A ECLESIALIDADE DA FÉ
card. Walter Kasper |
(…)
3. O encontro colectivo da
verdade «a partir de baixo»
Segundo
a Escritura, o Espírito foi dado a todos os baptizados[1],
sem ficar reservado exclusivamente para um estado
determinado, no interior da Igreja. Todos são
espirituais! (Gl 6,1) A plena autoridade e a missão de testemunhar o «evento de
Jesus» na história recaem fundamentalmente sobre toda a Igreja e sobre todos os
seus membros. Todos formam, em conjunto, um povo real e um
sacerdócio santo, encarregado de anunciar as maravilhas de Deus (1Pe 2,9; Ap
1,6; 5,10; 20,6). Por meio do baptismo, foram iluminados os corações de todos
(Ef 1,18). Todos possuem o sentido de Cristo (1Cor 2,16) e um tacto apurado
para poderem comprovar o que lhes é dado (Fl 1,9s). Não precisam, portanto, de ser ensinados
por ninguém (1Jo 2,20.27).
Durante muito tempo, não se prestou
atenção, na Igreja, à verdade fundamental do Cristianismo primitivo, segundo a
qual o
testemunho do Espírito é confiado a todos os cristãos. É revelador o
léxico eclesial de Wetzer e Welte, do ano de 1884; ao tratar o vocábulo
«Leigo», resolve a questão com esta nota lapidar: «Leigo, ver Clero». Os leigos
são tidos na conta de simples grandeza negativa, descrevem-se como os não-clérigos. São leigos, no sentido
profano de não-especializados, que nada percebem do assunto, não devendo,
portanto, participar na discussão. Não causa surpresa, pois, se encontrarmos no
mesmo dicionário, no artigo relativo a «Clero», esta afirmação breve e concisa:
«Ninguém
pode admitir seriamente o sacerdócio dos leigos». E referir-se à
primeira epístola de Pedro, constitui «uma amostra de mau gosto e de erro
exegético». Segundo o artigo aduzido, «só numa acepção imprópria e muito
secundária é que se pode falar de sacerdócio dos crentes»[2].
Não admira que o futuro cardeal Newman
tenha causado suspeitas e indignação ao publicar, em 1859, na atmosfera de
semelhante teologia tão petrificada, o escrito «Sobre
a consulta dos fiéis em questões de doutrina», onde prova «que o
dogma de Niceia, durante a maior parte do século IV, se manteve, não através da
firmeza inamovível da Sé de Roma, dos concílios ou dos bispos, mas através do «consensus fidelium»[3].
Na valorização do sensus e do consensus fidelium, Newman poderia estar
a referir-se ao teólogo
de Tübingen, J. A. Möhler. As suas ideias só no nosso século
atingiram a sua plena explicitação. Na Constituição sobre a Igreja "Lumen Gentium",
o concílio Vaticano II afirma: «A totalidade dos fiéis… não pode enganar-se na
fé. Esta sua prerrogativa peculiar manifesta-a por meio do sentido sobrenatural
da fé de todo o povo, quando "desde os bispos até aos últimos fiéis leigos"
[Cfr.
S. Agostinho, De Praed. Sanct. 14, 27: PL 44, 980]
presta o seu consentimento universal em matérias de fé e costumes». (N. 12)
Este enunciado tem de ver-se no vínculo com a afirmação da Constituição sobre a Revelação "Dei
Verbum", segundo a qual a Igreja não transmite apenas a fé em
fórmulas, mas «através de tudo o que ela é em si mesma e de tudo o que crê».
(N. 8) A experiência
e a práxis
da fé dos fiéis participam igualmente no testemunho eclesial da fé.
No caso de ocorrerem discrepâncias entre a
doutrina do magistério da Igreja e a experiência quotidiana da fé dos fiéis −
tal como hoje acontece, em larga medida –, esses conflitos não se resolvem pela
simples repetição e nova adesão, fora de toda a disputa, às formas de fé
veiculadas pela tradição. A verdade do Evangelho só sobressai através do consenso de
todos. A eclesialidade da fé não se exprime, primariamente, por
meio da obediência ao ministério eclesial; não se revela também em dizer sim
com a cabeça ou em engolir tudo, mas na audição e na consideração mútuas. Cada
um deve transportar e incitar o outro na fé e, se for preciso, criticá-lo.
Segundo a Escritura, cada um tem o seu carisma (1Cor 7,7; 1Pe 4,10). Todos devem ouvir-se reciprocamente e aprender uns
dos outros: os doutores aos pastores, os pastores aos doutores e aos
profetas; estes, por sua vez, devem assumir a norma naqueles que possuem o
carisma do ministério concreto na Igreja. A obediência, na Igreja, nunca se limita a ser de sentido
único: constitui um acontecimento recíproco.
4. Três critérios
Na Igreja actual [1972],
ocorrem a este respeito várias dificuldades. No passado, (…)
Walter Kasper
[1] Ver, F. X. Arnold, «Kirche
und Laientum», in: «Glaubensverkündigung und
Glaubensgemeinschaft», Düsseldorf 1955; Y. Congar, «Der
Laie. Entwurf einer Theologie des Laientums», Stuttgard 1957 [há
edição em castelhano]; H. Küng, «Die Kirche»,
Freiburg-Basel-Wien 1967, 437-457 [há edição em castelhano].
[2] Art. Laien, in: «Kirchenlexikon» VII (p. 1891)
1323; Art. Clerus,
Ibid III (p. 1894) 546.
[3] J. H. Newman, «Über
das Zeugnis der Laien in Fragen der Glaubenslehre», in
Ausgewählte Werke, hg. v. M. Laros und W. Becker, IV, Mainz 1959, 273.