Peregrino da Trindade
− ao encontro dos excluídos
Sem
nada levar consigo, a não ser a fé, a esperança e o amor ao próximo realizado
no concreto, o autor deste livro parte ao encontro – ainda hoje – dos mais
abandonados errantes
das ruas, das estradas ou dos caminhos. Caminha muito. Ora muito. Não
constrói obras sociais, nem se fixa: vive com as pessoas convicto de que, para
lá das aparências as mais quotidianamente dramáticas, em cada uma dessas
pessoas habita o Deus-Trindade. Um relato
perturbador. Uma verdadeira aventura. Dirigindo-se ao autor, no prefácio
deste livro, o padre Jacques Lancelot, secretário da Comissão Episcopal França-América Latina,
diz-lhe:
“Tu
peregrinas rumo aos que são «a imagem
escondida de Deus» e o seu «santuário»
predilecto. Sim, é a eles a quem te procuras juntar: os sem-casa, os
sem-trabalho, os sem-terra, os sem-família. São esses o teu «lugar» de peregrinação.”
Após
estudos de engenharia, acompanhados de uma formação teológica, Éric Guyader
deixou a sua França natal em 1987 para viver numa favela da grande periferia de
S. Paulo. Passo a passo, Éric vê, sob o olhar atento do seu bispo local no
Brasil, desocultar-se em si uma original vocação: ser «Peregrino da Trindade»
nas ruas e nas estradas. [Texto
tirado da contra-capa do livro ‘Pèlerin de la Trinité – à la rencontre des exclus’,
Frère Éric, Ed. Nouvelle Cité, livro que, no fundo, reúne “Cartas da rua e da
estrada” num volume de cerca de 400 páginas traduzidas do português (do Brasil)
para o francês, em 2000, donde traduzi o resumo dum dos seus dias de vagabundo
do amor… No fim desta amostra de Diário poderá assistir ao filme «Renascer na
Baía», que documenta a história, a vida, a espiritualidade e o fruto salvífico desta
vocação bem rente ao chão do sofrimento humano]
«Dans
les ténèbres de la nuit à Lyon»
Lyon, Junho
1991
A oração da tarde
fora árida, vazia… Também eu me sentia vazio… Ajoelhado numa capela perto da
estação de comboios, não encontrava nada dentro de mim a que deitar a mão. Um
deserto sem oásis.
As trevas e as
dúvidas obscureciam o céu do meu coração. Acometiam-me muitas questões. Dentro
do meu deserto interior, nenhuma resposta para elas.
«Pois… duas semanas
já passaram, tu a tentar dormir com estes mendigos e nada… nada…». «São todos
alcoólicos. Nem sequer precisam da tua presença. Nem sequer a desejam! Nem uma
palavra te dão…». «Que tipo de relação amistosa tens tu com eles? Apenas um
sorriso de longe a longe. Pura perda de tempo…». «Que te acrescenta este tipo
de vida assim? Entrega os mendigos a si próprios e os alcoólicos ao seu álcool.
E vai…».
As minhas passadas
pesadas, como chumbo, enquanto eu tomava a direcção da estação de comboios,
onde costumo dormir. Entre homens e mulheres, são cerca de quarenta os que não
têm outro lugar, onde conceder algum repouso aos seus corpos. E que repouso!
Com a polícia a acordar-vos de hora a hora, a agitação constante que vos impede
de fechar os olhos antes da meia-noite, as equipas de limpeza que vos enxotam
às 5 horas da manhã, os inúmeros roubos que vos impedem de dormir a sério…
Na sua grande
maioria, mesmo que não nos falássemos, eu conhecia-os de vista. Dormia à vez
com uns, à vez com outros, mas mais frequentemente com um grupo de seis homens
que acamaradavam junto ao armazém das bagagens, no rés-do-chão: Raymond, Mimile
e outros…
Todos alcoólicos
sem dúvida, cada um com o seu litro de vinho sempre à mão indispensável para
dormir …
Amizades? Na
verdade, muito pouco. Nada de concreto. Nada de visível. À primeira vista,
apenas algo de muito superficial…
Foi neste estado de
espírito que eu cheguei à estação de comboios. Tomando a escada rolante,
apercebi-me que já tinha comigo um papelão para passar a noite. Hábitos…
Adquiri-o automaticamente sem dar conta disso… Tal e qual quando vejo um
caixote de lixo, onde sempre encontro muito mais para comer do que necessito.
Que desperdício, meu Deus! O pecado da sociedade do Primeiro Mundo… Não
precisei de mais de três colheitas para pescar um pão com queijo quase inteiro,
batatas-fritas com maionese e uma maçã apenas estalada! Trouxe tudo. Mais que
suficiente para passar a noite…
O grande relógio da
estação marcava dez horas da noite. A estação começava a esvaziar-se dos seus
passageiros e o povo da rua iniciava a marcação do seu território, nocturno. É
a hora religiosa em que os diversos grupos se procuram para uma breve visita
entre si, o reencontro duns com os outros.
Mesmo no meio do
caminho, o Sérgio, o solitário. Sempre no mesmo sítio, sempre só. Não gosta de
discussões e talvez nem sequer suporte a mais mínima presença de alguém.
Cinquenta anos de idade, barba farta, um olhar seco, estava sentado sobre o seu
cartão, a cabeça inclinado entre os joelhos. Ajoelhei-me a seu lado:
- Boa noite,
Sérgio.
Nada. Trata-se dum homem
do silêncio… Apercebi-me, de imediato, que uma grande tristeza emanava da sua
pessoa e vi que chorava. O Sérgio chorava… Suavemente, coloquei a minha mão
sobre o seu ombro e murmurei:
- Sérgio…
Sem levantar a
cabeça de entre os joelhos e os braços, entre dois soluços disse:
- Nada… Nada… Da
vida, nada… Eu não sou nada…
Orei em silêncio.
Ficamos assim os dois, por algum tempo, sem dizer palavra alguma. Quando eu ia
tomar a palavra, ele ergue a testa, olha-me nos olhos e, num tom suplicante,
diz-me:
- Dorme comigo esta
noite! Por favor!
Fiquei calado algum
tempo e depois respondi:
- Sim, fico
contigo.
Então, ele pegou no
meu cartão, puxou-o para o seu canto e disse-me:
- Podes ir dar a
tua volta pelos outros. O teu cartão fica à minha guarda. Cá te espero.
Que sentido de
liberdade, que desprendimento! Ou seja, ao mesmo tempo, tomando conta do meu
cartão, «ele detinha-me»… Senti que devia responder ao seu gesto e decidi
confiar-lhe também a minha mochila:
- Tem cuidado, está
cheia. Tomas conta dela?
- Podes deixá-la
comigo. Não te preocupes que ninguém lhe vai tocar com um dedo. Fica à minha
guarda.
Já ia a arrancar, quando
me lembrei do que estava lá dentro. Então, disse-lhe:
- Tem pão, queijo e
algumas batatas fritas. Podes comer à vontade. Certo?
- Certo. Hoje ainda
não comi nada.
- Está tudo dentro.
Não te inibas. Tens também uma maçã… Bom apetite!
Abandono o corredor
central e dirijo-me para a sala dos passos-perdidos. O grupo dos «duros» lá
estava, dirigido pelo «Cigano», atrás da máquina dos bilhetes. Eu só havia
dormido apenas uma vez com eles… Dizer ‘dormir’ é dizer demais… Voltei a ser
apanhado por eles na noite seguinte. Sempre fora difícil a aproximação a eles.
Custava-me a entender como é que eles me viam, de maneira que nunca me senti
confiante. Acaso não te drogues será muito difícil entrares num grupo de
drogados. E este não era dos mais leves…
Aproximei-me,
quando um deles me disse:
- Senta-te aqui!
Desapareceste? Por onde tens andado?
- Por aqui perto…
Estou apenas um pouco cansado. Vou deitar-me mais cedo, com o grupo do costume.
- Lá em baixo, com
o grupo do Raymond? É perigoso… Rapinam tudo.
- Sei, mas nunca
adormecemos cedo. Mais a mais, os serviços de limpeza passam mais tarde, às
cinco e meia apenas.
- Só dormiste uma noite
connosco, na primeira noite em que aqui chegaste… Fica connosco, hoje. Dá-nos
essa alegria.
- Prometi ao Sérgio
que dormiria com ele. Fica para a próxima.
- Com o Sérgio?...
Aquele que não pode ver ninguém por perto?
- Pois é esse. Ele
pediu-me…
A conversa
desenrolou-se deste modo, à volta de tudo e de nada. O meu coração, aos poucos,
foi-se abrindo e eu acabei por me sentir melhor.
Traziam com eles
sacos com pão cascudo, biscoitos e latas de sumos. Uma distribuição de que eu
seguramente já beneficiei mais de uma vez! Alguns dos sacos estavam abertos,
outros ainda fechados. Diante de tanta comida, enchi-me de fome… Um deles, que
se deve ter apercebido disso, disse-me:
- Já jantaste?
- Hoje ainda não, respondi.
- Serve-te… É para
todos.
Peguei em pão,
queijo e alguma fruta… Hesitara, eu, em oferecer a maçã ao Sérgio, apenas
porque adoro fruta e não é fácil deitar a mão a ela a quem anda na rua. Eis que
a ternura de Deus ma retribuía…
Deixei-me estar uma
boa meia hora com eles, saboreando a amizade, o pão da partilha. Pela primeira
vez, me sentia integrado naquele grupo, um grupo muito fechado… O «Cigano» que
o dirige, um verdadeiro «Tzigane», nem uma palavra! O seu silêncio impressiona.
Homem sisudo, comanda sem palavras, somente com o olhar, um estalido dos dedos
ou um gesto brusco. Nunca sorri.
Quando me preparava
para os deixar desejando-lhes boa-noite, o «Cigano» ergue a cabeça, fita-me e
totalmente silencioso, diz:
- Esta noite, vai
dormir com o Sérgio. Se ele to pediu é porque precisa. Mas amanhã dormes
connosco.
Vindo dele, aquilo
que à primeira vista parecia uma ordem, na verdade era um convite. Um convite
muito pouco habitual para ele… Um esboço de sorriso iluminou o seu olhar por
uma fracção de segundo: o suficiente para revelar a doçura que aquele homem
escondia. Respondi:
- Combinado. Até
amanhã.
Desci pelas escadas
interiores até ao «Ponto de Encontro», no rés-do-chão. Alguns passageiros em espera,
um par de namorados, uma velha sentada, mas nada de Thierry nem de Bernard, os
dois alcoólicos inseparáveis que bem cedo neste canto sempre se instalavam.
Onde é que se meteram? Todas as noites passadas com eles eram um pandemónio.
Gostavam tanto um do outro que andavam sempre em grandes discussões, ameaçando
que se separariam antes de caírem nos braços um do outro, desfeitos em
lágrimas. Dia e noite… Para eles, não havia horas.
Fui para o sítio do
costume, onde o grupo me esperava.
- Estás atrasado hoje!
Deixaste-te ficar por aí a conversar, certo?, disse Raymond com aquela voz que
mais parece que lhe arranca os pulmões.
- Estava ali em
cima com o grupo do «Cigano».
- Nunca lá ponho os
pés, respondeu Mimile. Só com o olhar, ele mata-te.
Descobri, então, a
um canto, o Thierry e o Bernard adormecidos com o pacote de vinho entre eles. Perguntei:
- Esta noite eles
apareceram? Que se terá passado?
Raymond, o chefe do
grupo explicou-me muito sério e com demasiada dificuldade, dado o seu grau de
embriaguez:
- Havia ali um
homem, perto do «Ponto de Encontro», meio sujo. Tu sabes o que é um… um… tipo
panascas? Eles tiveram medo que ele abusasse deles. Sabes que isso pode
acontecer a quem anda na noite… Esperaram por ti para dormir, mas nunca
chegavas. Agora, dormem profundamente.
Contamos uns aos
outros como fora o dia e partilhamos o costumeiro pão da solidariedade que
nunca faltou no nosso grupo. É sagrado: cada um traz sempre alguma coisa para
partilhar com os outros, reservando para este momento aquilo que de especial
tenha recebido durante o dia. Esta noite, até havia bolos típicos do sul de
França e algumas barras de chocolate… Mimile, sempre de coração generoso e
atencioso, disse:
- Toma um chocolate
para o Sérgio. Se estiver em baixo, fá-lo arrebitar.
Há bastante que eu
tinha deixado Sérgio e, agora, nem por sombras atrasar-me mais. Dei as
boas-noites e parti.
Regressando ao
corredor central, passava em revisão os acontecimentos desta tarde: uma
perfeita resposta às trevas e dúvidas que me haviam invadido durante a oração
da tarde… O meu coração estava bem mais leve, pois tivera encontrado nestes
homens, no coração do «Tzigane» ou no do Raymond, o oásis que ele buscava. A
ternura e afeição de um e do outro faziam florir o deserto.
O grito do Sérgio
ecoava ainda dentro do meu peito: «Dorme comigo!» A angústia de Thierry e de
Bernard, que eu não conhecia ainda bem, interpelavam-me. Diante do sofrimento
destes homens, uma voz, dentro de mim, murmurava:
- O teu lugar é aqui! Aqui, no meio deste povo
sofredor. Faz-te presente, onde quer que haja sofrimento. Até ao extremo.
Deitado sobre o mesmo papelão, lado-a-lado da mesma dor, no coração da mesma
noite. Eles aguardam-te.
Chegado ao
corredor, encontrei Sérgio, sentado, o rosto lavado e a cabeça erguida. Ao lado
dele, um papelão bem esticado e o meu saco à cabeceira. Tudo pronto.
Quando me viu,
disse:
- Ah, finalmente!
Que bom!
Sentei-me a seu
lado sobre a «cama» já pronta. Agradeci-lhe a gentileza e ofereci-lhe o
chocolate, que ele guardou no seu saco agradecendo. Olhei-o bem e já não
consegui ver-lhe o desespero de há pouco. Ele repetiu:
- Quem bom!..
De imediato,
esticou-se e mergulhou no sono, num ápice.
Pouco dormi. De
joelhos, sobre o cartão, rezei. Sérgio mantinha para si o seu mistério. Eu não
precisava de saber o motivo das suas lágrimas. Bastava que eu estivesse ali,
que eu dormisse sobre o mesmo cartão, a mesma noite, a seu lado.
Estar presente, uma
presença amorosa. Muito simplesmente isso. A presença é, por si só, a prova do
amor, dum amor que fala dum outro Amor. E esse outro Amor é bálsamo para as
feridas, ternura derramada sobre as faltas de atenção, oásis nos desertos.
Oásis nos desertos…
[«Pèlerin de la Trinité – à la rencontre des exclus»,
Frère Éric, Ed. Nouvelle Cité 2000, ISBN
2-85313-356-7 ; em português: «Peregrinando ao encontro da Trindade – cartas da rua e
da estrada», Filhas de S. Paulo, Brasil 1997]
«RENASCER NA BAÍA»
[assista
ao documentário]