-de virar.
Tem direitos mas não sabe a quem os vai reclamar."

Renato, operador, 32 anos

Garantido constitucionalmente, o direito a um trabalho digno, com horários estabelecidos, férias pagas e descontos para Segurança Social é uma construção recente e que resultou de um processo fundamental para a modernização de Portugal. A regulação do Estado sobre as leis do mercado, estabelece um conjunto de direitos associados aos contratos de trabalho e os procedimentos para a sua negociação entre os parceiros sociais.

O mercado livre da compra e venda de mão-de-obra, da angariação da força de trabalho necessária para a realização da acumulação de capital, conhece os limites impostos pela sociedade a cada momento. Limites que podem ser considerados fundamentais para a dignidade humana e para a valorização do trabalho como elemento de desenvolvimento pessoal, potencialmente emancipador e condição de partida para a realização da justiça social. A deslocação destes limites nas economias que competem globalmente, entre países e regiões com histórias muito diferentes, ameaça direitos conquistados e a própria realidade do trabalho enquanto fator de equilíbrio e coesão social. O mercado volta a ganhar espaço, nos seus significados próximos de formas de abstração, que tudo justifica e que tudo condiciona.

Exemplo emblemático dessas formas de trabalho que nos aproximam dos países do Sul, onde a construção de direitos associados ao trabalho nunca foi uma realidade generalizada, os call centers em Portugal podem simbolizar ritmos, processos e as formas contratuais deste tempo. Um tempo de mudanças profundas, mas também de todas as hipóteses em aberto, onde os velhos paradigmas da lei da oferta e da procura e da auto-regulação dos mercados, estão enredados em demasiadas contradições para se imporem sem formas de resistência. Encontrar esses exemplos de resistência, na defesa dos direitos em risco ou na construção de novas identidades do trabalho, foi um dos objectivos desta investigação. Na convicção de que são essas formas de resistência que apontam caminhos do futuro que merecem ser trilhados por uma Antropologia comprometida com os direitos humanos e com raízes em todos os processos históricos que apontaram caminhos para a emancipação.

No Verão de 2012, uma nova reforma das leis laborais foi implementada.[1] Apresentada como fundamental para a flexibilização da estrutura do mercado de trabalho no país, medida indispensável para garantir competitividade e modernidade à economia, tal como todas as anteriores, esta reforma limita os direitos do trabalho, as prestações devidas em caso de despedimento, as férias, aumenta horários e transfere para as entidades empregadoras as modalidades de sua aplicação. Em suma, aumenta os níveis de exploração e a desigualdade entre capital e trabalho, procurando sustentação através de um contexto de crise em que uma suposta rigidez das normas laborais e os excessos de garantias seriam directamente responsáveis.

Ao mesmo tempo, a realidade das Empresas de Trabalho Temporário (ETT) chega a novos mercados onde se vende a força do trabalho, como no caso das ETT’s especializadas em contratar médicos formados para venderem horas a instituições de saúde, privadas e públicas. Inicialmente associadas a trabalhos razoavelmente desvalorizados e mal pagos, sazonais e esporádicos, estas empresas passam a exercer a sua actividade também em sectores altamente especializados e com enorme poder simbólico. Médicos e restante pessoal de saúde subcontratados por uma ETT, sem vínculo formal à instituição onde exercem, pode vir a ser a realidade generalizada de muitos dos hospitais e clínicas na elaboração de diagnósticos, prestação de cuidados de saúde ou de tratamentos vários. Diferentes setores profissionais, com formação específica ou sem ela, poderão constituir-se, num futuro próximo, em casos generalizados de recrutamento através de ETT’s, onde a precariedade é um dado de partida incontornável. A intermediação destas empresas e a sua atuação generalizada nos mercados de trabalho significará a generalização da precariedade da mão-de-obra, e a subcontratação como instrumento para a flexibilização absolutas das relações de trabalho.

Precariedade para uns, flexibilidade indispensável das leis laborais para outros, são as duas faces de uma mesma realidade que todos os dias acompanha o debate político, as propostas legislativas ou as reações dos parceiros sociais, em visões diferentes do mesmo mundo e das suas possibilidades de evolução. No contexto da crise económica internacional, iniciada pela crise financeira de 2008, o trabalho, as formas como se trabalha, os custos do trabalho e a sua valorização social, são colocados em questão na aceleração de um processo com origens nos anos 80 do século XX, de des-regulação das economias e das funções sociais do Estado, de liberalização dos mercados e das suas regras de funcionamento, de hegemonia ideológica de um campo político que procura no desenvolvimento do capitalismo financeiro a possibilidade do crescimento e da acumulação rápida de lucro.

O caso dos call centers (ou "centrais de atendimento" na tradução portuguesa muito raramente utilizada), é um exemplo paradigmático desse novo campo nas relações laborais onde regridem, em grande medida, os direitos conquistados pelas gerações do pós-guerra. Nesse sentido, é um exemplo e um processo em curso das novas técnicas de gestão e de aplicação de metodologias de recursos humanos que permitem antecipar tendências para outros sectores terciários. Exemplo não exclusivo, mas revelador da transformação de uma realidade sustentada na ideia de pleno emprego e de estabilidade profissional ao longo da vida. […]

João Carlos Louçã

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[1] Confª o texto «A REFORMA LABORAL EM PORTUGAL», Prof. Jorge Leite (Professor Jubilado da FDUC e Prof. Convidado da FDULP). E o texto «O TEMPO DO TRABALHO» do Centro de Estudos Judiciários (www.cej.mj.pt/) [NdE]