teologia para leigos

31 de março de 2015

PRECARIADO: NOVA AGENDA POLÍTICA [G. STANDING]

e agora, perante a realidade do «precariado»,
Que Fazer? E como?


«Hoje, governantes de direita, social-liberais da esquerda moderna, analistas do espaço mediático, todos se sentem desorientados porque o paradigma que lhes explicava o funcionamento de um "mundo plano" – o seu GPS neoliberaljá não funciona. (…) Mergulhados numa espiral depressiva, precisamos, mais do que nunca, de políticas e de actores políticos inspirados por uma visão do desenvolvimento que seja sustentável nos planos institucional, económico, social e ambiental. Mais concretamente, precisamos de uma alternativa política transformadora que, rompendo com paradigmas do passado, abra uma janela de esperança para o País.»

Jorge Bateira, OPS! Revista de Opinião Socialista (Editorial, p. 5), 03 Março de 2009.



Uma dupla estratégia:
economias orientadas a partir de baixo para a satisfação das necessidades públicas,
e associadas a regulação política.

[…] «Em Jesus o rotundo ‘Não!’ está associado a um ‘Sim!’ igualmente inequívoco: o Reino de Deus já começou entre vós [Lc 17,21]. Ele começa em pequenas comunidades messiânicas, que Jesus designa por sal, luz e fermento [Mt 5,13ss e 13,33]. Estas alternativas-em-ponto-pequeno surgem, precisamente, em estruturas económicas alternativas, ao ponto de, nelas, deixar de haver pobres [Act 2,4ss e 4,32ss]. Seja lá em que contexto tudo isto possa surgir, o certo é que, a novidade pode surgir a partir de baixo.

«Esta perspectiva remete - e esta é a primeira dimensão da estratégia - para um elemento comum a muitos projectos alternativos ao sistema económico actual: a irrupção de espaços económicos locais associados a mercados locais orientados para a satisfação das necessidades, que sejam ecologicamente sustentáveis e que requeiram muita mão-de-obra (U. Duchrow, «Alternativen zur kapitalistischen Weltwirtschaft. Biblische Erinnerung und politische Ansätze zur Überwindung einer lebensdrohenden Ökonomie» [Güterloh 1994] 66ss; trad. deste título do livro: "Alternativas à economia global capitalista. Retrospectiva bíblica e abordagens políticas para a superação de uma economia que ameaça a vida"). Este ponto de vista exige descentralização do fornecimento de energia através de formas de energia renováveis (energia solar, eólica, hidráulica, energia de biomassa) e o desenvolvimento da agricultura ecológica, preferencialmente sob a forma de cooperativas de produtores e de consumidores. Porém, é decisivo o controlo sobre os próprios recursos financeiros, quer seja sob a forma de cooperativas de crédito quer seja por via de um tipo de dinheiro local. Igualmente, os círculos de permuta podem ser uma forma de cortar, localmente, a ligação aos mecanismos do mercado mundial. Numa palavra: nesta primeira fase da estratégia, importa o auto-abastecimento o mais amplo possível das regiões.

«Claro que estas alternativas, que, vistas a médio prazo, são um sinal em pequena escala, devem lutar por conquistar um nível político que lhes dê corpo e que, ao mesmo tempo, atenue – mediante a regulação – os efeitos devastadores do mercado mundial. É aqui que entram todas as propostas que Keynes elaborou com vistas à regulação política nacional e internacional. Porém, sem o acoplamento dessa regulação a uma forte economia eco-social de carácter local e regional, o mecanismo do Capital, por um lado, manterá a sua dominação, e, por outro, não será possível fortalecer, a partir de baixo, a vontade política de impor as opções políticas. É aqui que o modelo bíblico da crítica profética ao mercado e o modelo das regulações jurídicas revelam o seu sentido e o seu vigor. Em termos práticos, esta orientação significa, para as Igrejas e para a teologia de hoje, que, no seio da sociedade civil, elas têm de participar em alianças e começar a edificar um poder alternativo que se oponha ao curso das coisas tal como elas estão. Mantendo em conjunto a rejeição do modelo [através duma forte regulação política anticapitalista nacional e internacional] e as alternativas conseguidas a nível local, realiza-se a segunda parte da dupla estratégia; sem esquecer a esperança focada no Reino de Deus.»

Ulrich Duchrow, «El Cristianismo en el contexto de los mercados capitalistas globalizados», Concilium 270, Abril 1997, pp. 69-70.



«E, porém, parecemos incapazes de conceber alternativas.»

Tony Judt (1948-2010) «Um Tratado sobre os Nossos Actuais Descontentamentos», Edições 70, 2010, ISBN 978-972-44-1632-8.








UMA POLÍTICA DE PARAÍSO



Está na hora de rever a grande trindade — Liberdade, Fraternidade e Igualdade —, desenvolvendo uma agenda progressista a partir da perspetiva do precariado. Um bom começo seria um renascimento da liberdade republicana, da capacidade de agir em conjunto, de uma forma concertada. A liberdade é algo que se revela na ação coletiva. (…)

Para o precariado, o trabalhismo do século XX é pouco atraente. Para a época, o projeto social-democrata foi progressista; mas, com a Terceira Via, chegou a um beco sem saída. Os políticos sociais-democratas temiam mencionar a desigualdade, e temiam ainda mais enfrentá-la; aceitam a falta de segurança de emprego e o trabalho flexível e desprezam a liberdade, ao promover o Estado panóptico[1]. Perderam a credibilidade perante o precariado quando se descreveram a si próprios como «classe média» e tornaram a vida dos não-conformistas cada vez mais difícil e insegura. Está na hora de seguir em frente por outro caminho.

É necessária uma nova política de Paraíso que seja moderadamente utópica e que sinta orgulho em sê-lo. Estamos no momento adequado, uma vez que nos primeiros anos de cada século parece ser habitual surgir uma nova visão progressista. Existiram os românticos radicais do início do século XIX, exigindo novas liberdades, e surgiu uma onda de pensamento progressista no início do século XX, exigindo liberdade para o proletariado industrial. Já é tarde, mas o descrédito do trabalhismo, lado a lado com a falência moral do modelo neoliberal da globalização, representa um momento de esperança para um igualitarismo emancipador orientado para o precariado. (…)

O precariado enfrenta uma insegurança sistemática. Dividir o precariado num precariado «bom» e num precariado «mau» é simplificar demais. No entanto, há quem, no precariado, queira enfrentar as inseguranças com políticas e instituições destinadas a redistribuir a segurança e a oferecer oportunidades para que todos possam desenvolver os seus talentos. Estes, provavelmente jovens na sua maioria, não olham para trás com simpatia e ingenuidade, em busca do tipo de segurança do emprego trabalhista da era pré-globalização.

O precariado «mau», pelo contrário, é alimentado pela nostalgia de uma imaginada Idade de Ouro. Está revoltado e sente-se indignado ao ver os governos a salvar bancos e banqueiros, a dar subsídios às elites favorecidas[2] e à classe dos empregados de colarinho branco com contratos estáveis (salariat), e a permitir que a desigualdade cresça à sua custa. É atraído pelo populismo neofascista, critica os governos e diaboliza os que parecem ser favorecidos pelo Estado. A menos que as aspirações do precariado «bom» sejam tidas em conta, muitos serão arrastados para os círculos do precariado «mau». Se isso acontecer, a sociedade estará ameaçada. E é isso que está a acontecer.

A necessidade mais importante do precariado é a segurança económica, que lhe pode dar algum controlo sobre as suas perspetivas de vida e que lhe pode dar a perceção de que os choques e os riscos a que esteja sujeito podem ser geridos. Isto só pode ser alcançado se a segurança dos rendimentos for garantida. No entanto, os grupos vulneráveis também precisam de «agency», ou seja, [de um organismo], de ter capacidade individual e coletiva para representar os seus interesses. O precariado tem de forjar uma estratégia que tenha em conta este duplo imperativo. (…)

O resgate da educação

A mercantilização da educação deve ser combatida por todos aqueles que estão a se empurrados para o precariado. O espectro das universidades sem professores, assentes em técnicas panópticas, deve ser banido por uma regulamentação democrática e transparente, envolvendo as associações profissionais, e por leis que especifiquem que o ensino superior, bem como outros níveis de ensino, não deve ser um sistema de ensino «sem professor».

A determinação dos conteúdos deve ser devolvida aos profissionais – professores e académicos −, enquanto os «clientes», os estudantes, devem ter uma voz no que respeita à definição da estrutura e dos objetivos da educação. E ao precariado deve dar-se a possibilidade de aceder, numa base contínua, a uma educação libertadora e não a estar sujeito simplesmente a uma preparação de capital humano. Isto não é ser idealista ou ingénuo. É claro que os alunos não sabem o que é melhor para eles. Nenhum de nós sabe. O que é necessário é um sistema de governação que equilibre as forças que moldam o processo. Atualmente, os promotores da mercantilização têm o controlo total. E isso é assustador.

É preciso haver uma inversão do emburrecimento inerente à escolarização do «capital humano». Nos Estados Unidos, os especialistas falam de uma perda da capacidade de ler e de uma «massificação» da síndrome de défice de atenção. Os Estados Unidos não são o único caso onde isso se verifica. Deve voltar a dar-se a primazia à educação libertadora, considerada importante em si mesma; e os que promovem a mercantilização da educação devem ser energicamente combatidos. Não podemos afastá-los por completo, mas deve ser institucionalmente alcançado um equilíbrio que seja favorável à educação libertadora.

Aqueles que querem que as universidades sirvam o empreendedorismo e os negócios e que promovam uma perspetiva de mercado deveriam prestar atenção aos grandes inteletuais do passado. Como dizia o filósofo Alfred North Whitehead, «a universidade é justificada pelo facto de preservar a ligação entre o conhecimento e o entusiasmo da vida, unindo o jovem e o velho no gosto imaginativo de aprender».

Anteriormente, John Stuart Mill, ao falar sobre a sua nomeação para reitor da Universidade de Saint Andrew’s, em 1867, declarou que «as universidades não têm como função ensinar os conhecimentos necessários para preparar os homens para um modo específico de ganhar o seu sustento. O seu objetivo não é formar advogados, médicos ou engenheiros competentes, mas sim seres humanos capazes e cultos». A rejeição comercial deste princípio é algo que o precariado deve ridicularizar e combater. Os filisteus têm de ser travados.

Há ainda uma outra questão mais pragmática. Uma resposta parcial à crescente frustração de estatuto entre os jovens que têm habilitações formalmente superiores às necessárias para os empregos disponíveis seria tornar os títulos académicos em «bens de lazer» (leisure goods) – em vez de os encarar como bens de investimento. As pessoas poderiam ser encorajadas a obter os seus graus académicos durante um prazo mais longo, facilitando as licenças sabáticas a mais pessoas durante o decurso da sua vida adulta e não dando tanta importância a ir directamente da escola secundária para a universidade.

O precariado pode sonhar com uma espécie de «universitização» da vida, um mundo no qual se aprende de forma seletiva e ampla em todos os momentos. Para isso, tem de ter um sentimento de maior controlo sobre o tempo e ter acesso a uma esfera pública que aperfeiçoe o sistema educativo no sentido de um processo deliberativo lento.



Estar ocupado e não apenas trabalhar

«A ideia de que todo o trabalho (labour) é bom por si mesmo tornou-se um dogma do credo da moralidade moderna – uma crença conveniente para aqueles que vivem do trabalho (labour) dos outros.»

William Morris (19885), Useful Work versus Useless Toil


A noção de ocupação (work) deve ser libertada da sua ligação com a noção de emprego (job) e de trabalho (labour). Todas as formas de ocupação (work) devem ser tratadas com igual respeito e não deve, de forma alguma, presumir-se que alguém que não esteja empregado ou a trabalhar a troco de uma remuneração não está a desenvolver um trabalho útil ou que alguém que, num determinado momento, não esteja a trabalhar é um parasita ocioso. Não é a ociosidade que prejudica a sociedade. As pessoas verdadeiramente ociosas ou preguiçosas podem prejudicar-se, se desperdiçam a sua vida. Mas custa muito mais à sociedade controlar e punir essa pequena minoria do que o que ela ganha em forçá-los a ter um qualquer trabalho ou emprego de baixa produtividade. Além disso, a existência de um pouco de ócio não seria mau. Como é possível sabermos se a aparente ociosidade de uma pessoa não é o seu momento de descanso ou de contemplação? Porque é que sentimos a necessidade de presumir e condenar? Algumas das maiores mentes da História tiveram períodos de ociosidade; e qualquer pessoa que tenha lido o ensaio de Bertrand Russelll In Praise of Idleness (Elogio ao Ócio) deveria ter vergonha de exigir aos outros um trabalho (labour) frenético.

Não se deve perder o sentido das proporções. O trabalho (labour) é necessário; os empregos são necessários. Só que não são tudo na vida nem são a finalidade da vida. Outras formas de ocupação (work) e de uso do tempo são igualmente importantes.

John Maynard Keynes, o maior economista do século XX, previu que, por esta altura, as pessoas nas sociedades ricas não estariam mais de 15 horas por semana nos seus empregos. Antes dele, Karl Marx previu que, uma vez que o nível de produtividade permitisse à sociedade servir as suas necessidades materiais, passaríamos a gastar o nosso tempo a desenvolver as nossas capacidades humanas. No final do século XIX, William Morris, no seu News from Nowhere (Notícias de Lugar Nenhum), previu um futuro em que as pessoas não estariam sujeitas a stresse e em que se ocupavam com aquilo que lhes interessava e que as entusiasmava, onde se inspiravam para respeitar e reproduzir a natureza e prosperavam em associação com os seus vizinhos. Nenhum deles previu a necessidade insaciável de consumo e de crescimento interminável definida por um sistema de mercado que transforma tudo em mercadoria.

Chegou a hora de afirmar que empurrar todas as pessoas para aceitar empregos é a resposta à pergunta errada. Devemos encontrar maneiras de darmos a todos nós a possibilidade de ter mais tempo para as ocupações (works) que não são trabalho (labour) e para o lazer (leisure) que não é entretenimento (play). A não ser que insistamos num conceito mais rico de ocupação (work), vamos continuar a ser levados pela loucura de medir o valor de uma pessoa pelo emprego que ela tem e pela tolice de que a criação de emprego é o sinal de uma economia bem-sucedida.

O precariado tem mais a ganhar. Tem uma quantidade desproporcional de ocupações (works) que não são trabalho (labour) e é forçado a ter muita ocupação (work) que não é nem produtiva nem agradável. Temos que criar melhores estatísticas que revelem a quantidade de ocupação (work) existente, de acordo com o sentido que lhe damos nesta obra. Se o fizermos, poderemos, então, troçar daqueles que afirmam ou deduzem que qualquer indivíduo que não esteja a ocupar um «emprego» identificável é um preguiçoso ou um parasita do sistema. Vamos começar pelas estatísticas sobre o tempo que o precariado gasta em lidar com burocratas estatais e com outros intermediários.


A mercantilização total do trabalho

Ao contrário do que diz a declaração trabalhista «O trabalho (labour) não é uma mercadoria», o trabalho (labour) deveria ser completamente mercantilizado. Em vez de se empurrarem as pessoas para os empregos, ao mesmo tempo que lhes reduzem os salários e que reduzem o salário dos outros trabalhadores – que são afetados pela pressão que elas, deste modo, exercem −, as pessoas deviam ser atraídas para esses empregos por incentivos apropriados. Se há empregos disponíveis, como se diz, e se ninguém os aceita, então faça-se o preço (salário) subir até atingir o valor que, simultaneamente, a pessoa que oferece o emprego ache que esse emprego vale e que ela está disposta a pagar e que seja suficientemente atraente para que as pessoas o aceitem. Deixemos os governos aplicar ao mercado de trabalho as mesmas regras que pretendem aplicar noutros mercados. Para se conseguir realizar uma mercantilização adequada, o preço deve ser transparente e totalmente pago em dinheiro. Isso significa a eliminação gradual dessas imaginosas remunerações complementares em espécie dadas pelas empresas e a sua conversão em benefícios que podem ser comprados por opção de mercado. O respeito pelos princípios da solidariedade social pode ser tratado separadamente. Os benefícios não-monetários, que são, na realidade, remunerações, são uma importante fonte de desigualdade e são contrários aos mercados de trabalho eficientes. O precariado não tem qualquer hipótese de os obter. Eles vão para a classe dos empregados de colarinho branco (salariat) e para um cada vez menor núcleo central de trabalhadores considerados essenciais. Para incentivar a mercantilização, estes benefícios devem ser tributados a uma taxa maior do que as remunerações em dinheiro; hoje em dia, estas remunerações complementares em espécie são, muitas vezes, um meio de evasão fiscal. E os sistemas de pagamento devem ser tornados transparentes ao serem associados à aplicação de competências, esforço e tempo. É relevante que haja estudos que mostram que os trabalhadores ficam mais satisfeitos se lhes for pago um determinado valor por hora de trabalho, que é o método mais transparente de todos.

A mercantilização adequada tem de ser feita de uma forma progressiva. Considere-se, por exemplo, a prática clássica de licença de maternidade paga, a partir da perspectiva da equidade social e da posição do precariado. Se uma mulher é uma empregada de colarinho branco, com contrato efetivo, pode receber o salário e o subsídio de maternidade por parte do empregador, sendo a maior parte do salário paga pelo governo. No Reino Unido, as mulheres recebem, por lei, um subsídio de maternidade que pode ir até às 39 semanas e têm uma licença paga que pode ir até um ano. Existe também uma licença de paternidade de duas semanas; e cada um dos pais pode pedir dias de dispensa sem vencimento até a criança atingir os cinco anos. Tendo em conta que os empregadores são compensados pelo Estado pela maior parte do custo da maternidade e da paternidade pagas, trata-se de um benefício regressivo, que favorece os empregados efetivos relativamente ao precariado. Mesmo que esse benefício seja atraente para um trabalhista, quantos trabalhadores com baixa remuneração é que estão em posição de o receber? Só em 2009 é que a Comissão para a Igualdade dos Direitos Humanos no Reino Unido propôs a diminuição do tempo de emprego suficiente para ter direito a esse benefício. Mas muitas mulheres que fazem parte do precariado estão desempregadas durante parte da sua gravidez. Por estarem grávidas têm menos probabilidades de conseguir um novo emprego e, portanto, não terão acesso aos benefícios da licença de maternidade. O precariado deve ter os mesmos direitos que todos os outros. A universalidade dos direitos é importante.

Isto leva à seguinte exigência: os empregos devem ser tratados como instrumentais, como uma transação comercial correta. Aos que defende que o emprego é a principal fonte de felicidade e que as pessoas que mostram relutância em participar nas delícias proporcionadas pelos empregos devem ser coagidas a fazê-lo para serem felizes durante muito tempo, deve-lhes ser dito para se meterem na sua vida. Para a maioria do precariado, os empregos não são o caminho para o nirvana. Dizer que são a fonte de felicidade é fazer dos empregos algo que eles nunca pretenderam ser. Nunca foi para isso que foram criados. Os empregos são criados porque alguém quer que uma determinada coisa seja feita. Ou, pelo menos, é para isso que eles devem ser criados. Deixemo-los ser devidamente mercantilizados. Se esta é a regra de uma economia de mercado livre, então que se aplique a todas as mercadorias.


Liberdade profissional

O precariado quer desenvolver um sentido de profissão, sobrepondo formas de ocupação (work) e de trabalho (labour), de modo a facilitar o desenvolvimento, a satisfação e o sentido de realização pessoais. As exigências do trabalho (labour) e dos empregos estão a aumentar, assim como muitas formas valiosas de ocupação (work) estão a ser feitas em circunstâncias subótimas e stressantes; por isso, o tempo de entretenimento (play) está a fazer encolher o tempo de lazer (leisure). Um dos ativos importantes da sociedade servicializada é o tempo.

Em vez de tratarmos os empregos como instrumentais, é-nos dito para os tratarmos como o aspeto mais importante da nossa vida. (…)

Guy Standing, prof. na School of Oriental and African Studies (Universidade de Londres, UK).





[1] Expressão ligada a Jeremy Bentham (séc. XVIII). «Bentham deu a esta ideia uma direção assustadora, num projeto para uma prisão ideal. Um guarda que via tudo estaria colocado numa torre central a observar os prisioneiros encerrados nas suas celas, situadas num edifício circular. O guarda podia vê-los, mas eles não o podiam ver. O poder do guarda residia no facto de os prisioneiros não poderem saber se estavam ou não a ser observados e, desse modo, com medo, atuarem como se ele os estivesse a observar. Bentham usou a expressão «uma arquitetura de escolha» para dizer que as autoridades podiam induzir os prisioneiros a comportarem-se da maneira desejada.
O fundamental para Bentham residia no facto de, aparentemente, ser dado o poder de escolha ao prisioneiro. Mas, se ele não fizesse a escolha certa, que era trabalhar arduamente, seria deixado a «definhar, a comer pão duro e a beber a sua água, sem uma alma com quem falar». E os prisioneiros deveriam estar isolados para impedir que formassem «uma concertação de vontades». Ele percebeu, tal como os neoliberais iriam perceber mais tarde, que a existência de uma ação coletiva colocaria em risco o projeto panóptico.
Foi uma ideia que Michel Foucauld abordou nos anos 70 do século XX como uma metáfora para produzir «corpos dóceis». Bentham acreditava que a sua conceção panóptica poderia ser usada em hospitais, hospícios, escolas, fábricas, casas de correção e em todas as instituições sociais. Esta conceção foi adotada em todo o mundo amplificada inadvertidamente pelas cidades empresariais do século XXI. O pior caso até agora verificado é o de Shenzhen, onde seis milhões de trabalhadores são observados através de câmaras em circuito fechado de televisão (CCTV) em todo o lado, para onde quer que se desloquem, e onde uma base de dados detalhada monitoriza o seu comportamento e caráter, inspirada em tecnologia desenvolvida pelo exército norte-americano.» (pp. 236-237 deste livro)

15 de março de 2015

PRECARIADO, FRAGMENTAÇÃO DAS ESTRUTURAS DE CLASSE [G. STANDING]

Diante da catástrofe que é o Precariado
apenas "debater ideias" ou Empenhar as nossas vidas?

Os 3 Tês


«Solidariedade é uma palavra que nem sempre cai bem. Eu diria que, algumas vezes, a transformamos em um palavrão… [não se pode dizer]; mas é uma palavra, muito mais do que alguns atos de generosidade esporádicos. É pensar e agir em termos de comunidade, de prioridade de vida de todos sobre a apropriação dos bens por parte de alguns. Também é lutar contra as causas estruturais da pobreza, a desigualdade, a falta de trabalho, de terra e de moradia, a negação dos direitos sociais e "trabalhistas" [direitos baseados em «Leis do Trabalho Contratualizadas» sob a égide do Direito do Trabalho]. É enfrentar os destrutivos efeitos do Império do dinheiro: os deslocamentos forçados, as migrações dolorosas, o tráfico de pessoas, a droga, a guerra, a violência e todas essas realidades que muitos de vocês sofrem e que todos somos chamados a transformar. A solidariedade, entendida em seu sentido mais profundo, é um modo de fazer história, e é isso que os movimentos populares fazem.»

Papa Francisco, no "fórum social de Francisco": "Terra, Domus, Labor" [27-29.10.2014], ''Quando eu falo de terra, teto e trabalho, dizem que o Papa é comunista''.

 

Fonte:

&




«uma insegurança crónica associada ao permanente caminhar sobre a corda bamba»



O PRECARIADO
A nova classe perigosa


Na década de 1970, um grupo de economistas inspirados ideologicamente conquistou a atenção dos políticos e insinuou-se nas suas mentes. O elemento central do seu modelo «neoliberal» consistia em afirmar que o crescimento e o desenvolvimento dependiam da competitividade do mercado; tudo devia ser feito no sentido de maximizar a concorrência e a competitividade e deixar os princípios do mercado penetrar em todos os aspectos da vida.

Um dos tópicos defendidos era que os países deviam aumentar a flexibilidade do seu mercado de trabalho, o que se veio a traduzir numa agenda para transferir os riscos e insegurança para o lado dos trabalhadores e das suas famílias. O resultado foi a criação de um «precariado» global, constituído por muitos milhões de pessoas em todo o mundo que são desprovidas de uma qualquer âncora de estabilidade. Estão a tornar-se a nova classe perigosa. São propensas a dar ouvidos a vozes agressivas e a usar os seus votos e o seu dinheiro para dar a essas vozes uma plataforma política cuja influência está a crescer. O sucesso da agenda «neoliberal», abraçada em maior ou menor grau por governos de todas as áreas políticas, criou um monstro político que ainda é incipiente. É preciso agir antes que esse monstro ganhe vida.


O despertar do precariado

No 1º de Maio de 2001, reuniram-se 5 000 pessoas no centro de Milão, maioritariamente estudantes e jovens ativistas sociais, para aquilo que pretendia ser uma marcha de protesto alternativa às tradicionais manifestações do Dia do Trabalhador. No 1º de Maio de 2005, as suas fileiras cresceram para mais de 50 000 – mais de 100 000, de acordo com algumas estimativas – e o EuroMayDay[1] tornou-se pan-europeu, com centenas de milhares de pessoas, maioritariamente jovens, a tomarem as ruas de várias cidades da Europa continental. Estas manifestações assinalaram o despertar do precariado global.

Os velhos sindicalistas que habitualmente orquestravam os eventos do 1º de Maio não podiam deixar de ficar perplexos com esta nova massa de manifestantes, cujas reivindicações de migração livre e de um rendimento básico universal têm pouco a ver com o sindicalismo tradicional. Os sindicatos viram como resposta ao trabalho precário um regresso ao modelo «trabalhista» para cuja consolidação, em meados do século XX, eles tinham sido fundamentais – empregos mais estáveis com a segurança de uma contratação de longo prazo e as armadilhas e benefícios que daí vieram. Mas muitos dos jovens manifestantes tinham visto a geração dos seus pais conformada com o modelo fordista[2] de empregos monótonos a tempo inteiro e com a subordinação à gestão industrial e aos ditames do capital. Apesar da falta de uma agenda alternativa coesa, eles não mostraram nenhum desejo de ressuscitar o trabalhismo.

(…)
O filho da globalização

No final dos anos 70 do século XX, um grupo entusiasta de pensadores sociais e económicos, posteriormente chamado de «neoliberais» e «libertários»[3] (embora os termos não sejam sinónimos), percebeu que as suas opiniões estavam a ser escutadas depois de terem sido menosprezados durante décadas. A sua maioria era suficientemente jovem para não ter sido marcada pela Grande Depressão ou para ter abraçado a agenda social-democrata que tinha entusiasmado as correntes de pensamento dominantes depois da Segunda Guerra Mundial.

Não gostavam do Estado, que associavam a governo centralizado, com o seu planeamento e o seu aparelho regulatório. Viam o mundo como um lugar cada vez mais aberto, onde o investimento, o emprego e o rendimento fluiriam para onde as condições fossem mais acolhedoras. Defendiam que, a menos que os países europeus, em particular, retirassem as garantias e as seguranças acumuladas desde a Segunda Guerra Mundial pela classe operária industrial e pelo setor público burocrático, e a menos que os sindicatos fossem «domesticados», a desindustrialização (um conceito novo na época) iria acelerar, o desemprego aumentaria, o crescimento económico seria mais lento, o investimento iria fugir e a pobreza iria agravar-se. Tratava-se de uma avaliação sombria e preocupante. Queriam medidas drásticas e encontraram em políticos como Margaret Thatcher e Ronald Reagan o tipo de líderes dispostos a seguir a sua análise.

A tragédia foi que, embora o seu diagnosis tenha feito, parcialmente, sentido, o seu prognosis estava marcado por uma grande insensibilidade. Ao longo dos trinta anos seguintes, a tragédia foi agravada pelo facto de os partidos políticos sociais-democratas, que haviam construído o sistema que os neoliberais queriam desmantelar, depois de uma breve contestação ao diagnóstico neoliberal, terem acabado por aceitar, desajeitadamente, tanto o diagnóstico como a receita.

Uma reivindicação neoliberal que se consolidou na década de 1980 foi a de que os países teriam de pôr em prática a «flexibilidade do mercado de trabalho». A menos que os mercados de trabalho se tornassem flexíveis, os custos do trabalho subiriam e as empresas iriam transferir a sua produção e os seus investimentos para locais onde os custos fossem mais baixos; o capital financeiro seria investido nesses países, em vez de ser investido «em casa».

A flexibilidade teve muitas dimensões:

.a flexibilidade dos salários significa acelerar o ajustamento às mudanças que se verificaram na procura, particularmente no sentido da sua diminuição;
.a flexibilidade no emprego significava a capacidade de as empresas, facilmente e sem custos, poderem alterar os níveis de emprego, significava especialmente a sua capacidade de reduzir o número de trabalhadores, o que implicava uma redução da segurança e proteção do vínculo laboral;
.a flexibilidade profissional significava ser capaz de movimentar os funcionários dentro da empresa e modificar as estruturas de trabalho, sem grande oposição e com custos mínimos;
.a flexibilidade de competências significava ser capaz de ajustar facilmente as competências dos trabalhadores.

Na sua essência, a flexibilidade defendida pelos impetuosos economistas neoclássicos significava aumentar sistematicamente a insegurança dos empregados, alegando que esse era o preço a pagar para manter o investimento e o emprego. Cada revés económico era atribuído, em parte, com razão ou sem ela, à falta de flexibilidade e à ausência de uma «reforma estrutural» dos mercados de trabalho.

À medida que a globalização avançava, e enquanto os governos e as empresas corriam atrás uns dos outros na flexibilização das relações laborais, o número de pessoas em regimes de trabalho sem segurança foi-se multiplicando. E isto não foi determinado pela evolução tecnológica. À medida que a flexibilidade do trabalho se propagava, as desigualdades aumentaram e a estrutura de classes que sustentava a sociedade industrial deu lugar a algo mais complexo, mas algo que não deixou, certamente, de ser baseado em classes. Voltaremos a este ponto mais à frente. Mas as mudanças políticas e as respostas das empresas aos ditames da economia de mercado globalizado geraram, em todo o mundo, uma tendência que não foi prevista nem pelos neoliberais nem pelos líderes políticos que puseram estas políticas em prática.

Milhões de pessoas, nas economias abastadas e nas economias de mercado emergentes, passaram a fazer parte do precariado, um fenómeno novo, ainda que com ecos do passado. O precariado não fazia parte da «classe trabalhadora» ou do «proletariado». Estes termos ["classe trabalhadora", "proletariado"] sugerem uma sociedade constituída principalmente por trabalhadores com empregos garantidos a longo prazo, estáveis, com horários fixos e com carreiras profissionais e com sistemas de promoções estabelecidos, sujeitos a sindicalização e a acordos coletivos, com cargos e funções cuja denominação os seus pais e mães entendiam, defrontando-se com empregadores locais com cujos nomes e caraterísticas estavam familiarizados.

Muitos passaram a fazer parte do precariado sem saber quem era o seu empregador ou quantos colegas de trabalho tinham ou poderiam vir a ter no futuro. Também não faziam parte da «classe média», pois não tinham um salário estável ou previsível, nem tinham o estatuto e os benefícios que as pessoas da classe média supostamente têm.

Com o decorrer da década de 1990, cada vez mais pessoas, e não apenas nos países em vias de desenvolvimento, se encontraram com um estatuto a que os economistas do desenvolvimento e os antropólogos chamaram «informal». Provavelmente, essas pessoas não considerariam esta maneira de se descreverem a si próprias nem útil nem sequer uma forma de identificarem noutras uma maneira comum de viver e trabalhar. Então, se não eram classe operária, se não eram classe média, se não eram «informais», o que eram? Um lampejo de reconhecimento terá ocorrido ao serem definidos como tendo uma existência precária. Amigos, familiares e colegas estariam também num qualquer tipo de situação temporária, sem garantia de que o que estavam a fazer nesse momento seria o que estariam a fazer dentro de alguns anos ou até mesmo dentro de alguns meses ou de algumas semanas. Muitas vezes nem desejavam nem sequer estavam a tentar que isso acontecesse.


Como é que podemos definir o precariado?

Existem duas formas de definir o que queremos dizer com a palavra «precariado». Uma delas é dizer que é um grupo socioeconómico distinto, de modo que, por definição, uma pessoa faz parte ou não parte dele. Isto é útil em termos de imagens e análises, pelo que nos permite utilizar aquilo que Max Weber chamou um «tipo ideal». Neste espírito, o precariado poderia ser descrito como um neologismo que combina um adjetivo - «precário» - e um substantivo com ele relacionado - «proletariado». Neste livro, o termo é frequentemente usado neste sentido, embora este tenha algumas limitações. Podemos afirmar que o precariado é uma classe em formação, se bem que não seja para já, no sentido marxista do termo, uma classe para si.

Pensando em termos de grupos sociais, podemos dizer que, excluindo as sociedades agrárias, a era da globalização resultou numa fragmentação das estruturas de classe nacionais. À medida que as desigualdades aumentaram e que o mundo se encaminhou para um mercado de trabalho aberto e flexível, a estrutura de classes não desapareceu. Em vez disso, emergiu uma estrutura de classes mais fragmentada.

A «classe trabalhadora», a «classe operária», os «trabalhadores» e o «proletariado» foram termos incorporados na nossa cultura ao longo de vários séculos. As pessoas poderiam descrever-se em termos de classe, e ou outros reconheceriam esses termos, pela forma como se vestiam, falavam e se comportavam. Hoje são pouco mais do que rótulos evocativos. André Gorz (1982) escreveu há muito tempo sobre «o fim da classe operária». Outros continuaram a atormentar-se sobre o significado do termo e sobre os critérios de classificação. A realidade é que talvez precisemos de um novo vocabulário, que reflita as relações de classe no sistema de mercado global do século XXI.

(…)
O ambiente eletrónico permite e encoraja a multitarefa, uma caraterística da sociedade servicializada que será tida em consideração mais adiante neste livro. A investigação científica mostrou que aqueles que, por hábito, inclinação ou necessidade, se dedicam a uma vida profissional de caráter multitarefa extenso dissipam mais energias e são menos produtivos em qualquer tarefa específica do que aqueles que executam muito menos tarefas em simultâneo. Os que são arrastados para essa vida multitarefa são candidatos principais ao precariado, uma vez que têm mais dificuldades em se concentrar e mais dificuldade em anular informação irrelevante ou suscetível de provocar dispersão (M. Richtel, «Hooked on Gadgets, and Paying a Mental Price», New York Times, 7 de junho, p. 1). Incapazes de controlar o seu uso do tempo, sofrem de stresse, o que corrói a capacidade de manter uma mente em desenvolvimento, de ter aquela sensação de aprendizagem reflexiva com uma perspectiva de longo prazo.

Em suma, o precariado, não tendo um estilo de vida que lhe permita filtrar e distinguir o útil do inútil, sofre de sobrecarga de informação. Veremos mais tarde como o Estado neoliberal está a lidar com isso.


Raiva, anomia, ansiedade e alienação

O precariado sente aquilo a que, em inglês, chamamos os quatro às — a raiva (anger, em inglês), a anomia, a ansiedade e a alienação. A raiva decorre da frustração de aparentemente sentirem bloqueados todos os caminhos para vir a ter uma vida com significado e decorre também de um sentimento de privação relativa. Alguns chamar-lhe-iam inveja; mas estar cercado e ser constantemente bombardeado com a exaltação do sucesso material e do culto das celebridades faz crescer o ressentimento. O precariado sente-se frustrado não só por causa de uma vida de acenos de empregos temporários, com todas as inseguranças que daí advêm, mas também porque esses empregos não envolvem a construção de relações de confiança traduzidas em estruturas ou redes de trabalho com significado. O precariado também não tem degraus de mobilidade para subir, o que deixa as pessoas a pairar entre uma profunda autoexploração e a desmotivação.

Um exemplo, citado no The Observer (Reeves, 2010), é o de uma mulher de 24 anos, assistente social, que ganha 28 000 libras por ano e trabalha, em teoria, trinta e sete horas e meia por semana. Fazia «algumas noitadas» porque algumas famílias não podiam ser visitadas durante o dia, acabando por passar mais tempo a trabalhar sozinha e a fazer mais trabalho a partir de casa. Esta mulher disse ao jornal o seguinte:

"A minha grande frustração é que, durante um longo período de tempo, eu tenho ouvido que sou suficientemente boa para ser promovida ao nível seguinte e tenho realizado tarefas além das minhas funções, mas não há sinais de reconhecimento disso. Tenho que esperar que outro lugar fique vago. Acho que isto é o que acontece com muitas pessoas. Da equipa com que comecei, eu sou a única assistente social que resta. E muitos deles saíram devido a problemas relacionados com o apoio e progressão na carreira. Fazemos um trabalho duro e com responsabilidade e, se tal fosse reconhecido, isso poderia manter-nos no emprego por mais tempo."

Trata-se, assim, de uma mulher que está ligada ao precariado pela falta de progressão na carreira e pela consciência de não ser valorizada. Ela aceita e pratica a autoexploração, fazendo mais trabalho do que aquele pelo qual é remunerada (work-for-labour), na esperança de poder subir na carreira. Os seus colegas fugitivos perceberam que a perspectiva de promoção não passava de uma miragem.

Pelo menos desde o trabalho de Émile Durkheim, entende-se que a anomia é um sentimento de passividade nascido do desespero. Esse desespero é, sem dúvida, intensificado pela perspectiva de empregos desinteressantes e sem hipóteses de carreira. A anomia vem de uma apatia associada a uma derrota continuada, agravada pela constante condenação feita por políticos e comentadores da classe média que descrevem os indivíduos que fazem parte do precariado como preguiçosos, sem rumo, indignos, socialmente irresponsáveis ou pior do que isso. Para aqueles que se candidatam a prestações e outros apoios sociais, dizerem-lhes que a «psicoterapia» ou o «apoio psicológico» são o caminho a seguir é uma atitude paternalista e facilmente vista como tal pelos que são estimulados a tomar essa opção.

O precariado vive com ansiedade — numa insegurança crónica associada não só com o permanente caminhar sobre a corda bamba, com a consciência de que um erro ou um pouco de azar poderá fazer pender a balança ou para o lado da dignidade modesta ou para o lado da mendicidade, mas também com o medo de perder o que possui, mesmo quando se sente ludibriado por não ter mais. As pessoas sentem-se inseguras e stressadas, estão ao mesmo tempo «subempregadas» e «sobre-empregadas». Estão alienadas do seu trabalho e das suas ocupações (labour e works), e os seus comportamentos são anómicos, incertos e desesperados. Quem está sempre com medo de perder o que tem está sempre frustrado. Sente raiva, mas normalmente de uma forma passiva. A mente precarizada é alimentada e motivada pelo medo.

A alienação vem de saber que o que se está a fazer não vai no sentido de concorrer para o seu próprio propósito ou para o que poderia tornar digno de respeito; o que se está a fazer é simplesmente feito para os outros, a seu mando. Esta foi considerada como uma característica definidora do proletariado. Mas os que pertencem ao precariado sofrem várias injeções especiais, incluindo um sentimento de ser enganado – dizem-lhes que eles devem estar gratos e «felizes» e devem ter uma atitude «positiva» porque estão empregados. Dizem-lhes para ser felizes, mas eles não conseguem ver razão para isso. Têm a experiência daquilo a que Bryceson (2010) chamou «profissionalização falhada» (failed occupationality), o que só pode ter um efeito psicológico adverso. As pessoas que se encontram em tais circunstâncias estão sujeitas a sentir desaprovação social e uma profunda falta de propósito. E a falta de ocupação e de profissão definida cria um vácuo ético.

O precariado não se deixa enganar. Os seus membros enfrentam um bombardeamento de exortações. Mas será que  a mente inteligente sucumbe tão facilmente? Em Smile or Die, Barbara Ehrenreich (Barbara Ehrenreich, «Smile or Die: How Positive Thinking Fooled America and the World», Londres, Granta, 2009) atacou o culto moderno do "pensamento positivo"[4]. Lembrou que nos Estados Unidos, na década de 1860, dois charlatães (Phineas Quimby e Mary Eddy) criaram o New Thought Movemnet, com base no calvinismo e na visão de que a crença em Deus e o pensamento positivo levariam a resultados positivos na vida. Ehrenreich seguiu o trajeto da introdução desta ideia no mundo das finanças, das empresas e dos negócios modernos. Descreveu como, em conferências motivacionais, alguns intervenientes afirmavam que trabalhadores com contratos a termo que tinham sido despedidos eram descritos como bons colegas de equipa, definindo-os como «uma pessoa positiva» que «sorri com frequência, não se queixa e se submete com gratidão a todas as solicitações do patrão». É possível ir mais longe e questionar se alguns não adotam o velho ditado chinês: «Inclina-te o mais possível para que o imperador não te veja sorrir». Mas é mais provável que a resposta ao disparate alienante que o precariado tem que aturar seja um ranger de dentes.

Há outras reações além da raiva reprimida. Por exemplo, o precariado pode cair numa zona de engano e de ilusão corrosivos, ilustrado por um sul-coreano entrevistado pelo jornal International Herald Tribune (Fackler, 2009). O repórter observou o seguinte: (…)

Guy Standing, prof. na School of Oriental and African Studies (Universidade de Londres, UK).




Estudo de caso

«Nas discussões sobre a atual insegurança no trabalho, a maior parte da atenção foca-se na insegurança do emprego, na insegurança do vínculo laboral — na falta de contratos de longo prazo e na ausência de proteção contra a perda de emprego. É compreensível que isso aconteça. No entanto, a insegurança profissional é também, em si, uma caraterística definidora do precariado. A diferença entre a segurança do emprego e a segurança profissional é vital. Consideremos um exemplo. Entre 2008 e 2010, suicidaram-se trinta funcionários da France Telecom, o que resultou na nomeação de uma pessoa de fora para novo presidente da empresa.»

VEJA O VÍDEO:




[1] EuroMayDay - Celebrado no 1º de Maio, Dia do Trabalhador, o EuroMayDay envolve um conjunto de ações de manifestação e reivindicações destinadas a combater a precarização generalizada da juventude e a discriminação dos imigrantes, na Europa e noutras partes do mundo. O movimento Mayday é, neste momento, um movimento de dimensões globais, presente em várias cidades de todo o mundo. O primeiro Mayday ocorreu em 2001 em Milão, no contexto das fortes contestações alter-globalização, nomeadamente ocorridas em Seattle e Génova contra a Organização Mundial do Comércio. Estas contestações centravam-se numa forte oposição ao capitalismo enquanto sistema económico e social hegemónico e na necessidade de o ultrapassar e de acreditar na existência de alternativas possíveis. Outra característica fundamental foi a convergência de vários movimentos de interesses heterogéneos unidos na luta, bem como a atenção dada ao combate contra a repressão policial. Um outro fator distintivo neste tipo de celebrações e manifestações tem sido a criatividade das estratégias e das formas de manifestação utilizada. A rede EuroMayDay é uma rede de ativistas de organizações de trabalhadores, de coletivos de migrantes, de grupos anticapitalistas e de variadas organizações que defendem diversas causas e que se reúnem anualmente numa cidade europeia diferente. Tem procurado dar novas caraterísticas às tradicionais celebrações do 1º de Maio e centrar a atenção dessas celebrações e reivindicações no combate à precarização da vida e do trabalho e às discriminações, nomeadamente as que se dirigem contra os imigrantes e as discriminizações de natureza racial e sexual. [NdT – Carlos Braga e Ana Maria Braga]
[2] Fordismo - Sistema introduzido por Henry Ford, que combina a linha de produção em massa racionalizada com a procura da massificação do consumo do produto, através da conceção do produto e do seu fabrico em termos que tornam o produto acessível ao maior número de pessoas, nomeadamente aos próprios trabalhadores da empresa. O exemplo e início desse sistema foi a produção do Ford T. [NdT]
[3] «Neoliberais» e «libertários» - O termo «libertário» tem sido usado para designar correntes de filosofia e prática social e política que privilegiam (em diferentes graus) a liberdade individual em relação ao papel do Estado e que vão desde correntes anarquistas e socialistas libertárias até aos seguidores mais radicais do liberalismo económico e aos anarcocapitalistas. Aqui o autor refere-se à corrente da direita norte-americana que se opõe totalmente à intervenção do Estado na economia e defende um papel mínimo do Estado na proteção social dos cidadãos, uma redução radical de impostos sobre o rendimento e a riqueza e que defende a extensão das liberdades do indivíduo entregue a si próprio. Desde a emergência do chamado neoliberalismo, nos anos 70 do século XX, a corrente «libertária de mercado livre» (free market libertarians) teve grande expansão nos Estados Unidos e no mundo, sendo reforçada e apoiada por inúmeros think tanks e partidos políticos e influenciando importantes órgãos de comunicação social, bem como políticos provenientes de outras áreas ideológicas. Esta corrente, nos Estados Unidos da América, encontra-se organizada e representada, nomeadamente, no Partido Libertário (Libertarian Party) e no Tea Party, assim como nas múltiplas organizações a eles associadas. Tem, assim, surgido associada aos que têm sido designados por neoliberais, apesar da sua prática, muitas vezes, dificilmente poder ser classificada de liberal no sentido rigoroso do termo. [NdT]
[4] Cf. «O Miguel Gonçalves – Spark Agency»: «vais andar sempre com a corda no pescoço, vais andar sempre a estalar de ansiedade» (sic): «[…] Eu tenho uma visão um pouco menos extremada daquilo que o Miguel é. Mas uma coisa salta à vista: profeta do emprego ou arauto da desgraça, o Miguel parece ser terrivelmente ingénuo. Só assim se explica que dê hoje uma entrevista ao i em que o título é  "Muitos dos desempregados não querem trabalhar ou são maus a fazê-lo":
«Duas semanas depois de ter provado o sabor agridoce dos media, o Miguel já devia saber do que a casa gasta (…) O Miguel diz coisas obviamente disparatadas.  Afirmar que o desemprego tem uma solução pessoal ignora uns anitos largos de investigação económica acerca de rigidez nominal e outras fricções, que fazem com que o processo de ajustamento macroeconómico transcenda o nível da acção puramente individual. A sua teoria de que é tudo uma questão de querer, de desejo e de vontade choca com um problema óbvio: os portugueses (e o resto do mundo em geral) não estão hoje mais preguiçosos do que estavam em 2007.» [NdE]:
http://www.publico.pt/politica/noticia/be-quer-saber-se-governo-subscreve-declaracoes-do-embaixador-do-impulso-jovem-1592168
Por oposição ao «delírio Miguel Gonçalves», há que procurar ver e ouvir o testemunho de Maria do Céu da Conceição (entrevista na RTP-INFORMAÇÃO, 27-03-2015, próximo das 23h ) acerca da sua actividade no Bangladesh (a partir de 2005), junto de bairros de lata de 'intocáveis'. Aí, na «RTP-Inf», ficou bem claro que a "iniciativa individual voluntariosa" pode tocar uma imensa quantidade de gente generosa e cooperante, mas que, ao mesmo tempo, tudo rapidamente se desmorona ao mais leve sopro das conjunturas (financeiras, sociais, económicas, políticas, sanitárias, etc.) ou face à volatilidade inacreditavelmente espantosa dos humores humanos. O elevado nível da honestidade / verdade do seu testemunho foi, para mim, um verdadeiro terramoto moral; e uma enorme lição-de-vida para muitos «profissionais do voluntariado e da caridade católica». «"A compaixão constitui uma forma radical de crítica, quer porque anuncia que a dor é uma situação inaceitável, quer porque os sistemas de poder nunca se construiram nem se sustentaram tendo como base a compaixão."» Esta, porém, não pode ficar-se por uns 'trocos', uns tostões, pois, se dizemos que estamos comprometidos com os pobres, há que o tornar expressão e realidade efectiva de amor, de ternura, de carinho, de amizade, de solidariedade real para com essa pessoa concreta e pobre, com quem partilharemos tempo, vida, entrega, procura, alegria e sofrimento. Temos que dar um amor real e existencial.» [Nicolás Castellanos, Resistencia, Profecía y Utopia en la Iglesia Hoy, Herder, p. 89]. Foi o que a Maria da Conceição, de facto, fez. Cf.: