teologia para leigos

22 de outubro de 2014

IGREJA:OBSTÁCULO OU AUXÍLIO? [W.KASPER]

A ECLESIALIDADE DA FÉ


card. Walter Kasper


(…)
3. O encontro colectivo da verdade «a partir de baixo»

Segundo a Escritura, o Espírito foi dado a todos os baptizados[1], sem ficar reservado exclusivamente para um estado determinado, no interior da Igreja. Todos são espirituais! (Gl 6,1) A plena autoridade e a missão de testemunhar o «evento de Jesus» na história recaem fundamentalmente sobre toda a Igreja e sobre todos os seus membros. Todos formam, em conjunto, um povo real e um sacerdócio santo, encarregado de anunciar as maravilhas de Deus (1Pe 2,9; Ap 1,6; 5,10; 20,6). Por meio do baptismo, foram iluminados os corações de todos (Ef 1,18). Todos possuem o sentido de Cristo (1Cor 2,16) e um tacto apurado para poderem comprovar o que lhes é dado (Fl 1,9s). Não precisam, portanto, de ser ensinados por ninguém (1Jo 2,20.27).

Durante muito tempo, não se prestou atenção, na Igreja, à verdade fundamental do Cristianismo primitivo, segundo a qual o testemunho do Espírito é confiado a todos os cristãos. É revelador o léxico eclesial de Wetzer e Welte, do ano de 1884; ao tratar o vocábulo «Leigo», resolve a questão com esta nota lapidar: «Leigo, ver Clero». Os leigos são tidos na conta de simples grandeza negativa, descrevem-se como os não-clérigos. São leigos, no sentido profano de não-especializados, que nada percebem do assunto, não devendo, portanto, participar na discussão. Não causa surpresa, pois, se encontrarmos no mesmo dicionário, no artigo relativo a «Clero», esta afirmação breve e concisa: «Ninguém pode admitir seriamente o sacerdócio dos leigos». E referir-se à primeira epístola de Pedro, constitui «uma amostra de mau gosto e de erro exegético». Segundo o artigo aduzido, «só numa acepção imprópria e muito secundária é que se pode falar de sacerdócio dos crentes»[2].

Não admira que o futuro cardeal Newman tenha causado suspeitas e indignação ao publicar, em 1859, na atmosfera de semelhante teologia tão petrificada, o escrito «Sobre a consulta dos fiéis em questões de doutrina», onde prova «que o dogma de Niceia, durante a maior parte do século IV, se manteve, não através da firmeza inamovível da Sé de Roma, dos concílios ou dos bispos, mas através do «consensus fidelium»[3]. Na valorização do sensus e do consensus fidelium, Newman poderia estar a referir-se ao teólogo de Tübingen, J. A. Möhler. As suas ideias só no nosso século atingiram a sua plena explicitação. Na Constituição sobre a Igreja "Lumen Gentium", o concílio Vaticano II afirma: «A totalidade dos fiéis… não pode enganar-se na fé. Esta sua prerrogativa peculiar manifesta-a por meio do sentido sobrenatural da fé de todo o povo, quando "desde os bispos até aos últimos fiéis leigos" [Cfr. S. Agostinho, De Praed. Sanct. 14, 27: PL 44, 980] presta o seu consentimento universal em matérias de fé e costumes». (N. 12) Este enunciado tem de ver-se no vínculo com a afirmação da Constituição sobre a Revelação "Dei Verbum", segundo a qual a Igreja não transmite apenas a fé em fórmulas, mas «através de tudo o que ela é em si mesma e de tudo o que crê». (N. 8) A experiência e a práxis da fé dos fiéis participam igualmente no testemunho eclesial da fé.

No caso de ocorrerem discrepâncias entre a doutrina do magistério da Igreja e a experiência quotidiana da fé dos fiéis − tal como hoje acontece, em larga medida –, esses conflitos não se resolvem pela simples repetição e nova adesão, fora de toda a disputa, às formas de fé veiculadas pela tradição. A verdade do Evangelho só sobressai através do consenso de todos. A eclesialidade da fé não se exprime, primariamente, por meio da obediência ao ministério eclesial; não se revela também em dizer sim com a cabeça ou em engolir tudo, mas na audição e na consideração mútuas. Cada um deve transportar e incitar o outro na fé e, se for preciso, criticá-lo. Segundo a Escritura, cada um tem o seu carisma (1Cor 7,7; 1Pe 4,10). Todos devem ouvir-se reciprocamente e aprender uns dos outros: os doutores aos pastores, os pastores aos doutores e aos profetas; estes, por sua vez, devem assumir a norma naqueles que possuem o carisma do ministério concreto na Igreja. A obediência, na Igreja, nunca se limita a ser de sentido único: constitui um acontecimento recíproco.


4. Três critérios

Na Igreja actual [1972], ocorrem a este respeito várias dificuldades. No passado, (…)

Walter Kasper







[1] Ver, F. X. Arnold, «Kirche und Laientum», in: «Glaubensverkündigung und Glaubensgemeinschaft», Düsseldorf 1955; Y. Congar, «Der Laie. Entwurf einer Theologie des Laientums», Stuttgard 1957 [há edição em castelhano]; H. Küng, «Die Kirche», Freiburg-Basel-Wien 1967, 437-457 [há edição em castelhano].
[2] Art. Laien, in: «Kirchenlexikon» VII (p. 1891) 1323; Art. Clerus, Ibid III (p. 1894) 546.
[3] J. H. Newman, «Über das Zeugnis der Laien in Fragen der Glaubenslehre», in Ausgewählte Werke, hg. v. M. Laros und W. Becker, IV, Mainz 1959, 273.