Eucaristia
|
I.
As dificuldades
Tal como se
costuma hoje em dia celebrar a Eucaristia, é evidente que, para muitos cristãos, se torna difícil
compreender e viver correctamente aquilo que, segundo os relatos da
instituição, Jesus disse ao instituir este sacramento: «Fazei isto em memória
de mim» (1Cor 11:25; Lc 22:19). Ou seja: «Fazei isto mesmo, para que
vos lembreis de mim, para que actualizeis a minha presença e a minha memória
entre vós». Porém, será que podemos estar assim tão seguros de que uma missa
pontifical solene celebrada no contexto grandioso das nossas catedrais e com a
pompa e circunstância que tal acarreta, evoca espontaneamente a memória e a
presença viva do Jesus do Evangelho? Não se trata de uma pergunta retórica, mas
de algo tão óbvio que o estranho é que esta pergunta produza mal-estar ou
indiferença em muitos cristãos. Será que desvirtuamos a esse ponto (ao ponto de
causar estranheza a pergunta) a memória e a presença de Jesus entre nós?
Estas
perguntas têm a sua razão de ser não só na liturgia e nos costumes da Igreja,
mas sobretudo na teologia eucarística que elaboramos e continuamos a ensinar às
pessoas. E isto pelas seguintes razões:
1. Porque a
teologia, desde o séc. XI até hoje, colocou a sua preocupação suprema na
afirmação da presença de Cristo na eucaristia
e nas questões relacionadas com a explicação aristotélico-tomista dessa
presença.
2. Porque ─ como consequência ─ ao explicar a eucaristia, o que mais se
ensinou aos fiéis foi o tema da presença
e da comunhão.
3. Porque
daí seguiu-se que, a fé na eucaristia, se centrou mais na devoção e na piedade
pessoal e menos na celebração da comunidade cristã, com as suas exigências de união e solidariedade.
4. Porque a
evolução histórica quanto ao modo de celebrar o sacramento da eucaristia
orientou de tal maneira as coisas que acabou por
prevalecer o «sagrado» sobre o «comunitário». Assim se explica que aquilo
que começou com uma Ceia de Fraternidade acabou numa solene cerimónia sagrada,
que em nada se assemelha a uma refeição partilhada.
5. Porque
um dos problemas que mais preocupa a teologia eucarística actual é uma questão que
não se colocou nem no Novo Testamento nem na Tradição dos dois
primeiros séculos do cristianismo. Trata-se do debatido assunto do ministro que
pode (ou não) celebrar a eucaristia: tem de ser
necessariamente um ministro ordenado? As mulheres poderiam presidir
à eucaristia? Questões deste tipo apaixonam, inclusivamente, determinados
sectores da opinião pública, e isso acarreta duas consequências negativas:
a)
Coloca-se excessivo interesse em questões
que em nada tocam o núcleo central da eucaristia;
b)
A crescente escassez de ministros ordenados
na Igreja traz consigo o facto de, para muitos cristãos, ser impossível ir à
missa todos os domingos. O mais grave é que parece que isso preocupa muito
pouco as autoridades eclesiásticas; preocupam-se muito mais em manter, firmemente,
a prática estabelecida no que se refere ao ministro da eucaristia.
Seja qual
for a solução que se dê a essas dificuldades, é fundamental perceber que não se
trata de meras questões práticas. Ao centrar a atenção nestas questões,
trata-se do seguinte: a teologia desviou a sua atenção daquilo que é
fundamental, no que se refere ao sacramento que, na expressão do concílio
Vaticano II, é «fonte e cume de toda a vida cristã» (LG 11,1).
[…]
IV.
A experiência da primeira comunidade
Em Actos
2:42-47, resume-se o ideal daquilo que deve ser uma comunidade cristã. Trata-se
de uma comunidade que «frequenta o Templo», «parte o pão nas casas» e todos
«comem juntos, louvando a Deus». O texto, por um lado, fala do «Templo», já que
os membros da comunidade eram judeus de Jerusalém e, por outro, da «fracção do
pão», que se celebrava nas «casas». Distingue-se, então, o espaço sagrado do
espaço profano. E a eucaristia, como
acto próprio e específico da comunidade, localiza-se
no âmbito do profano. Não era, portanto, um ritual religioso, mas um
símbolo comunitário.
As
consequências que esta experiência comunitária acarretava ficaram claramente
afirmadas nos sumários dos Actos dos Apóstolos: «os crentes viviam todos unidos
e tinham tudo em comum» (Act 2:44); «no grupo dos crentes, todos pensavam e
sentiam o mesmo, possuíam tudo em comum e ninguém considerava seu nada do que
tinha» (Act 4:32). Estes textos idealizavam o que de facto ali ocorria.
Expressam, com vigor, as consequências que devem ser levadas a sério pela
comunidade, quando esta celebra a eucaristia correctamente. Não se trata,
primordialmente, de consequências de carácter “religioso”, mas de consequências
de ordem “social”. À medida que cada um possuía algo (nessa altura já havia
propriedade privada), colocava-o à disposição dos demais.
V.
Quando a eucaristia se torna impossível
As
exigências sociais da eucaristia são afirmadas, com mais força ainda,
em 1Cor 11:17-34. Trata-se das severas advertências que Paulo faz à comunidade
de Corinto, precisamente, porque aí se celebrava mal a eucaristia. A falha não
estava no facto de que se deixasse de cumprir determinadas normas litúrgicas.
Nem que o ministro das celebração não estivesse devidamente «ordenado». Ou que
os coríntios tivessem ideias equivocadas sobre a presença de Cristo no pão e no
vinho. Nada daquilo que agora preocupa os teólogos no que diz respeito à
eucaristia era, então, motivo de preocupação. O que se passava era que os
cristãos estavam divididos, porque entre eles havia
ricos e pobres, de maneira que os ricos comiam e bebiam até
embriagar-se, enquanto os pobres passavam fome (1Cor 11:21). E porque, depois
disso, todos se reuniam para celebrar a mesma eucaristia.
Ora, Paulo
diz a esses cristãos: quando assim se celebra a eucaristia já não é celebrar a
«ceia do Senhor»; também pode traduzir-se assim: «assim é impossível comer a
ceia do Senhor» (oúk éstin kyriakon deipnon
phagein) (1Cor 11:21). Quer dizer, os que se reúnem para
celebrar a eucaristia, na realidade não se reúnem primordialmente para um acto
de devoção, de piedade ou de religião, e muito menos para um acto social ou de
carácter político ou inclusivamente militar, mas para fundirem-se num só (synergomenon epi to auto) (1Cor 11:20). A divisão ou o enfrentamento
entre pessoas ou grupos torna impossível a celebração da eucaristia. Um facto social impossibilita um acontecimento teológico. A «ortodoxia»
depende essencialmente da «ortopráxis».
VI.
A significação fundamental
De tudo
aquilo que se disse se deduz que a significação fundamental da eucaristia se
deve interpretar a partir do símbolo da refeição
partilhada. Partilhar a mesma mesa é partilhar a mesma vida. E como
na eucaristia a comida é o próprio Jesus, segue-se que a eucaristia é o
sacramento em que os crentes se comprometem a
partilhar, entre eles, a mesma vida no amor e na solidariedade.
É isso que o evangelho de João
proclama. Este evangelho que, no capítulo seis, fala amplamente da eucaristia,
não faz memória do (…).
José Maria Castillo