teologia para leigos

12 de janeiro de 2014

EXCLUÍDOS, O «SANTUÁRIO» PREDILECTO DE DEUS [fr. ÉRIC]

Peregrino da Trindade
− ao encontro dos excluídos

Sem nada levar consigo, a não ser a fé, a esperança e o amor ao próximo realizado no concreto, o autor deste livro parte ao encontro – ainda hoje – dos mais abandonados errantes das ruas, das estradas ou dos caminhos. Caminha muito. Ora muito. Não constrói obras sociais, nem se fixa: vive com as pessoas convicto de que, para lá das aparências as mais quotidianamente dramáticas, em cada uma dessas pessoas habita o Deus-Trindade. Um relato perturbador. Uma verdadeira aventura. Dirigindo-se ao autor, no prefácio deste livro, o padre Jacques Lancelot, secretário da Comissão Episcopal França-América Latina, diz-lhe:

“Tu peregrinas rumo aos que são «a imagem escondida de Deus» e o seu «santuário» predilecto. Sim, é a eles a quem te procuras juntar: os sem-casa, os sem-trabalho, os sem-terra, os sem-família. São esses o teu «lugar» de peregrinação.”

Após estudos de engenharia, acompanhados de uma formação teológica, Éric Guyader deixou a sua França natal em 1987 para viver numa favela da grande periferia de S. Paulo. Passo a passo, Éric vê, sob o olhar atento do seu bispo local no Brasil, desocultar-se em si uma original vocação: ser «Peregrino da Trindade» nas ruas e nas estradas. [Texto tirado da contra-capa do livro ‘Pèlerin de la Trinité – à la rencontre des exclus’, Frère Éric, Ed. Nouvelle Cité, livro que, no fundo, reúne “Cartas da rua e da estrada” num volume de cerca de 400 páginas traduzidas do português (do Brasil) para o francês, em 2000, donde traduzi o resumo dum dos seus dias de vagabundo do amor… No fim desta amostra de Diário poderá assistir ao filme «Renascer na Baía», que documenta a história, a vida, a espiritualidade e o fruto salvífico desta vocação bem rente ao chão do sofrimento humano]







«Dans les ténèbres de la nuit à Lyon»



Lyon, Junho 1991




A oração da tarde fora árida, vazia… Também eu me sentia vazio… Ajoelhado numa capela perto da estação de comboios, não encontrava nada dentro de mim a que deitar a mão. Um deserto sem oásis.
As trevas e as dúvidas obscureciam o céu do meu coração. Acometiam-me muitas questões. Dentro do meu deserto interior, nenhuma resposta para elas.

«Pois… duas semanas já passaram, tu a tentar dormir com estes mendigos e nada… nada…». «São todos alcoólicos. Nem sequer precisam da tua presença. Nem sequer a desejam! Nem uma palavra te dão…». «Que tipo de relação amistosa tens tu com eles? Apenas um sorriso de longe a longe. Pura perda de tempo…». «Que te acrescenta este tipo de vida assim? Entrega os mendigos a si próprios e os alcoólicos ao seu álcool. E vai…».

As minhas passadas pesadas, como chumbo, enquanto eu tomava a direcção da estação de comboios, onde costumo dormir. Entre homens e mulheres, são cerca de quarenta os que não têm outro lugar, onde conceder algum repouso aos seus corpos. E que repouso! Com a polícia a acordar-vos de hora a hora, a agitação constante que vos impede de fechar os olhos antes da meia-noite, as equipas de limpeza que vos enxotam às 5 horas da manhã, os inúmeros roubos que vos impedem de dormir a sério…

Na sua grande maioria, mesmo que não nos falássemos, eu conhecia-os de vista. Dormia à vez com uns, à vez com outros, mas mais frequentemente com um grupo de seis homens que acamaradavam junto ao armazém das bagagens, no rés-do-chão: Raymond, Mimile e outros…
Todos alcoólicos sem dúvida, cada um com o seu litro de vinho sempre à mão indispensável para dormir …
Amizades? Na verdade, muito pouco. Nada de concreto. Nada de visível. À primeira vista, apenas algo de muito superficial…

Foi neste estado de espírito que eu cheguei à estação de comboios. Tomando a escada rolante, apercebi-me que já tinha comigo um papelão para passar a noite. Hábitos… Adquiri-o automaticamente sem dar conta disso… Tal e qual quando vejo um caixote de lixo, onde sempre encontro muito mais para comer do que necessito. Que desperdício, meu Deus! O pecado da sociedade do Primeiro Mundo… Não precisei de mais de três colheitas para pescar um pão com queijo quase inteiro, batatas-fritas com maionese e uma maçã apenas estalada! Trouxe tudo. Mais que suficiente para passar a noite…

O grande relógio da estação marcava dez horas da noite. A estação começava a esvaziar-se dos seus passageiros e o povo da rua iniciava a marcação do seu território, nocturno. É a hora religiosa em que os diversos grupos se procuram para uma breve visita entre si, o reencontro duns com os outros.

Mesmo no meio do caminho, o Sérgio, o solitário. Sempre no mesmo sítio, sempre só. Não gosta de discussões e talvez nem sequer suporte a mais mínima presença de alguém. Cinquenta anos de idade, barba farta, um olhar seco, estava sentado sobre o seu cartão, a cabeça inclinado entre os joelhos. Ajoelhei-me a seu lado:

- Boa noite, Sérgio.

Nada. Trata-se dum homem do silêncio… Apercebi-me, de imediato, que uma grande tristeza emanava da sua pessoa e vi que chorava. O Sérgio chorava… Suavemente, coloquei a minha mão sobre o seu ombro e murmurei:

- Sérgio…

Sem levantar a cabeça de entre os joelhos e os braços, entre dois soluços disse:

- Nada… Nada… Da vida, nada… Eu não sou nada…

Orei em silêncio. Ficamos assim os dois, por algum tempo, sem dizer palavra alguma. Quando eu ia tomar a palavra, ele ergue a testa, olha-me nos olhos e, num tom suplicante, diz-me:

- Dorme comigo esta noite! Por favor!

Fiquei calado algum tempo e depois respondi:

- Sim, fico contigo.

Então, ele pegou no meu cartão, puxou-o para o seu canto e disse-me:

- Podes ir dar a tua volta pelos outros. O teu cartão fica à minha guarda. Cá te espero.

Que sentido de liberdade, que desprendimento! Ou seja, ao mesmo tempo, tomando conta do meu cartão, «ele detinha-me»… Senti que devia responder ao seu gesto e decidi confiar-lhe também a minha mochila:

- Tem cuidado, está cheia. Tomas conta dela?
- Podes deixá-la comigo. Não te preocupes que ninguém lhe vai tocar com um dedo. Fica à minha guarda.

Já ia a arrancar, quando me lembrei do que estava lá dentro. Então, disse-lhe:

- Tem pão, queijo e algumas batatas fritas. Podes comer à vontade. Certo?
- Certo. Hoje ainda não comi nada.
- Está tudo dentro. Não te inibas. Tens também uma maçã… Bom apetite!

Abandono o corredor central e dirijo-me para a sala dos passos-perdidos. O grupo dos «duros» lá estava, dirigido pelo «Cigano», atrás da máquina dos bilhetes. Eu só havia dormido apenas uma vez com eles… Dizer ‘dormir’ é dizer demais… Voltei a ser apanhado por eles na noite seguinte. Sempre fora difícil a aproximação a eles. Custava-me a entender como é que eles me viam, de maneira que nunca me senti confiante. Acaso não te drogues será muito difícil entrares num grupo de drogados. E este não era dos mais leves…
Aproximei-me, quando um deles me disse:

- Senta-te aqui! Desapareceste? Por onde tens andado?
- Por aqui perto… Estou apenas um pouco cansado. Vou deitar-me mais cedo, com o grupo do costume.
- Lá em baixo, com o grupo do Raymond? É perigoso… Rapinam tudo.
- Sei, mas nunca adormecemos cedo. Mais a mais, os serviços de limpeza passam mais tarde, às cinco e meia apenas.
- Só dormiste uma noite connosco, na primeira noite em que aqui chegaste… Fica connosco, hoje. Dá-nos essa alegria.
- Prometi ao Sérgio que dormiria com ele. Fica para a próxima.
- Com o Sérgio?... Aquele que não pode ver ninguém por perto?
- Pois é esse. Ele pediu-me…

A conversa desenrolou-se deste modo, à volta de tudo e de nada. O meu coração, aos poucos, foi-se abrindo e eu acabei por me sentir melhor.

Traziam com eles sacos com pão cascudo, biscoitos e latas de sumos. Uma distribuição de que eu seguramente já beneficiei mais de uma vez! Alguns dos sacos estavam abertos, outros ainda fechados. Diante de tanta comida, enchi-me de fome… Um deles, que se deve ter apercebido disso, disse-me:

- Já jantaste?
- Hoje ainda não, respondi.
- Serve-te… É para todos.

Peguei em pão, queijo e alguma fruta… Hesitara, eu, em oferecer a maçã ao Sérgio, apenas porque adoro fruta e não é fácil deitar a mão a ela a quem anda na rua. Eis que a ternura de Deus ma retribuía…

Deixei-me estar uma boa meia hora com eles, saboreando a amizade, o pão da partilha. Pela primeira vez, me sentia integrado naquele grupo, um grupo muito fechado… O «Cigano» que o dirige, um verdadeiro «Tzigane», nem uma palavra! O seu silêncio impressiona. Homem sisudo, comanda sem palavras, somente com o olhar, um estalido dos dedos ou um gesto brusco. Nunca sorri.

Quando me preparava para os deixar desejando-lhes boa-noite, o «Cigano» ergue a cabeça, fita-me e totalmente silencioso, diz:

- Esta noite, vai dormir com o Sérgio. Se ele to pediu é porque precisa. Mas amanhã dormes connosco.

Vindo dele, aquilo que à primeira vista parecia uma ordem, na verdade era um convite. Um convite muito pouco habitual para ele… Um esboço de sorriso iluminou o seu olhar por uma fracção de segundo: o suficiente para revelar a doçura que aquele homem escondia. Respondi:

- Combinado. Até amanhã.

Desci pelas escadas interiores até ao «Ponto de Encontro», no rés-do-chão. Alguns passageiros em espera, um par de namorados, uma velha sentada, mas nada de Thierry nem de Bernard, os dois alcoólicos inseparáveis que bem cedo neste canto sempre se instalavam. Onde é que se meteram? Todas as noites passadas com eles eram um pandemónio. Gostavam tanto um do outro que andavam sempre em grandes discussões, ameaçando que se separariam antes de caírem nos braços um do outro, desfeitos em lágrimas. Dia e noite… Para eles, não havia horas.

Fui para o sítio do costume, onde o grupo me esperava.

- Estás atrasado hoje! Deixaste-te ficar por aí a conversar, certo?, disse Raymond com aquela voz que mais parece que lhe arranca os pulmões.
- Estava ali em cima com o grupo do «Cigano».
- Nunca lá ponho os pés, respondeu Mimile. Só com o olhar, ele mata-te.

Descobri, então, a um canto, o Thierry e o Bernard adormecidos com o pacote de vinho entre eles. Perguntei:

- Esta noite eles apareceram? Que se terá passado?

Raymond, o chefe do grupo explicou-me muito sério e com demasiada dificuldade, dado o seu grau de embriaguez:

- Havia ali um homem, perto do «Ponto de Encontro», meio sujo. Tu sabes o que é um… um… tipo panascas? Eles tiveram medo que ele abusasse deles. Sabes que isso pode acontecer a quem anda na noite… Esperaram por ti para dormir, mas nunca chegavas. Agora, dormem profundamente.

Contamos uns aos outros como fora o dia e partilhamos o costumeiro pão da solidariedade que nunca faltou no nosso grupo. É sagrado: cada um traz sempre alguma coisa para partilhar com os outros, reservando para este momento aquilo que de especial tenha recebido durante o dia. Esta noite, até havia bolos típicos do sul de França e algumas barras de chocolate… Mimile, sempre de coração generoso e atencioso, disse:

- Toma um chocolate para o Sérgio. Se estiver em baixo, fá-lo arrebitar.

Há bastante que eu tinha deixado Sérgio e, agora, nem por sombras atrasar-me mais. Dei as boas-noites e parti.

Regressando ao corredor central, passava em revisão os acontecimentos desta tarde: uma perfeita resposta às trevas e dúvidas que me haviam invadido durante a oração da tarde… O meu coração estava bem mais leve, pois tivera encontrado nestes homens, no coração do «Tzigane» ou no do Raymond, o oásis que ele buscava. A ternura e afeição de um e do outro faziam florir o deserto.

O grito do Sérgio ecoava ainda dentro do meu peito: «Dorme comigo!» A angústia de Thierry e de Bernard, que eu não conhecia ainda bem, interpelavam-me. Diante do sofrimento destes homens, uma voz, dentro de mim, murmurava:

- O teu lugar é aqui! Aqui, no meio deste povo sofredor. Faz-te presente, onde quer que haja sofrimento. Até ao extremo. Deitado sobre o mesmo papelão, lado-a-lado da mesma dor, no coração da mesma noite. Eles aguardam-te.

Chegado ao corredor, encontrei Sérgio, sentado, o rosto lavado e a cabeça erguida. Ao lado dele, um papelão bem esticado e o meu saco à cabeceira. Tudo pronto.
Quando me viu, disse:

- Ah, finalmente! Que bom!

Sentei-me a seu lado sobre a «cama» já pronta. Agradeci-lhe a gentileza e ofereci-lhe o chocolate, que ele guardou no seu saco agradecendo. Olhei-o bem e já não consegui ver-lhe o desespero de há pouco. Ele repetiu:

- Quem bom!..

De imediato, esticou-se e mergulhou no sono, num ápice.
Pouco dormi. De joelhos, sobre o cartão, rezei. Sérgio mantinha para si o seu mistério. Eu não precisava de saber o motivo das suas lágrimas. Bastava que eu estivesse ali, que eu dormisse sobre o mesmo cartão, a mesma noite, a seu lado.

Estar presente, uma presença amorosa. Muito simplesmente isso. A presença é, por si só, a prova do amor, dum amor que fala dum outro Amor. E esse outro Amor é bálsamo para as feridas, ternura derramada sobre as faltas de atenção, oásis nos desertos.

Oásis nos desertos…






[«Pèlerin de la Trinité – à la rencontre des exclus», Frère Éric, Ed. Nouvelle Cité 2000, ISBN 2-85313-356-7 ; em português: «Peregrinando ao encontro da Trindade – cartas da rua e da estrada», Filhas de S. Paulo, Brasil 1997]







«RENASCER NA BAÍA»
[assista ao documentário]