«VENDE-SE IGREJA»
Enquanto o primeiro
ano de pontificado de Francisco era assinalado por este debate [«As mulheres
estão totalmente ausentes das funções directivas da Igreja católica»], a Igreja
anglicana de Inglaterra estabelecia no sínodo de 20 de Novembro de 2013 o
princípio do acesso das mulheres ao episcopado, praticamente por unanimidade:
378 votos a favor, 8 contra e 25 abstenções. Vinte e um anos antes abrira às
mulheres o acesso ao sacerdócio.
Em Effretikon, que
fica a 8 horas de comboio do Vaticano, [pertence ao cantão
de Zurique; 15.000 habitantes, duas igrejas: uma protestante e outra católica], Monika Schmit
[1957- Estudou pedagogia religiosa e teologia em
Lucerna e Salzburgo; presentemente, faz um Curso de teologia espiritual
inter-religiosa sobre pontos de contacto com a mística hebraica e com o islão], a responsável pela
pequena paróquia suíça, [em alemão, Gemeindeleiterin=«Guia da paróquia»; termo que incomoda o Vaticano;
este sugere o uso de "encarregada de paróquia"] disse-me que, se num
domingo se perguntasse aos fiéis se queriam uma mulher sacerdote, três quartos
responderiam sim. Os jovens, em especial, não compreendem a exclusão. Se
pudesse falar com Francisco, perguntar-lhe ia: «Ouça as mulheres e faça tábua
rasa dessa fábula insustentável, segundo a qual motivos teológicos
impedem o sacerdócio feminino». O sonho dela é que, quando se aposentar, o
Vaticano autorize pelo menos o diaconato
feminino. Quando Francisco foi eleito, Monika sentiu um grande
contentamento, «mas o fosso entre as pessoas e a instituição é grande.
Gostaria de obter uma audiência, mesmo que não fosse sozinha, para lhe dizer
como vivemos na base.»
Monika Schmit, 2ª a contar da esquerda [H. Küng, à direita] |
O ponto fulcral é a crise do
clero. A paróquia foi a grande invenção do cristianismo. Um
território, um povo de fiéis, um guia espiritual em contacto estreito com eles.
Esta estrutura, que durante séculos sustentou o tecido do catolicismo, está a
ser corroída pela dramática ausência de vocações. Nos Estados Unidos e na
Europa setentrional vendem-se igrejas. Por todo o Primeiro Mundo desaparecem
paróquias e perde-se o confronto quotidiano entre pároco e paroquianos. No
Terceiro Mundo muitas paróquias são tão grandes e distantes entre si que não vêem um
pároco durante meses. (…) Continuam a faltar os padres e começam a
faltar os leigos dispostos a assumir o peso das responsabilidades
pastorais. E isso sucede também no campo feminino. Na Suíça, as paróquias importam
licenciados em teologia da Alemanha. «Se procurarmos hoje um assistente
pastoral encontramos dificuldades – explica Monika Schmit – não há o mesmo
campo de escolha de há trinta anos. Apresentam-se pessoas com formação medíocre. No
meu tempo, na Universidade de Lugano, eu pertencia a um excelente grupo de mulheres
apaixonadas pela teologia feminista… liam-se livros, discutiam-se textos, fazia-se
pesquisa bíblica. Agora, só nos aparecem beatos.»
Um dado assente é a
fuga das mulheres das ordens femininas, espinha dorsal da organização eclesiástica
em todo o mundo. O número de freiras e consagradas cai de forma sensível. Em 2001
as professas eram 792.317; em 2011 o número desce para 713.206: uma sangria não
compensada pelo aumento de vocações registado em África e na Ásia. Estamos
a assistir a uma deslocação do peso do Ocidente para o Terceiro Mundo. Um terço
das religiosas vem da África e da Ásia. O que leva muitas ordens religiosas a importar
freiras do Terceiro Mundo para dar sangue novo às instituições na Europa. Um "tráfico de
noviças", criticado pelo Papa Francisco. (…)
É um nó complicado de desatar. Enfrentar o papel
das mulheres na Igreja constitui um passo fundamental no pontificado de Bergoglio.
A estrutura eclesial centrada na predominância do clero masculino está lentamente
a desagregar-se. A pergunta que se coloca à Igreja católica, que entrou no seu terceiro
milénio, é a de saber qual será a fisionomia das comunidades de crentes no futuro.
Serão ainda fortemente institucionalizadas? Virão a tornar-se mais fluidas? Ou será
encontrada uma forma organizativa que conjugue os necessários vínculos de unidade
com a flexibilidade das experiências?
Se num domingo o Papa
Francisco atravessasse o Tibre, poderia chegar a um barracão situado na via Ostiense e acompanhar uma missa especial.
O altar é uma mesa coberta com uma toalha branca, bordada. Tem rodas para poder
ser deslocado. Um ramo de flores e uma pequena cruz de madeira estão colocados ao
centro. Ao lado vê-se uma bandeirinha da paz com as cores do arco-íris. Dois cálices
de vinho palhete e dois cestos de pão estão prontos para o rito. Das janelas, nas
paredes ao fundo, entra a luz do dia.
Um jovem de barba afina
a guitarra e entoa: «Cristo veio para estar junto de nós… Aleluia... Todo o medo
será afastado». Chega ao altar uma mulher vestida com uma camisola e lê o acto de
penitência. Chega outra com um casaco comprido
e lê um trecho de Isaías. Chega outra ainda com um blusão de lã e lê a Carta de
Paulo aos Coríntios. Finalmente, chega outra envergando um casaco e anuncia o Evangelho.
Via Ostiense 152, desde os anos setenta é a sede da comunidade
de São Paulo formada depois que o abade-bispo do antigo mosteiro de San Paolo fuori
le Mura [S. Paulo extra-muros], Giovanni
Franzoni, foi destituído por ter denunciado as responsabilidades da hierarquia eclesiástica
nas especulações imobiliárias em Roma.
As paredes do antigo
armazém estão caiadas de branco, e somente um lado do grande cubo foi pintado a
trompe d’oeil [técnica de perspectiva que produz ilusão óptica] como se fosse um velho
palácio romano. Vê-se uma estátua de mulher com uma máscara na mão e o perfil de
algumas colunas. Um pouco além está afixado um manifesto de monsenhor Juan José Gerardi, o bispo guatemalteco
assassinado em 1998 por três militares por ter publicado um relatório sobre violações
dos direitos humanos cometidos pelo exército do seu país. Mártir
de verdad y paz, está escrito em espanhol.
Uma senhora de cabelos
brancos, com cerca de cinquenta anos, pronuncia a
homilia. O seu vestuário, tal como o das outras senhoras, lembra a absoluta
normalidade do quotidiano. Uma camisola azul, um casaco de lã beije, óculos, brincos,
um colar ao pescoço. A cada hora - recorda – morrem de fome no mundo duas mil pessoas.
São dados da FAO, a organização das Nações Unidas que trata de alimentação e agricultura.
A missa é um convívio, o Evangelho evoca a boda de Canãa. Mas ninguém deve ser excluído
do banquete. «Enquanto alguém morrer, não seremos a alegria de Deus.»
Entra um rapaz, um pobre
tonto, que caminha entre os fiéis dizendo em alta voz: «Onde está a mamã… eu tinha
dito à mamã… viram a mamã?». Ninguém se perturba, todos o acompanham com olhares
afectuosos, ouvem as reflexões sobre o Evangelho e as leituras do dia. São muitos
os que se levantam para tomar a palavra. E há quem recorde que no Antigo Testamento
e nas antigas comunidades cristãs o dom da profecia era partilhado entre homens
e mulheres.
É o momento da consagração. Duas mulheres aproximam-se do
altar, uma faz um sinal rápido para se ajoelharem, e juntas partem uma forma de
pão e depois transformam-na em pequenos pedaços colocando-os nos cestos. Todos se
dão as mãos formando uma cadeia e recitando o Pai-Nosso. Vão ao encontro uns dos
outros para trocar o sinal da paz. É um ambiente de amizade. A comunhão é a refeição
dos crentes em comum. Formam-se duas filas nos lados do altar e cada um toma o seu
pedaço de pão que mergulha no cálice de vinho e come-o. «O
teu primeiro milagre, Jesus – diz a oração – é
um convite de amor».
Monika Schmit |
Vem-me à mente um mosaico
singular que vi na antiga catedral de Santa Sofia, em Kiev. O altar é uma
mesa verdadeira e encontram-se ali dois Cristos, um que se volta para a direita
oferecendo o pão eucarístico a Pedro, e outro que se vira para a esquerda para o
dar a Paulo. O Filho do Homem abraça todas as dimensões da vida.
Marco Politi, «Francisco entre os lobos – o segredo de uma revolução»,
Texto&Grafia 2014, p. 107-128 (excertos). ISBN 978-989-8285-95-9. (ca.
de 20 euros) Imprescindível!
"Ratzinger carece da liderança de que a Igreja necessita"
«Um pároco italiano enforca-se antes de conhecer a sua condenação por pederastia»
Notícia e Vídeo:
http://www.periodistadigital.com/religion/mundo/2014/10/29/un-cura-italiano-se-ahorca-antes-de-conocer-su-condena-por-pederastia-religion-iglesia-abusos-maks-suard.shtml
La Chiesa da Benedetto a Francesco - Marco Politi
Vídeo:
"Os lobos ameaçam a revolução pacífica de Francisco"
Marco Politi |
«Os lobos
de Francisco» - entrevista com Marco Politi [IHU - Brasil]