OS CAMINHOS DO FUTURO DO CRISTIANISMO
1. Para um cristianismo
ao mesmo tempo minoritário e popular
Por
instantes, conjuguemos o irreal do passado, tomando, antes de mais, o atalho de
uma comparação. Três pesadas guerras opuseram a França e a Alemanha num período
de setenta e cinco anos (1870-1945). Nada pôde ser feito para que elas não
tenham acontecido. Mas se tivessem sido substituídas por três quartos de século
de paz, que proveito, os dois países e a civilização inteira, daí não teriam
tirado? Agora, num outro domínio: o que se teria passado se a Igreja tivesse
sido fiel ao Evangelho (aqui compreendidas e confundidas, todas as confissões
cristãs)? A Igreja não teria contado com a
força nem com o apoio do Estado para cristianizar. Não
teria ordenado, a populações pagãs, que se convertessem sob pena de morte ou de
escravatura, como se verificou no Saxe no tempo de Carlos Magno e na América do Sul no
século XVI. Não teria empreendido as Cruzadas, nem inventado a Inquisição, nem queimado
hereges, nem perseguido os judeus, nem expulso os muçulmanos de Espanha, nem
destruído os Templos dos Maias, dos Astecas e dos Incas. Não teria havido «Cristandade»
no sentido em que a entenderam os europeus de antes da Revolução Francesa,
portanto, não
teria havido unanimidade na fé e nos rituais. O que quer dizer
que os fiéis de Jesus teriam guardado a sua autonomia em relação ao Poder,
teriam disposto de muito menos riquezas e poder, mas de muito mais liberdade.
Os cristãos teriam sido menos numerosos, pois que teria havido a possibilidade
de o não serem, mas, por outro lado, a descristianização não teria, hoje, o aspecto maciço que
lhe conhecemos.
Não
há dúvida que a reconstituição em laboratório de um passado diferente daquele
que existiu tem qualquer coisa de absurdo. O Ocidente levou muito tempo a
inventar e a aceitar a ideia de uma separação entre a Igreja e o Estado, a qual
hoje nos pode parecer a forma mais razoável das relações entre eles. O caminho
seguido foi outro: podia não o ter sido? Se a Igreja não tivesse estado no
Poder teria deixado de ser perseguida? Havia – outrora – uma outra posição
entre estes dois extremos? E mesmo nos nossos dias, não é verdade que o
Cristianismo, que alija progressivamente as posições de força que ocupava, se
expõe, pelo menos nos Estados totalitários, a perseguições por vezes mais
graves do que as da Antiguidade? Podemos, portanto, julgar inúteis, até mesmo
fora de todo o bom senso, as lamentações expressas nas páginas anteriores sobre
os comportamentos passados da Igreja. Não podemos, no entanto, negar que o
Cristianismo se encontra agora reconduzido, pelas exigências da história, à via
difícil que, teoricamente, sempre deveria ter sido a sua. Cada vez mais
rejeitado pelo Poder, estará ele daqui em diante condenado a morrer? Se sim, é
porque precisava, para subsistir, da força dos homens. Caso contrário, é porque
possuiu um dinamismo – divino – superior à acumulação dos obstáculos que se
amontoam diante dele. Para um cristão, ter fé é crer na eterna juventude de um
Cristianismo que, aqui, caminha já, e, além, vai dentro em breve caminhar na
senda estreita da provação.
Desta
estrada de amargura não devem os cristãos, por sua própria iniciativa, excluir
ninguém a priori, e não lhes compete
decretar arbitrariamente que este ou aquele fique abandonado na berma. Bem se
encarregarão – e já se encarregam – as dificuldades do percurso de separar os
fiéis de Cristo dos que perdem ou virão a perder o fôlego. Impõe-se, então, uma
reflexão, sobre o «Cristianismo popular», a propósito do qual se interrogam,
neste momento [em 1977],
muitos sociólogos, historiadores e teólogos[1].
Deverão
ser considerados como cristãos de ontem, em vias de desertar, os
que se contentam em ir à igreja nalguns momentos da existência, para os
baptismos, as primeiras comunhões, os casamentos e os enterros? Ou mesmo, os
que nela aparecem algumas vezes por ano, como pelo Natal e pela Páscoa? Em
suma, todos os que se dizem «crentes», mas são pouco ou nada «praticantes»? O
historiador das mentalidades é sempre, de alguma forma, um observador das
maiorias silenciosas e não pode subscrever um juízo demasiado apressado sobre a
massa dos cristãos que abandonaram toda a «prática» regular, por insignificante
que fosse. Apenas verifica que retiveram da evangelização dos séculos
anteriores uma religião simplificada, pouco exigente quanto às obrigações
cultuais, pouco racionalizada, de fraco teor dogmático, moralizante,
sentimental, familiar, à qual pedem rituais de festas – falou-se, a propósito
deles, de «cristãos
festivos» –, consolação e esperança, sendo esta esperança muitas
vezes concretizada pela presença de um crucifixo no quarto de dormir[2].
Numa época em que a quase unanimidade dos católicos considera como caducos «os
mandamentos da Igreja», poderá dispor-se de um critério que permita julgar
negativamente os comportamentos que compõem este «Cristianismo popular» e
declará-los formais e sem conteúdo? Não são eles apenas diferentes dos que
desejava e deseja ainda a Igreja oficial?
Se
se não quiser rejeitar com desdém esta importante população que continua a
dizer-se «cristã», talvez se julgue de outra maneira a descristianização, mesmo
nos seus aspectos quantitativos. A partir do momento em que a Igreja deixou de
pedir ao Estado que obrigue homens, mulheres e crianças a irem à missa,
constituiu-se, de forma inédita, um Cristianismo
sem obrigações cultuais, cujo futuro será arriscado predizer. Em
todo o caso, estes cristãos – «tíbios» ou «arrefecidos», aos olhos dos
militantes empenhados – continuam a formular um pedido religioso sob a forma de
festas e de gestos sacramentais, em certos momentos do ano ou da vida. Por que
é que lhes deveriam ser recusados? Com que direito? Além disso, o simples bom
senso aconselha a não desanimar nem enfatizar a massa dos cristãos «festivos»
ou «periódicos como as estações». Poderá haver, por muito tempo, em
qualquer sociedade que seja, grupos militantes que não sejam levados por um
meio mais largo? Entre a falsa unanimidade da Cristandade do Antigo Regime
[sec.
XVI, XVII e XVIII até à Revolução Francesa] e uma Igreja que não seria constituída senão por grupúsculos
subterrâneos, importa desejar, imaginar, procurar criar uma estrutura
intermédia que retenha um número suficiente de cristãos, para que não se desça
abaixo do limiar crítico.
Lembro-me,
contudo, da frase de François
Mauriac, pronunciada já há quarenta anos: «A primeira comunhão da criança é o sinal,
oficial e reconhecido por todos, de que ela vai abandonar Cristo e a Igreja»;
tenho consciência do problema que eles colocam à Igreja, esses “praticantes
episódicos”. Porque, à sua maneira, eles são muito exigentes. Querem, nos
grandes momentos, lugares de culto calorosos, corais que cantem bem, belas
liturgias, um clero numeroso. Mas, por seu lado, que trazem eles à comunidade
cristã senão talvez (e é verdade que isso já é alguma coisa) dons bastante
generosos quando são solicitados? Constitui ainda, esta massa, uma reserva de
Cristianismo? É habitada por um dinamismo próprio? Possui ela, no fundo de si
mesma, os meios capazes de assegurar a sobrevivência da sua fé no dia em que
não houvesse mais padres e em que as igrejas estivessem fechadas? Ou são, pelo
contrário, uma vela que acaba de se consumir? É isso o que pensam algumas
pessoas. Eu recuso-me, a mim, essa perspectiva pessimista, porque o futuro se
encarrega muitas vezes de contrariar os prognósticos dos futurólogos. Ninguém
pode dizer a que profundidade a fé em Jesus penetrou no interior da população
«crente» que já não põe os pés na igreja senão de longe a longe. Na nossa
época, Fé religiosa e regularidade de assistência aos Ofícios, já não podem
estar ligadas como o estavam antes: é uma novidade e uma evidência que é
preciso ter em conta. Todavia, uma coisa me inquieta no comportamento dos
“praticantes episódicos”: educam eles os seus filhos numa atmosfera cristã?
Fazem-nos ler o Evangelho? Sob o falso pretexto de lhes imporem convicções religiosas,
não os deixam crescer na ignorância e na indiferença das coisas de Deus? Aí
está o critério sobre o qual eu me interrogava atrás: isso é fundamental. Pode
haver um Cristianismo familiar, real e profundo, sem «prática» por pouco
regular que seja (ao menos nos tempos e nos países em que não grassa a
perseguição)? Sentir-me-ia tentado a responder, em sintonia com muitos padres,
que não, e a pensar que a diluição do Cristianismo será a sua morte. Mas nós
encontramo-nos diante do inédito, do nunca visto. É arriscado fechar as portas do futuro.
Em
todo o caso, tendo em conta o possível abandono do Cristianismo, no decorrer
dos próximos decénios, de muitos dos que ainda se dizem cristãos, os
responsáveis da Igreja não deveriam tratar altivamente os fiéis – cerca de 10
por cento da população na França actual – que continuam a ir regularmente à
missa. Ao longo das épocas, em particular a partir do Concílio de Trento, a Igreja oficial «ofereceu» muito aos fiéis, sem se
preocupar com o que devia «pedir». Graças, repito-o, a
extraordinárias dedicações, mas graças também a uma notável organização, a
uma infatigável repetição, à teologia do medo e ao apoio das autoridades civis,
esta «oferta» encontrou aceitantes. Não encontrou, por certo, a unanimidade, e
a prova está na descristianização actual. Todavia, em países como o nosso,
cristãos «festivos», «pascalizantes» e praticantes regulares assimilaram, em
graus diversos, a mensagem que lhes tinha sido apresentada à força de catecismos
e de sermões.
Nos
nossos dias, em compensação, já não há apoio do Estado, a teologia do medo já
não tem audiência e o público é tão instruído ou mesmo mais que aqueles que
«oferecem» a religião. De tal maneira que seria, agora, abrir rombos no
Cristianismo não ter na maior conta o que se deve «pedir». Torna-se cada vez
mais aberrante a ideia de que, num Cristianismo feito ao mesmo tempo
minoritário e adulto, se pudesse ainda impor – clericalmente – uma doutrina, uma ética e uma
liturgia. A consulta dos fiéis, e em particular dos praticantes,
feita ao longo dos dez ou quinze últimos anos, deveria ter chegado a decisões,
no meu entender, contrárias ao desta ou daquela linha de acção oficialmente
adoptada hoje em dia. Refiro-me, é claro, a uma consulta honesta, feita com o
auxílio de questionários que não sugiram as respostas.
Verifica-se,
presentemente, na França, que os católicos praticantes, (…).
Jean Delumeau, historiador
«O cristianismo vai
morrer?»
Outras obras do Autor:
Naissance et
affirmation de la Réforme (PUF)
La Peur en Occident (Fayard)
L’Aveu et le pardon (Fayard)
Ce que je crois (Grasset)
Guetter l’aurore.
Un christianisme pour demain (Grasset et Hachette)
Les Religions et
les hommes («46
émissions sur la 5» publicadas em livro por D.D.B. et Hachette)
Un chemin d'histoire: Chrétienté et christianisation (Fayard)
1 Entre a abundantíssima literatura que
surgiu sobre esta questão, saliento, sobretudo para a Idade Média, R. Manselli,
«La Religion populaire au Moyen Âge»,
Paris-Montreal, 1975; para o período moderno, a obra já citada de Y. M. Bercé,
«Fête et Révolte»; para o período contemporâneo, R. Pannet, «Le catholicisme populaire», Paria, 1975,
e S. Bonnet, «Prières sécretes des Français
d’aujourd’hui», Paris, 1976, especialmente as pp. 251-262. B. Plongeron e R. Pannet, «La Réligion populaire. Approches historiques»,
sob a direcção de B. Plongeron, Paris, Beauchesne, 1976.